Trabalho

O “gender gap” no mercado de trabalho pode ser mitigado por boas políticas públicas

4 out 2022

Diferenças de gênero no mercado de trabalho abarcam taxa de participação, taxa de desemprego e diferenciais de rendimento, e podem ser mitigadas com provisão de creches de qualidade e regras mais avançadas de licença parental.

As diferenças de gênero no mercado de trabalho são um tema que tem despertado crescente interesse da sociedade civil e dos pesquisadores, e que tem começado a influenciar o debate sobre políticas públicas. O chamado “gender gap” é um item importante do “S” no chamado ESG, o conjunto de compromissos e práticas em termos de meio ambiente, questões sociais e governança que é crescentemente adotado por empresas em todo o mundo.

A economista Janaína Feijó, pesquisadora do FGV IBRE que têm se dedicado ao tema, aponta um conjunto de questões básicas sobre as diferenças de gênero e o mercado de trabalho. A primeira, naturalmente, é se elas efetivamente existem. Em seguida, é preciso verificar se são sistemáticas ou ocasionais. O próximo passo é tentar descobrir e compreender os fatores que contribuem para o gender gap. Finalmente, quando se chega à etapa de elaboração, implantação e execução de políticas públicas, a questão é saber por que e como mitigar as diferenças de gênero.

Quando se discutem diferenças de gênero no mercado de trabalho, há uma tendência de focar quase totalmente nas divergências salariais entre homens e mulheres. No entanto, o tema abarca todos os principais indicadores relacionados ao trabalho: taxa de participação, taxa de desemprego, diferenciais de rendimento por gênero, distribuição de rendimentos por gênero e composição de gênero nas ocupações de maiores salários.

Historicamente, a taxa de participação das mulheres tem sido inferior à dos homens no Brasil (como na maior parte do mundo). Entre o primeiro trimestre de 2012 e o mesmo período de 2020, a taxa de participação dos homens no Brasil caiu 1,5 ponto percentual (pp), saindo de 74,3% para 72,7%. Já a das mulheres subiu 2,3pp, de 51% para 53,4%. Como se vê, apesar de grande, a diferença vinha caindo lentamente até a pandemia, passando de 23,2pp para 19,4pp entre os primeiros trimestres de 2012 e 2022.

A chegada da Covid-19, entretanto, interrompeu essa convergência. A queda da participação feminina, de 6,1pp, foi maior que a masculina, de 5pp. No caso das mulheres, de 53,4% no 1º tri de 2020 até um mínimo de 47,3% no 3º tri de 2020. No dos homens, de 72,7% no 1º tri de 2020 até um mínimo de 67,8% no 2º tri de 2020. Mas o principal é que, enquanto a participação dos homens voltou à tendência pré-pandemia, atingindo 72,6% no segundo trimestre de 2022, a feminina ainda está cerca de 2pp abaixo da tendência, chegando a 53,2% no 2º tri de 2022.

Em relação à participação feminina no mercado de trabalho, é notável também que a diferença em relação à dos homens é maior em países latino-americanos como Argentina (-19,5pp), Brasil (-20pp), Chile (-20,6pp), Colômbia (-24,9pp) e México (-32,4pp) do que em nações avançadas como Estados Unidos (-10,5pp) e Reino Unido (-7,2pp), e do que a média da OCDE (-15,3pp). Os dados são de 2021.

Em termos de taxa de desemprego, as mulheres também apresentam tradicionalmente números piores do que os dos homens. No Brasil, segundo dados da PNAD Contínua, essa diferença era de 4,3pp no primeiro trimestre de 2012 (6,2% para os homens e 10,5% para as mulheres) e de 4,1pp no segundo trimestre de 2022. Durante a pandemia, no entanto, a divergência aumentou, chegando a um máximo de 6,4pp no primeiro trimestre de 2021.

Na comparação internacional, a diferença entre gêneros na taxa de desemprego não segue um padrão tão nítido de ser menor nos países avançados, como no caso da taxa de participação. A diferença na taxa de desemprego em 2021 entre homens e mulheres foi de 0,1pp no México, 0,3pp nos Estados Unidos, 0,4pp no Reino Unido, 0,4pp no Chile, 0,5pp na média da OCDE, 2,4pp na Argentina, 5,8pp no Brasil e 7,8pp na Colômbia.

Finalmente, há a diferença mais significativa entre homens e mulheres no mercado de trabalho, relativa à renda auferida. Esse diferencial tem caído lentamente, mas ainda é muito significativo. No segundo trimestre de 2012, o rendimento médio habitual dos homens no mercado de trabalho era de R$ 2.983, 34,8% superior ao das mulheres, de R$ 2.212. Dez anos depois, no segundo trimestre de 2022, o rendimento real dos homens era de R$ 2.917, 27,3% superior ao das mulheres, de R$ 2292.

