Macroeconomia

O problema que a eleição não resolverá

15 jun 2018

A maioria dos economistas têm apontado o grande problema fiscal a ser enfrentado pelo próximo governo, pois o reequilíbrio do orçamento requer medidas estruturais, de recuperação de receita e redução do crescimento de gastos obrigatórios. Não vou repetir os números, já bem detalhados por vários analistas e disponíveis na página do Observatório Fiscal organizado por Manoel Pires no IBRE.

O problema fiscal é difícil, mas teoricamente menos complicado do que uma restrição sobre a qual não temos controle total, como uma crise cambial (falta de reservas internacionais como na Argentina de hoje) ou queda de oferta de um insumo básico por razões climáticas (como os efeitos da seca de 2014-15 sobre os preços da energia e dos alimentos).

A solução do problema fiscal é interna, só depende de nós mesmos, pois o governo (Executivo, Legislativo e Judiciário) tem todos os instrumentos para enfrentá-la.

A questão fiscal também é mais política do que econômica. Ao contrário do que diz a maioria dos meus colegas economistas, não existe somente uma forma de reequilibrar o orçamento.

No final das contas, a principal decisão fiscal é distributiva: como dividir os custos do ajuste (entre ricos e pobres, entre indústria, comércio e serviços, entre as regiões do país e assim em diante) e definir a velocidade das medidas (rápidas e sem qualquer atenuante no curto prazo ou graduais com medidas compensatórias).

Também teoricamente, as eleições poderiam resolver o impasse atual, em que um extremo do debate vende a ideia de que somente combatendo a corrupção (imprescindível) e melhorando a gestão (obrigação de qualquer governo) geraremos os recursos necessários para reequilibras as finanças públicas (ilusão), enquanto o outro polo responde com a miragem de que basta tributar os mais ricos (necessário) e estimular o crescimento via investimento (correto) sem qualquer reforma estrutural do gasto (completamente errado).

Como acontece na maioria das questões econômicas, a solução envolve ações em várias áreas em vez de se apostar em um extremo ou “solução de canto”, como dizemos nós economistas.

Em outro post neste blog – “a PEC do compromisso” – já coloquei que um debate transparente, objetivo e moderado (sem espantalhos) das questões fiscais poderia criar o mínimo de consenso para combinar flexibilização fiscal no curto prazo com reformas estruturais de longo prazo, ao mesmo tempo em que se mantenha o esforço contínuo de combate à corrupção e melhoria da gestão.

Infelizmente tudo indica que não teremos um debate transparente, objetivo e moderado de nossos problemas. Mas como sou economista, vou usar minha prerrogativa e assumir que isso acontecerá para colocar outra questão importante: existe um problema maior do que o desequilíbrio orçamentário que não será resolvido pelas eleições, pois envolve os poderes não eleitos pela população.

Nos últimos anos assistimos à perda lenta, gradual e insegura da governabilidade do Brasil devido à intervenção judicial em assuntos dos poderes Executivo e Legislativo. O necessário combate à corrupção gerou excessos, destruindo empregos e empresas sem necessidade, além de criar grande incerteza jurídica sobre a validade dos acordos judiciais e administrativos feitos entre setor privado e diferentes representantes ou agências de governo.

Para piorar a situação, a atuação de algumas autoridades do TCU durante o golpe parlamentar de 2016 aumentou ainda mais a incerteza jurídica no dia-a-dia do governo e das empresas, pois se mudanças de entendimento da corte de contas (normal) puderem ser aplicadas de modo retroativo (anormal) para penalizar gestores com objetivos eminentemente políticos, a máquina pública racionalmente parará de tomar decisões rotineiras.

Mais especificamente, a insegurança jurídica criada pela aplicação retroativa de novas interpretações administrativas do TCU significa que o que era aceitável hoje pode deixar de ser aceitável amanhã, com penalização dos gestores que simplesmente estão seguindo a jurisprudência vigente.

Diante dessa incerteza, não surpreende que a máquina pública tenha parado até em decisões simples e o governo agora não consiga utilizar os poucos recursos disponíveis para aumentar seu investimento e destravar questões regulatórias.

A máquina parou não por que houve uma “infantilização” dos gestores, como disseram algumas autoridades recentemente. Os gestores do poder Executivo e empresas estatais são tão ou mais competentes do que seus colegas no Judiciário e órgãos de controle, além de mais experientes em lidar com questões do dia-a-dia de políticas públicas.

