Macroeconomia

Vamos falar de histerese?

25 fev 2021

Este é um tópico extremamente importante, porém bastante negligenciado no debate econômico nacional (e muitas vezes tachado de “coisa de heterodoxo”). Para começar, é preciso ter claro que o PIB de um país pode ser analisado de duas formas, por definição. Primeiro, sob a ótica do PIB potencial – ou do crescimento de longo prazo. Segundo, sob a ótica do hiato do produto – ou dos ciclos econômicos de curto prazo.

Nos últimos 40 anos, a visão predominante entre os economistas tratou os ciclos econômicos de maneira praticamente independente das discussões sobre crescimento (com exceção do campo dos ciclos reais de negócios, que considerava que a economia estaria o tempo todo no pleno-emprego). As políticas tradicionais de gestão da demanda agregada (monetária e fiscal) eram vistas como podendo afetar apenas distúrbios passageiros, com pouca ou nenhuma influência sobre o PIB potencial (isto é, sobre a capacidade de oferta de bens e serviços da economia).

E mais: a política monetária deveria ser a estrela desse “espetáculo” – amparada na chamada “divina coincidência” -, relegando à política fiscal um papel de mera figurante, nem mesmo coadjuvante (na esteira da visão anti-governo/Estado que emergiu com força nos anos 1970 e que somente agora começa a ser reavaliada pelo mainstream – vide o novo livro organizado por Blanchard & Rodrik, lançado neste mês).

Além disso, muitos economistas, baseados nos resultados de modelos conceituais pouco aderentes à realidade, subestimavam a importância das questões cíclicas. Por exemplo, Robert Lucas, prêmio Nobel de Economia, afirmara em 2003 que “considerando o caso dos EUA nos últimos 50 anos como um referencial, o potencial para ganhos de bem-estar de melhores políticas de longo prazo pelo lado da oferta excede em muito o potencial de melhorias na gestão da demanda de curto prazo”.

Contudo, isso está mudando. As evidências empíricas de histerese têm desafiado cada vez mais a visão dominante anterior. Assim sendo, cabe perguntar: o que significa histerese?

A palavra “histerese” deriva do grego e significa “retardo”. Na Física, ela é utilizada para descrever a tendência de um sistema de conservar as suas propriedades na ausência de novo estímulo. Na Economia, ela pode ser resumida da seguinte maneira: a posição cíclica da economia pode afetar sua tendência de crescimento (tanto o nível, como a taxa de variação). Ou seja, se a economia sofre um choque que a desvie de seu pleno-emprego (“choque de demanda”), seus efeitos podem ser muito persistentes, e até mesmo permanentes em alguns casos. É um conceito que se aproxima bastante daquele de path dependence (dependência da trajetória) – e, como tal, dá margem para a emergência de múltiplos equilíbrios (indo de encontro à hipótese de ergodicidade muitas vezes embutida/adotada nos modelos macroeconômicos mainstream).

Na década de 80, o interesse por esse tema na academia começou a engatinhar em função da observação da persistência de elevadas taxas de desemprego na Europa (vide Blanchard & Summers 1986, muitas vezes considerado o trabalho seminal sobre histerese). Mas foi depois da crise de 2008 que os estudos sobre histerese ganharam corpo, motivados pelo fracasso do nível de atividade em retomar à tendência pré-recessão em várias economias avançadas. De fato, a experiência pós-crise financeira sugere que mudanças na demanda podem ter efeitos persistentes sobre o produto potencial.

Muitos já devem ter ouvido falar na chamada Lei de Say, que estabelece que “toda oferta cria sua própria demanda”. Pois a histerese é um tema tão importante que Larry Summers, ex-secretário do Tesouro americano, chegou a afirmar que, na verdade, é a “falta de demanda que pode criar a falta de oferta” (em linha com o princípio da demanda efetiva, colocado por Keynes). O fenômeno da histerese econômica sugere que há uma retroalimentação contínua entre a capacidade de oferta e a demanda efetiva que não pode ser ignorado.

Para quem desconhece o tema, não faltam boas opções para conhecê-lo. Recomendamos, por exemplo, o “speech” de 2016 de Janet Yellen, então presidente do Federal Reserve, hoje secretária do Tesouro americano, denominado “Macroeconomic research after the crisis”. Além disso, o recém-publicado texto de pesquisadores do FMI, denominado “Hysteresis and the business cycle”, corresponde a um excelente survey sobre esse assunto.

Mas quais são os mecanismos que fariam uma recessão cíclica afetar o crescimento potencial?

