Macroeconomia

O orçamento da defesa de 2020: de um desequilíbrio a outro

21 fev 2020

As contas públicas de 2019 encerraram o ano com um déficit R$ 10,5 bilhões acima do esperado. Porém, em dezembro, foram aportados R$ 7,6 bilhões à EMGEPRON para a construção de quatro corvetas para a Marinha. Havia a expectativa, dentro do próprio governo, de que a estatal receberia aquele valor ao longo dos próximos anos, e não todo de uma vez. Além disso, o presidente Bolsonaro proibiu que o orçamento para o Ministério da Defesa (MD) seja contingenciado em 2020. Entretanto, as verbas de pesquisas da CAPES se reduzirão à metade, o mesmo devendo acontecer com os recursos orçamentários destinados às universidades federais. A proteção dada ao orçamento da Defesa implicará a contenção de despesas referentes a uma fatia considerável dos gastos sociais. O orçamento do Ibama para 2020 foi cortado em quase um terço, após já haver sido podado em 2019. Antes das decisões tomadas ao apagar das luzes de 2019, Bolsonaro já havia conferido grandes vantagens às Forças Armadas, ao cobrar-lhes apenas aproximadamente R$ 1 bilhão por ano como economia previdenciária e conceder-lhes um amplo aumento salarial. Criou-se também um dispositivo legal que permite que militares da reserva atuem no setor público com aumento de soldo de 30%. E não se deve jamais esquecer que 2.500 militares foram nomeados para ministérios e autarquias durante o ano passado[1].

A explicação para os impressionantes benefícios obtidos pelos militares é óbvia: eles são um dos pilares de sustentação política do atual governo. E apoio político sempre implica contrapartidas em termos de nomeações para cargos na administração federal e recursos orçamentários. Trata-se, ironicamente, de regra clássica do tão criticado presidencialismo de coalizão. Só que, dessa vez, a coalizão não é com partidos, mas, sim, com o braço armado do Estado.

Além disso, no contexto de um penoso ajuste fiscal, o governo tomou outra decisão típica da velha política: os custos do ajuste devem recair sobre os ombros dos setores supostamente associados à oposição. Daí, os duros cortes orçamentários que sofrerão órgãos ligados à pesquisa acadêmica, às universidades e à proteção do meio ambiente. E, como já mencionado, despesas do gasto social deverão ser contingenciadas ao longo de 2020 para garantir a estabilidade do orçamento da Defesa.

Em suma, o Brasil se encontra num dos polos do famoso efeito do tipo cobertor curto entre canhões e manteiga (o termo original é em inglês: “guns versus butter tradeoff”). Esse é um fenômeno que começou a se manifestar de forma aguda na Europa, no começo do século XX. Até o final do século XIX, a maior fatia dos orçamentos nacionais era, em geral, voltada para o gasto militar. Contudo, no rastro do processo de democratização pela qual passavam, por exemplo, França e Grã-Bretanha, e do acirramento dos conflitos geopolíticos entre as grandes potências, passou a haver uma intensa competição entre, por um lado, as demandas por aumento do gasto social (manteiga) vocalizadas por partidos liberais e de esquerda e, por outro, as demandas por aumento do gasto militar (canhões) vocalizadas por partidos conservadores. Os debates em torno do orçamento britânico entre 1906 e 1909 são exemplares nesse sentido. O governo liberal desejava elevar substancialmente o gasto social, mas a crescente e ameaçadora marinha de guerra alemã forçou o gabinete de Herbert Asquith a aceitar a pressão dos conservadores e aprovar um oneroso programa de construção de encouraçados.

Voltemos ao Brasil da terceira década do século XXI. Decisões tomadas pelo Executivo e pelo Congresso em 2019 e o orçamento de 2020 sinalizam a preferência pelo gasto em defesa em detrimento do gasto social. Só que o país não está a enfrentar nenhuma ameaça séria à segurança nacional que justifique tal opção. No entanto, a situação social é muito grave: desemprego alto, aumento da informalidade, crises urbanas as mais diversas, crescente desigualdade e indicadores educacionais deprimentes. Portanto, há um problema com o orçamento do Ministério da Defesa de 2020.