Esses números, porém, não captam a verdadeira realidade da defasagem salarial entre homens e mulheres, porque as trabalhadoras brasileiras têm em média características relativas à raça, à região, à área censitária, ao setor de atividade, ao nível educacional, à experiência, ao tipo de emprego (se é formal, se é servidor público etc.) e às horas trabalhadas que no Brasil estão associadas a maiores remunerações.

Quando esse ajuste é feito, para se comparar trabalhadores e trabalhadoras semelhantes em termos de características determinantes do nível de rendimento, a diferença entre o rendimento habitual de homens e mulheres sobe para 42,8% em 2012 e 34,1% em 2022. Como no caso da comparação sem ajuste, há uma melhora no período, mas o diferencial ainda é muito grande. Como exemplo de característica das trabalhadoras brasileiras associada a maiores rendimentos na comparação com os homens, está a parcela delas com ensino superior em 2022, de 29,3%, bem superior aos 17,6% de trabalhadores do sexo masculino com o mesmo nível educacional. 

Apesar de serem mais qualificadas e em média terem outras características associadas a maiores rendimentos, as trabalhadoras perfazem 53,6% do total do decil inferior de remuneração no Brasil, e os homens, 46,4%. Já no decil superior de rendimentos, 66,3% dos trabalhadores são homens e apenas 33,7%, mulheres. Houve um pequeno progresso desde 2012, quando esses percentuais eram de, respectivamente, 66,8% e 31,2%.

Tomando-se apenas os trabalhadores com ensino superior completo (e idade entre 24 e 60 anos), nota-se fenômeno semelhante. No decil inferior de rendimento no Brasil, trabalhadoras com esse perfil correspondem a 72,7% da população ocupada, enquanto os homens são 27,3%. Já no decil superior de rendimento, entre os trabalhadores com ensino superior completo, 66,9% são homens e somente 33,1% mulheres. Tanto no decil inferior quanto no superior, essas diferenças eram ainda maiores em 2012, mas o progresso até 2022 foi bastante limitado.

Quando se examina a composição por gênero nas ocupações de maiores salários, a partir dos microdados da PNADC, evidencia-se novamente a sobrerrepresentação masculina, apesar de os homens terem em média menos qualificação que as mulheres, como já visto.

Entre 12 ocupações com maiores rendimentos (salário médio de R$ 10.294) no segundo trimestre de 2022, uma parcela de 65% das vagas era ocupada por homens e 35% por mulheres. Nesse grupo como um todo, eles em média ganhavam R$ 10.805, e elas, R$ 9.359. Na ocupação “diretores gerais e gerentes gerais”, a de maior rendimento, 71% eram homens, com ganho médio mensal de R$ 17.269, e 29% mulheres, com R$ 15.307. Em 11 das 12 ocupações mais bem remuneradas, há mais homens que mulheres; e em dez de 12, a renda média deles é maior que a delas.

A maternidade aparece como um fator evidente das disparidades de gênero no mercado de trabalho. Com base em dados da PNADC do quarto trimestre de 2021, relativos a casais heterossexuais vivendo em união estável ou casados, há uma queda da taxa de participação da mulher de 48% para 21,5% quando nasce um filho (considerando-se como momento anterior a situação em que o casal não tem filhos com menos de 18 anos). A partir do nascimento da criança, a participação feminina aumenta muito gradativamente, permanecendo inferior a 40% até quase cinco anos de idade do filho, e não voltando ao nível anterior ao nascimento antes que este (ou esta) complete 18 anos.

Já em relação ao pai, nada de parecido ocorre, e a participação no mercado de trabalho permanece praticamente estável entre o nascimento e os 18 anos do filho. Como era de se esperar, a defasagem da participação de homens e mulheres em casais heterossexuais com filhos de zero a 18 anos é extremamente significativa. No momento em que o filho nasce, a diferença de participação, em favor do homem, sai do nível de 21,66pp para 49,66pp. Ao longo dos primeiros anos do filho, a diferença tende a diminuir, mas ainda assim não volta ao que era antes do nascimento da criança nem aos 18 anos.

Como explica Feijó, a interrupção em si mesma da carreira de tantas mulheres não é o único fator de redução de rendimentos ao longo da vida laboral e de outras dificuldades no mercado de trabalho associadas à maternidade. Não é uma questão que surja apenas do lado da trabalhadora – o próprio empregador tende a embutir esse custo nos salários oferecidos e também, em função dessas interrupções ou às vezes encerramento da carreira, reserva ofertas de melhores vagas e promoções preferencialmente para homens em detrimento das mulheres.

Normas sociais e culturais têm papel determinante, claro, nos encargos desproporcionais da maternidade, comparada à paternidade, na preponderância da mulher nas “tarefas do lar” (incluindo cuidados a idosos nos domicílios) e em outras funções não remuneradas ligadas à família e à vida cotidiana, que sobrecarregam a população feminina em idade de trabalhar.

Quando se pensa em políticas públicas para abordar a questão do “gender gap” no mercado de trabalho, o cardápio inclui iniciativas como provisão de creches de qualidade, estímulo a ocupações “amigáveis” à vida em família e a licença parental.