A máquina parou por que os gestores também são racionais e respondem a incentivos. Hoje ninguém assina nada no governo sem o OK prévio do TCU, Ministério Público, AGU e órgãos similares justamente por não confiar mais no nosso sistema jurídico e de controle.

O golpe contra a Presidente Dilma Rousseff abriu o grave precedente de que o que é válido hoje pode ser considerado inválido amanhã com efeitos retroativos, de acordo com a conveniência política do momento. Assim, antes de tomar qualquer decisão, todo gestor honesto e racional vai demandar garantia jurídica daqueles que podem mudar de opinião ao seu bel prazer sem sofrer nenhuma consequência de seus atos.

A questão é grave. As eleições mudarão o comando dos poderes Executivo e Legislativo, mas o poder não eleito continuará o mesmo. Logo, se nada for feito para corrigir o atual desvio de função de nosso sistema de supervisão e controle, quem for eleito não conseguirá governar.

Nesse ponto é importante dizer uma coisa óbvia, mas que se perdeu na barafunda da intervenção judicial no Brasil dos últimos anos: concurso não é eleição!

É importante e vital ter servidores de Estado, escolhidos por concurso, para a boa governança do país, mas o governo cabe aos representantes eleitos pela sociedade, não a quem passou em um concurso.

Os órgãos jurídicos e de controle são essenciais para fiscalizar as ações dos eleitos, garantindo o respeito à Constituição e aos direitos básicos dos cidadãos (sobretudo das minorias no clima de hoje). Mas nesse processo também é preciso respeitar o princípio básico e constitucional da segurança jurídica, medir as consequências econômicas e sociais das ações tomadas e evitar uma disputa fratricida entre órgãos judiciais e de controle por protagonismo na mídia.

Além do desafio fiscal, que tem várias soluções, temos também o desafio de reconstruir a governabilidade do país. Passada a eleição, os novos representantes eleitos para o Executivo e o Legislativo terão, portanto, que chamar seus pares na Justiça, Ministério Público e TCU para elaborar uma ampla reforma do poder judiciário e dos órgãos de controle.

É preciso delimitar bem as áreas de atuação de cada instituição ou agência de supervisão e controle, criar mecanismos de cooperação para evitar um círculo (loop) interminável de acordos judiciais e definição de penalidades e, mais importante, estabelecer prestação de contas e responsabilização de membros do Judiciário e das cortes de conta quando houver excessos claros em suas ações, pois excessos ocorrem e não são poucos.

Como diz o velho ditado popular, junto com grande poder vem grande responsabilidade. Isso já vale para todos os gestores do Executivo, do Legislativo e das empresas estatais. O mesmo deve valer para o Judiciário e órgãos de controle, pois, do contrário, o Brasil permanecerá sob intervenção judicial do “poder concursado”, qualquer que seja o resultado da eleição.

Para resolver o problema não é preciso reinventar a roda. Basta ver como acontece em países avançados, ondem há coordenação entre órgãos judiciais e de auditoria na fiscalização das ações dos representantes eleitos pela sociedade, bem como prestação de contas, transparência e responsabilização de juízes, procuradores e auditores quando ocorrem excessos.

Sei que ainda estamos muito longe disso no Brasil, mas é possível avançar rápido e preservar o essencial: combater a corrupção e melhorar a gestão, gerando efeitos mais positivos do que negativos sobre a sociedade, mesmo no curto prazo.

Também sei que a maioria dos servidores do Judiciário e órgãos de controle tem consciência do problema e está disposta a colaborar, mas hoje está retraída diante do clima de perseguição ideológica e intervenção judicial que se instaurou no Brasil.

Para romper a barreira, caberá aos eleitos liderar o processo e mostrar o caminho. A proposta de reforma do Judiciário e das cortes de conta deve vir do Executivo e do Legislativo, em colaboração com os concursados do Judiciário e com especialistas do setor privado.

Assim, além de propostas econômicas difíceis, nossos candidatos à Presidente e ao parlamento também devem incluir a reforma do Judiciário e dos órgãos de controle como item crucial de seus programas de governo. Não será fácil, mas é inevitável para sair do impasse e crise em que nos metemos.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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Francisco Funcia
Jorge Eduardo
Guilherme Klein

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