A questão é muito complexa, pois há de se reconhecer que a construção daquelas quatro corvetas é importante para o Brasil. Assim como também o é a conclusão do nosso submarino propulsionado à energia nuclear, do programa de modernização da Força Aérea por meio da aquisição de caças Gripen e do programa de blindados Guarani, do Exército, entre outros. Com amplos interesses e responsabilidades nacionais e internacionais, o Brasil – o maior país latino-americano e nona economia, sexta população e quinto território mundiais – é um anão militar. O gasto em defesa do país, aproximadamente 1,5% do PIB, está dentro da média mundial, mas a parcela desse gasto despendida com pessoal foi, na média de 1999-2016, de exorbitantes 75,5%. Na França e no Reino Unido, no mesmo período, foi de 54,2% e 38,2%, respectivamente. Somos um anão militar por conta da pequena fatia do gasto em defesa aplicada em investimentos: 8,3% em média entre 1999 e 2016 (23,5% para a França e 22,9% para o Reino Unido, no mesmo período)[2]. Portanto, há um problema estrutural com o orçamento de defesa brasileiro.

Diga-se, de passagem, que a responsabilidade pelo baixo investimento em defesa é, preponderantemente, dos civis. É uma longa história que não poderá ser contada nos estreitos limites deste artigo. Mas o que fazer? O que esperar nos próximos anos?

Enquanto estiver no poder, Bolsonaro continuará a privilegiar as Forças Armadas com medidas orçamentárias. A dúvida está em saber o que farão o Ministério da Economia e o Congresso diante disso. Por enquanto, ambos têm relutado em criticar o presidente e os militares. É provável que continuem assim até 2022.

A bola estaria, então, com a oposição. Porém, desse campo também não tem saído nenhuma reflexão sólida a respeito do que fazer com a chamada questão militar. Parece haver grande temor em tocar abertamente no assunto, como se sentissem intimidados pela presença de tantos generais no governo. Isso só reforça o diagnóstico feito logo acima, ou seja, as coisas deverão continuar como estão até o final do mandato de Bolsonaro.

Só resta, então, torcer para que a campanha presidencial de 2022 gere algum debate sobre qual deve ser o tamanho do orçamento de defesa e o papel da Forças Armadas na política doméstica. Pensando no médio prazo, convém registrar que os militares sabem que um próximo governo que não seja bolsonarista vai cancelar boa parte dos ganhos que têm obtido desde 2019. Ou seja, melhor agora do que nunca. Talvez isso explique por que os R$ 7,6 bilhões foram aportados à EMGEPRON em apenas um ano, não ao longo de três. Esse tipo de comportamento tem tudo para gerar desconfiança e ressentimento no seio das elites civis e, daqui a pouco, no da população.

Assim, o orçamento de defesa irá de um desequilíbrio a outro. Antes, os investimentos em defesa não estavam sintonizados com as dimensões, os interesses e as responsabilidades do Brasil – foram insuficientes e ineficazes. Doravante, não estarão em linha com a triste realidade social do país – são demasiados. Desse jeito, jamais teremos uma defesa nacional digna do nome.

Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de outubro de 2019. Leia aqui a versão integral do BMI Fevereiro/20. 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

[1] Todas essas informações foram extraídas de “Governo de Bolsonaro dá a primazia aos militares”, Valor Econômico, 06/02/2020, disponível em https://valor.globo.com/opiniao/noticia/2020/02/06/governo-de-bolsonaro-da-a-primazia-aos-militares.ghtml.

[2] Esses dados se encontram em Juliano da Silva Cortinhas, “Brazil and the Construction of Its Power to Defend the South Atlantic”, em Érico Duarte e Manuel Correia de Barros (orgs.), Navies and Maritime Policies in the South Atlantic (Palgrave Macmillan, 2019, pp. 151-185).

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J. Batista

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