Em relações ao acesso a creches, a literatura econômica indica, por meio de diversos estudos, que se trata de fator importante de elevação da oferta de trabalho e da participação das mulheres, com impactos positivos também na redução do desemprego feminino e na formalização e renda das trabalhadoras.

Particularmente nos países desenvolvidos, onde a provisão de creches é amplamente difundida – e a participação feminina no mercado de trabalho tende a ser maior do que em importantes países da América Latina, como se viu acima –, há uma vasta literatura econômica medindo seus efeitos nas mais diversas dimensões, com foco especial nas famílias mais vulneráveis.

Grande parte desses estudos indica que os cuidados com a criança na primeira infância são o componente da política pública voltada às famílias com maior impacto sobre o emprego materno.

Mateo Díaz e Chamussy (2013), por exemplo, apresentam um conjunto de evidências empíricas, para os países desenvolvidos e em desenvolvimento, indicando que a provisão pública de creches (ou subsídios a creches) ajuda as mulheres a se reinserirem no mercado de trabalho durante os primeiros anos de maternidade e também aumenta a probabilidade de as mães procurarem emprego ou estarem empregadas.

No Brasil, um dos objetivos do Plano Nacional de Educação (PNE) é ampliar a oferta de educação em creches de forma a atender com qualidade um mínimo de 50% das crianças de zero a três anos de idade até 2024. Em 2019, uma parcela de 37% das crianças dessa faixa etária frequentava creches. Como se vê, apesar de progressos e de apontar na direção certa, a política pública de creches no Brasil ainda está longe da solução desse problema em relação à totalidade das mães em idade de trabalhar.

Já as ocupações “amigáveis” à vida familiar são aquelas com horários flexíveis, possibilidade de trabalho em casa e com provisão ou suporte financeiro, por parte do empregador, relativos a creches ou licenças remuneradas para resolução de questões familiares. Embora essa cultura dos trabalhos amigáveis à família ainda não esteja muito presente no Brasil, a reforma trabalhista e a própria indução ao trabalho remoto pela pandemia podem ter contribuído para avançar essa pauta. No segundo caso, porém, a possibilidade de trabalhar de casa permanece muito pequena para as ocupações de menor qualificação e renda.

E há, finalmente, a questão da licença parental. No Brasil, não há esse tipo de licença: a regra básica são quatro meses de licença maternidade para a mulher (com a possibilidade de se iniciar antes do parto) e apenas cinco dias de licença paternidade para o pai. É uma lei que se coaduna com os dados apresentados acima sobre a participação de homens e mulheres no mercado de trabalho após o nascimento de um filho, responsabilizando apenas as mulheres pelas tarefas de cuidado.

Em países desenvolvidos, entre os quais o destaque nessa área geralmente está na Escandinávia, é comum a licença parental poder ser alocada em comum acordo entre o pai e a mãe (ou entre os parceiros em caso de uniões homoafetivas), guiada pela decisão autônoma do casal sobre a divisão das tarefas de prover o pão e cuidar da criança. Uma abordagem bem mais equitativa, que certamente contribui para reduzir o “gender gap” no mercado de trabalho.

Mais recentemente, como nota Ligia Fabris, professora da FGV Direito Rio, trabalhadoras de empresas que fazem parte do programa Empresa Cidadã ganharam o direito a mais dois meses de licença-maternidade, que agora podem ser divididos com o pai (se a empresa deste também fizer parte do programa). Alternativamente, a empresa pode conceder, em vez dos dois meses adicionais de licença, dois meses de trabalho em meio expediente com salário integral.

O pai só pode compartilhar a licença adicional de dois meses após o cumprimento da licença maternidade. Independentemente disso, tem uma prorrogação de 15 dias na licença paternidade. Em ambos os casos, é necessário que ele também esteja empregado no regime de Empresa Cidadã.

Embora veja algum avanço nessa medida, ao incluir os pais por mais tempo nas tarefas de cuidado, Fabris afirma que a legislação brasileira ainda considera as mulheres como cuidadoras exclusivas de crianças mais novas.

Ela nota que a possibilidade de a mulher dividir com o pai os dois meses extra de licença, em caso de empresas participantes do Empresa Cidadã, e a alternativa de trabalho em meio expediente por dois meses não acrescentam direitos à mulher, pois, em ambos os casos, a flexibilização tem uma contrapartida negativa – menos tempo da licença da mãe, no caso de compartilhamento com o pai, ou o trabalho em meio expediente quando se previa licença integral, no caso da extensão dos dois meses. Isso porque, por fim, nenhum tempo adicional foi acrescido: o que se abriu foi a possibilidade de a licença adicional da mulher ser partilhada com o homem ou ser cumprida como regime de trabalho parcial. Além disso, a lei não faz qualquer menção expressa a casais homoafetivos.


Esta é a Carta do IBRE de outubro/2022, da Conjuntura Econômica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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Maria Paula da Silva
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