O pretorianismo e seus custos
Tendência à intervenção de militares no governo voltou no Brasil. Debelá-la exige vontade e capacidade política de governos. Pretorianismo inibe líderes políticos democráticos de usar Forças Armadas para suas funções precípuas.
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o adjetivo “pretoriano” é “relativo ou pertencente à guarda dos imperadores da Roma antiga”, adjetivo que está na origem de um importante conceito da ciência política, pretorianismo. Na definição de Amos Perlmuter, “Um Estado pretoriano moderno é aquele em que os militares tendem a intervir no governo e têm o potencial para dominar o Executivo”.[1]
O Brasil que vai do golpe militar que instaurou a República em 1889 até o governo Sarney (1985-1990) foi um exemplo típico de Estado pretoriano. A partir do fim da década de 2000, havia indícios de que o país finalmente superara o moderno pretorianismo que havia marcado indelevelmente os primeiros cem anos da República, com seus frequentes golpes, quarteladas, pronunciamentos e um longevo regime militar.
Ledo engano. Afinal, tivemos o governo Bolsonaro, o qual, além de ter levado os militares novamente para o centro do Poder Executivo, desaguou no infame episódio de 8 de janeiro de 2023, em que as sedes dos três Poderes foram assaltadas e depredadas por bolsonaristas.
Já no dia 8 de fevereiro de 2024, a Política Federal deflagrou a Operação Tempus Veritatis, cujos alvos são pessoas suspeitas de trabalhar para invalidar o resultado das eleições de 2022 antes mesmo da realização do pleito que viria conduzir Luiz Inácio Lula da Silva ao seu terceiro mandato presidencial. Entre os investigados, encontram-se militares de alta patente, alguns dos quais ainda estavam na ativa durante o último ano do governo Bolsonaro. A Operação também descobriu textos de decretos produzidos por assessores de Bolsonaro, após as eleições, que ofereceriam fundamentação jurídica para a realização de novas eleições.
Sabe-se que a trama fracassou, mas foi ou não uma tentativa de golpe de Estado?
Aqui a precisão conceitual se faz novamente necessária. Em percuciente trabalho sobre o conceito de golpe de Estado, Leiv Marsteintredet e Andrés Malamud mostram que este possui três ingredientes conjuntamente necessários: “Um golpe é realizado por atores dentro ou pertencentes ao Estado. [...] As vítimas de um golpe de Estado são o governo, o chefe de governo e/ou de Estado. O objetivo dos golpistas é implementar uma mudança no governo […] Uma característica definidora de um golpe é que a destituição do governo é ilegal ou também inconstitucional, uma vez que normalmente envolve pelo menos a suspensão temporária da ordem constitucional”[2].
É por conta do terceiro elemento – a destituição ilegal ou inconstitucional do governo – que a remoção de Dilma Rousseff em 2016 não pode ser considerada um golpe de Estado, porque o Supremo Tribunal Federal supervisionou todo o processo e, ao fim e ao cabo, o declarou constitucional.
Porém, por conta da presença conjunta dos três ingredientes referidos acima, o que aconteceu entre julho de 2022 e o 8 de janeiro de 2023, tal qual relatado pela Operação Tempus Veritatis, foi, sim, uma tentativa de golpe de Estado.
Afinal, a tentativa foi realizada por ministros, assessores presidenciais, policiais e militares – isto é, atores dentro ou pertencentes ao Estado –, os quais tinham como objetivo, inicialmente, impedir a posse do presidente eleito em outubro de 2022 e, depois, caso este fosse empossado, destituí-lo inconstitucionalmente por meio de uma intervenção militar. O fato de haver fracassado não torna a tentativa menos golpista.
Em suma, no Brasil, o pretorianismo voltou ao proscênio. Debelá-lo novamente exigirá muita vontade e capacidade política do atual e futuros governos.
Além de ser uma ameaça óbvia à democracia, o pretorianismo redivivo poderá deixar outro pesado custo para o país: gerar um ambiente de suspeição entre as elites civis e militares, tornando nossas lideranças políticas democráticas muito tímidas na hora de usar as Forças Armadas para as funções precípuas destas – a defesa nacional e o apoio à política externa –, justamente quando o sistema internacional está em uma transição muito instável, a qual poderá ocasionar conflitos militares entre as grandes potências[3], cujos efeitos chegarão rapidamente às nossas costas.
Esta é a seção Observatório Político do Boletim Macro Ibre de Fevereiro de 2024.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Ver Amos Perlmuter, The Military and Politics in Modern Times, New Haven: Yale University Press, 1977, p. 93.
[2] Ver Leiv Marsteintredet e Andrés Malamud, “Coup with Adjectives: Conceptual Stretching or Innovation in Comparative Research”, Political Studies Review, vol. 68, n. 4, 2020, p. 1023, disponível em https://doi.org/10.1177/0032321719888857.
[3] A esse respeito, ver, entre outros, o artigo de Hal Brands, “The Next Global War: How Today’s Regional Conflicts Resemble the Ones That Produced World War II”, Foreign Affairs, 26/01/2024, disponível em https://www.foreignaffairs.com/united-states/next-global-war.
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