Macroeconomia

O governo Bolsonaro e a questão militar

28 jan 2019

Com a posse de Bolsonaro e de seus ministros no primeiro dia de 2019 e, depois, com a nomeação de vários titulares de importantes cargos do segundo e terceiro escalões do Executivo Federal, ficou patente a ampla fatia de poder que os militares terão sob o novo presidente, sem falar no seu vice, o general de quatro estrelas Hamilton Mourão[1]. Conquanto se faça uma distinção entre oficiais da ativa e da reserva para justificar a marcante presença dos últimos no governo e, assim, preservar a imagem institucional das Forças Armadas, o fato é que, estejam ou não exercendo funções, os militares têm, quase sempre, visões de mundo e preferências semelhantes. Além disso, a população e as elites civis percebem e tratam os militares como um grupo coeso, usem ou não farda.

Não à toa, tem sido grande o número de artigos e matérias na imprensa escrita e televisionada sobre o papel das Forças Armadas nos próximos quatro anos. Alguns analistas temem que elas ajam como se fossem um partido, tutelem o processo político e imponham seus interesses corporativos à agenda de reformas econômicas do ministro Paulo Guedes. Outros veem os generais que cercam o presidente como um fator de moderação aos excessos ideológicos do bolsonarismo, lembrando também que os oficiais de alta patente de hoje em dia diferem muito dos que lideraram o regime de 1964-1985, sendo mais liberais em temas econômicos e mais comprometidos com a democracia e os ditames constitucionais. Os dois lados têm razão.

Todavia, os comentaristas que têm abordado o assunto não mencionam explicitamente duas questões relevantes e que merecem maior reflexão: o grau de controle dos militares pelos civis (ou o grau de subordinação dos militares à autoridade política dos civis) e a elaboração e orientação da política de defesa. É o que se tenta fazer a seguir.

O referido controle é uma condição necessária de um regime democrático. Não há democracia quando as Forças Armadas vetam decisões governamentais que não digam respeito à defesa nacional. Existe tutela militar justamente quando há esse tipo de veto. Nesse sentido, até o momento, não se pode dizer que o Brasil esteja sob tutela militar, mas o risco existe, sobretudo se a corporação castrense contribuir decisivamente para a derrota da reforma da Previdência prometida pelo ministro da Economia.

Além disso, há graus e graus de controle dos militares pelos civis. Ainda que a participação dos militares no governo tenha sido uma importante promessa de campanha de Bolsonaro e, mesmo sem haver tutela, a presença de tantos oficiais em cargos tipicamente civis do Executivo Federal implicará o enfraquecimento desse controle. E isso não será bom para a política de defesa e para as próprias Forças Armadas. Por quê?

A partir do final do século passado, muita coisa começou a mudar nas relações civis-militares em geral e no papel dos civis na política de defesa em particular, em virtude (1) da criação do Ministério da Defesa em 1999; (2) da publicação da Estratégia Nacional de Defesa em 2008, redigida tanto por civis como por militares; (3) do início, em 2009, de um amplo e ambicioso programa de reaparelhamento das Forças Armadas; (4) da promulgação da Lei da Nova Defesa em 2010; e (5) da publicação do primeiro Livro Branco da Defesa Nacional em 2012, escrito com considerável participação de civis.

Aqueles fatos e eventos indicavam claramente o fortalecimento do controle dos militares pelos civis, um maior envolvimento destes na elaboração da política de defesa e uma maior saliência desta na agenda política nacional. O Brasil, ainda que lenta e tardiamente, avançava no que Narcís Serra, o respeitado ministro da defesa da Espanha no período1982-1991, chamou de a transição militar, que ocorre concomitantemente à transição política para a democracia.

As transições militares têm etapas muito claras A primeira tarefa das novas elites democráticas é evitar golpes de Estado. A segunda é remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia. A última é o estabelecimento da supremacia civil, definida “... como a capacidade de um Governo civil democraticamente eleito de levar a cabo uma política geral sem intromissão por parte dos militares, definir as metas e organização general da defesa nacional, formular e levar a cabo uma política de defesa, e supervisionar a aplicação da política militar”.[2] Até há pouco, o Brasil ensaiava ingressar na última etapa.

Eis que – por uma série de razões, a maioria das quais decorrentes da incompetência e corrupção dos civis – elege-se Bolsonaro. Primeira consequência óbvia desse fato: enquanto permanecer alta a presença dos militares no governo, a ideia de estabelecer a supremacia civil está suspensa. Para além disso, haverá também erosão das bases da segunda etapa, na qual ainda nos encontramos? Mais especificamente, como ficará a participação dos civis na gestão do Ministério da Defesa (MD) e na elaboração da política de defesa, já que, desde de fevereiro de 2018, o MD tem sido chefiado por um general? Essas duas áreas ficarão sob total controle dos militares? O Congresso e os partidos aceitarão passivamente isso? No que toca à orientação da política de defesa, que, em sua essência, são os modos principais de emprego efetivo das Forças Armadas, estas se concentrarão quase que exclusivamente em missões internas ao território nacional, sobretudo nas frequentes operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)?

Todas as perguntas acima demandam reflexão e respostas urgentes por parte das elites civis e militares. Porém, isso parece estar longe acontecer, o que é muito preocupante. Além disso, os comandantes do Exército sempre afirmam que GLO é desvio de função e que gostariam de concentrar-se em suas tarefas precípuas. Contudo, será que realmente creem que, com tal presença de militares no governo em atividades eminentemente civis (cabe aqui lembrar que até o porta-voz do governo é um general de três estrelas – e da ativa), haverá fortes incentivos para que as Forças Armadas se dediquem prioritariamente às suas missões fundamentais, nomeadamente, a defesa das fronteiras nacionais, a manutenção da paz na América do Sul, o apoio à política externa e a prontidão para guerras interestatais?

A história é farta em exemplos que mostram que, quando as forças armadas de um país passam a exercer excessivamente atividades políticas, o aprestamento militar é a primeira baixa. Quem avisa amigo é.

Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de janeiro de 2019. Leia aqui a versão integral do BMI Janeiro/19. 

 As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 


[1] Para uma lista de nomeados militares até o dia 17 de janeiro de 2019, ver Rafael Neves, “Governo Bolsonaro já passa de 30 militares em postos-chave”, Congresso em Foco, 18/01/2019, disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/governo-bolsonaro-ja-passa-de-30-militares-em-postos-chave/.

[2] Narcís Serra, La Transición Militar: Reflexiones en Torno a la Reforma Democrática de las Fuerzas Armadas (Barcelona: Randon House Mondadori, 2008, p. 47).

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VENANCIO GROSSI

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