Macroeconomia

O risco fiscal da falta de coordenação no combate à pandemia

4 mai 2020

Há cerca de um mês chamei atenção neste espaço para o risco de que medidas de política econômica inteiramente justificáveis em uma situação de calamidade pública, como a atual, eventualmente fossem misturadas com propostas que pudessem colocar em risco o arcabouço fiscal e legal do país.

Desde então alguns riscos não se materializaram, enquanto outros surgiram. Na primeira categoria incluíam-se alguns projetos que tramitam no Congresso, envolvendo criação de empréstimo compulsório, imposto sobre grandes fortunas, aumento abusivo de impostos e tabelamento de taxas de juros de cartão de crédito.

Esses projetos acabaram não avançando, embora essa possibilidade ainda não possa ser descartada. Uma razão para essa mudança na agenda legislativa foi o surgimento de projetos de caráter mais urgente, como a PEC do Orçamento de Guerra e proposições voltadas para o auxílio aos informais, às micro e pequenas empresas, e aos estados e municípios.

No que diz respeito ao auxílio aos informais, após a sanção presidencial do projeto que criou o benefício emergencial de R$ 600 por três meses (Lei 13.982/2020), foi aprovado no Congresso o PL 873/2020, que estendeu o auxílio para inúmeras categorias de trabalho informal que não haviam sido contempladas no projeto anterior. Esse projeto ainda não obteve sanção presidencial.

Em relação ao crédito empresarial, a MP 944/2020 criou um programa de financiamento da folha de pagamento para empresas com receita bruta anual entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões. Nas operações de crédito contratadas no âmbito desse programa, 85% do valor de cada financiamento será custeado com recursos da União e os restantes 15% serão custeados pelas instituições financeiras participantes.

Enquanto a MP 944/2020 tem como público-alvo as empresas pequenas e médias, o PL 1282/2020 criou o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), que oferecerá linhas de crédito para empresas com receita bruta anual de até R$ 4,8 milhões. Diferentemente do programa para pequenas e médias empresas, os recursos recebidos no âmbito do Pronampe poderão ser utilizados não somente para financiamento da folha de pagamentos, mas também para investimentos e capital de giro. As instituições financeiras participantes do Pronampe operarão com recursos próprios e poderão contar com garantia do Fundo Garantidor de Operações (FGO), limitada a 85% do valor de cada operação garantida. O Congresso aprovou o projeto no final de abril, mas ele ainda não foi sancionado pelo presidente.

Além de auxílio para trabalhadores e empresas, o Congresso avançou na tramitação do programa de auxílio para estados e municípios. Sábado passado foi aprovado no Senado o PLP 39/2020, que cria o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. A principal medida é uma transferência de R$ 60 bilhões da União para os entes federativos, dos quais R$ 10 bilhões serão destinados para a Saúde e os demais R$ 50 bilhões serão divididos entre estados (R$ 30 bilhões) e municípios (R$ 20 bilhões). Além disso, o programa envolve cerca de R$ 60 bilhões sob a forma de suspensão de dívidas dos entes com a União e renegociação de dívidas com instituições financeiras e organismos multilaterais.

Em compensação, foram incluídas algumas contrapartidas, como a proibição de aumento da despesa de pessoal nos 180 dias anteriores ao final de mandato. Também foi proibido qualquer aumento da despesa de pessoal com previsão de parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato. Outra medida importante foi a proibição de concessão de aumentos salariais e bonificações para servidores públicos até dezembro de 2021, com exceção de servidores das áreas de saúde e segurança pública diretamente envolvidos no combate à pandemia da Covid-19.

Essa breve descrição das medidas econômicas de combate à pandemia dão uma dimensão da sua grande abrangência. Seu impacto fiscal tem sido igualmente enorme. Na sexta passada, o Ministério da Economia divulgou sua última atualização do impacto fiscal das medidas. O impacto estimado é de R$ 349,4 bilhões, já incluindo os R$ 60 bilhões de auxílio para estados e municípios e R$ 15,9 bilhões do Pronampe. Também foram atualizadas as estimativas do auxílio aos informais, que subiu de R$ 98 bilhões para R$ 123,9 bilhões.

O déficit primário consolidado estimado pelo Ministério da Economia é de R$ 601,2 bilhões em 2020. Considerando uma queda do PIB de 3,34% em 2020 (estimativa mais recente do Boletim Focus), isso representaria 8,27% do PIB. Nesse cenário, a dívida bruta chegaria a 90,8% do PIB no final do ano.

Estimativas preliminares da Instituição Fiscal Independente (IFI), divulgadas semana passada, projetam um impacto fiscal negativo ainda maior. A IFI estima em R$ 454,4 bilhões o impacto fiscal das medidas de mitigação da crise da Covid-19 e um déficit primário de R$ 721,4 bilhões em 2020.

Diante desses números, os riscos fiscais aumentaram consideravelmente. O problema não é simplesmente o grande impacto fiscal das medidas e o salto na dívida pública já estimados, mas o fato de que o resultado primário ainda pode piorar bastante, seja devido ao aumento das despesas seja caso ocorra uma queda maior do PIB.

Como mencionei anteriormente, o projeto aprovado no Congresso que ampliou consideravelmente o número de trabalhadores elegíveis ao auxílio informal ainda não foi sancionado e seu efeito fiscal é incerto. Ao contrário de outros programas, o benefício para os informais não tem um valor pré-definido e pode ser eventualmente estendido caso a crise se prolongue.

No sábado o governo conseguiu aprovar no Senado um limite de R$ 60 bilhões para o programa de auxílio a estados e municípios, mas ainda resta a votação na Câmara. Também não pode ser descartada a possibilidade de que esse auxílio venha a ser prorrogado.

Nesse sentido, a falta de coordenação entre Executivo e Legislativo pode ter graves consequências. Problemas de articulação entre Câmara e Senado criam obstáculos adicionais, como ocorreu no projeto de auxílio a estados e municípios. Embora as circunstâncias justifiquem um aumento das despesas para combater a pandemia e proteger pessoas e empresas, o risco fiscal aumentou consideravelmente e precisa ser controlado.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 01/05/2020.

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CLEBER DE SOUZA

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