A histerese pode se manifestar por vários canais. Primeiro, por meio do desemprego de longa duração, erodindo o estoque de capital humano, sobretudo aquele adquirido no ambiente de trabalho. Segundo, pela fuga de cérebros, o que também reduz o capital humano, além da capacidade de inovação do país. Terceiro, pelo aumento da obsolescência do estoque de capital, com reflexos na produtividade sistêmica. Quarto, pelo rebaixamento de expectativas dos agentes, desestimulando a assunção de riscos, dentre outros. Ademais, a interação de quadros em que a economia opera persistentemente abaixo do pleno-emprego com a política dá margem para a emergência de instabilidade política e social, bem como de medidas populistas (sobretudo em países pobres e/ou muito desiguais).

Há várias evidências suportando a existência de histerese econômica. Por exemplo, Blanchard, Cerutti e Summers (2015) mostraram que cerca de 2/3 das recessões são seguidas por um nível de produção mais baixo (histerese) ou por uma taxa de crescimento menor (super-histerese). Eles encontraram alta incidência de histerese mesmo em recessões induzidas por desinflações intencionais, o que indica que choques de demanda podem afetar a produção permanentemente.

No ano passado, diversas pesquisas corroboraram a elevada persistência de choques de demanda (e de política monetária) sobre o PIB. São os casos de Jordá, Singh e Taylor (2020), Furlaneto et al (2020); e Maffei-Faccioli (2020). Baqaee, Farhi & Sagani (2021) mostram que a política monetária tem efeitos sobre a capacidade de oferta da economia, ao afetar a produtividade total dos fatores agregada via efeitos de realocação entre firmas com maior ou menor poder de mercado.

Se o ciclo pode afetar a tendência, então isso tem consequências para a política econômica. Mas quais?

Tradicionalmente, os formuladores de política buscavam avaliar quanto das mudanças observadas no PIB era cíclica ou estrutural. As políticas de estabilização macroeconômica, então, reagiriam ao componente cíclico. Erros na reação aos choques poderiam custar caro, mas sob a forma de volatilidade adicional do PIB e/ou da inflação, sem maiores consequências de médio e longo prazo.

Na presença de histerese econômica, os custos dos choques cíclicos desfavoráveis ou da falta de ação dos formuladores de políticas são muito maiores por causa das cicatrizes permanentes que eles podem deixar na atividade. Isso significa dizer que, nas recessões, ações agressivas e rápidas se tornam a política ideal (na contramão da cautela sugerida pelo princípio de Brainard). Nas expansões, o custo de agir muito cedo com medo de pressão inflacionária também pode reduzir o crescimento potencial ou impedir uma evolução positiva do mercado de trabalho.

Se o leitor chegou até aqui, ele pode estar se perguntando: mas esse debate é importante para o Brasil?

Sim, por várias razões. Primeiro, porque o crescimento de países emergentes é mais volátil, reflexo da maior importância das commodities para o PIB desses países e da maior dependência dos fluxos de comércio e de capitais. Por exemplo, estudo recente (Di Pace, Juvenal & Petrella, 2020) estimou que cerca de 50% da variabilidade do PIB brasileiro se deve a oscilações dos preços internacionais de exportação, importação e do PIB global.

Segundo, porque o hiato do produto brasileiro está bastante negativo há alguns anos, segundo várias (para não dizer todas) estimativas disponíveis – e conforme atesta o comportamento das medidas de núcleo de inflação (mais sensíveis à atividade doméstica do que a inflação cheia, a qual é cada vez mais determinada por fatores globais - como apontou Forbes 2018). Mesmo antes da crise da Covid-19, a recuperação de nosso PIB após a recessão de 2014-16 já se mostrava atipicamente lenta e frustrante, o que vinha criando efeitos deletérios mais permanentes em nossa economia (os quais, no limite, fariam com que o hiato do produto zerasse pelo colapso da capacidade de oferta e não pelo restabelecimento da demanda agregada).

Terceiro, porque a crise da Covid foi um choque adverso de demanda (em termos líquidos) em um contexto já muito adverso. Não custa relembrar que a taxa de desemprego brasileira segue aumentando no país na série com ajuste sazonal, tendo se aproximado dos 15% recentemente, patamar recorde desde 1976. Além disso, já encerramos o auxílio emergencial, dentre outras medidas anticíclicas, sendo que estamos em plena segunda onda da pandemia, com perspectivas incertas sobre a vacinação. Aliás, já há sinais de recessão técnica para o 1º semestre. O crescimento projetado pelo consenso do mercado neste ano, de cerca de 3,5%, é basicamente o carregamento estatístico herdado de 2020, sem muito avanço ao longo do ano – e ainda longe de retomar o PIB per capita de 2019, muito menos zerar o hiato do produto.

Nesse contexto, caso não seja introduzido logo um duplo mandato formal para o BCB, se a política monetária começar a ser apertada antes da hora (tal como já sinalizado pelo BC), e se seguirmos com um arcabouço de política fiscal sem nenhuma flexibilidade para se ajustar ao ciclo econômico, não terá agenda de reformas que nos fará sair do atoleiro tão cedo. Definitivamente, a histerese é a pior contra-reforma que poderíamos ter.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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