O Bicentenário e a Nação
Há um par de semanas [este artigo foi publicado em julho de 2020] escrevi aqui sobre a estratégia de superarmos as crises por que passamos construindo em torno do sentido de nação. Quero voltar ao tema.
A nação é uma abstração, uma crença, uma criação que existe apenas na imaginação compartilhada dos seres humanos. Como o são o dinheiro, a religião e tantas outras instituições igualmente ou até mais centrais nas nossas vidas. Em o “O Pecado Original da República”, José Murilo de Carvalho assim desenvolve esse ponto: “(Benedict ) Anderson desenvolveu a ideia de que nações são comunidades imaginadas, isto é, construídas graças a um variado arsenal de técnicas desenvolvido, sobretudo, durante o século XIX. Faziam parte desse arsenal a elaboração de mitos de origem com a ajuda de documentos antigos e da busca de ancestrais comuns, a criação de heróis, a imposição de uma única língua, o uso da paisagem como marca de identidade, os museus etnográficos, as exposições internacionais, o folclore, o romance histórico à maneira de Walter Scott, a ópera, os monumentos. Tal construção equivale ao que hoje se convencionou chamar de memória nacional, em anteposição ao que seria a história nacional. A memória é a história ajustada às necessidades da construção da identidade nacional’”.
Como em outros países com passado colonial, a Independência do Brasil foi um grande marco na construção dessa nossa memória histórica. Não só porque marcou o nascimento do Brasil como nação independente, mas também porque, ao contrário da Proclamação da República, envolveu diretamente a população, como em guerras na Bahia, Maranhão e Pará. Como observa Carvalho: “No Rio de Janeiro, foi intensa a participação popular, manifestada, sobretudo, no episódio do Fico, quando um abaixo-assinado com 8 mil nomes foi entregue a d. Pedro solicitando que permanecesse no país. Para uma cidade com uns 150 mil habitantes, em sua maioria analfabetos, era um número extraordinário”.
Surpreendentemente, porém, estamos a pouco mais de dois anos da celebração do bicentenário da Independência e o tema segue esquecido. Governo, imprensa, redes sociais, ninguém parece ter acordado para isso. Para mim soa inacreditável que não estejamos preparando solenidades, livros, e, acima de tudo, refletindo sobre o que conquistamos nesses 200 anos. E, claro, quais os ensinamentos para o futuro.
Enfim, mais um sinal de que estamos perdendo o sentido de nação, de comunidade integrada. Por que isso e o que podemos fazer a respeito?
Como discute Yuval Harari em “Sapiens: A Brief History of Humankind”, “nós acreditamos em uma particular ordenação (das coisas) não porque ela é objetivamente verdadeira, mas porque acreditar nela nos permite cooperar efetivamente e construir uma sociedade melhor”. Mas, completa Harari, “uma ordenação imaginada está sempre sob risco de colapso, porque ela depende de mitos, e mitos desaparecem quando as pessoas deixam de acreditar neles”.
É também a conclusão a que chega Carvalho, ao argumentar que “[a] existência de uma nação, resumia (Ernest) Renan na expressão que ficou famosa, é um plebiscito de todos os dias, é a vontade comum de seus habitantes. Nessa visão, a convivência difícil e tensa entre as duas dimensões, a invenção e a participação, é que viabiliza uma identidade nacional efetiva. O excesso de esquecimento e erro leva à ineficácia da narrativa nacional em construir a identidade de um povo. Caso já haja identidade em construção, ela pode levar aos seu esvaziamento e, eventualmente, a sua crise. Nessa hipótese, coloca-se como exigência a reformulação do imaginário nacional, a reescrita da memória de acordo com a vontade dos cidadãos”.
Acredito que a identidade brasileira está em crise, como fica claro desde a redemocratização em meados dos anos 1980. Temos buscado reformulá-la, mas sem coordenação, criticando a nós mesmos, ou uns aos outros, e buscando mudanças pontuais, em vez de nos unir para reinventar nosso imaginário nacional. É muita polarização e muita raiva. O resultado é o desajuste fiscal e a elevada incerteza, que inibem o crescimento e nossa capacidade de construir uma sociedade melhor.
Precisamos refletir mais objetivamente sobre isso, tendo a reinvenção da nação como foco principal. A celebração do bicentenário da Independência é um ótimo momento para discutir as lições e como melhorar as coisas para a frente. Ou acabará se perdendo em outra rodada de brigas, como nos 500 anos do Descobrimento.
Este artigo foi publicado originalmente pelo Correio Braziliense em julho de 2020
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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