Pacote fiscal não afasta o risco de dominância fiscal
Medidas são muito pouco eficazes. Em particular, o crescimento das despesas tem alguma diminuição (teto de 2,5% para alta anual do salário-mínimo), mas pouco altera a trajetória explosiva de aumento dos gastos obrigatórios.
No meu artigo do mês passado para o Broadcast, eu argumentei que estávamos nos aproximando da situação de dominância fiscal. A dominância fiscal é uma situação na qual o desequilíbrio fiscal faz com que a dívida pública fique muito elevada e torna-se inevitável ter que ser reduzida em termos reais através de um aumento da inflação. No caso do Brasil, como há várias despesas públicas que são fixas em termos nominais (por exemplo, salários e aposentadorias do setor público), a inflação também causa uma redução dos gastos do governo em termos reais. O ministro Haddad anunciou uma série de ações que deveriam ser bastante fortes e cortar as despesas públicas. As estimativas oficiais eram de uma economia de 72 bilhões em dois anos. Análises independentes indicam uma economia muito inferior. Por exemplo, o Itaú estima o efeito do pacote em 53 bilhões em dois anos (“A semana em revista”, 29/11/2024). Em geral a tônica dos cálculos por terceiros do impacto do pacote tem sido bem inferior à estimativa do governo.
Dentre as medidas anunciadas está um teto aos supersalários de servidores do setor público (isto é, de salários que excedam o teto constitucional de ministro do STF). Esta é parte de uma PEC, que deixa para uma lei complementar os “detalhes”. Infelizmente, tendo em vista o empenho que governos têm no corte destes tipos de dispêndio, é difícil achar que terá impacto muito relevante. Corre o risco de cristalizarem e instituírem em definitivo privilégios que hoje são muito controversos, como o recebimento de “verbas indenizatórias” e de remunerações extrateto.
O parágrafo 2º do PLP210/2024 (parte do pacote) traz uma novidade que não tem sido incluída nas estimativas independentes do impacto das medidas: a possibilidade de utilização do superávit financeiro de oito fundos legais que somavam quase 40 bilhões de reais de forma livre. Como já expliquei em artigos no Broadcast, com esta utilização é possível “dar um drible” no arcabouço, fazendo com que estes recursos não passem pelas contas que formam o déficit primário do setor público. Assim, haveria uma “gordura” de 40 bilhões por ano (ou seja, muito mais que a economia do pacote) que poderia ser usada a qualquer momento sem ter impacto nos limites previstos pelo arcabouço fiscal. Este fato foi notado por Marcos Mendes.
Adicionalmente, concomitantemente às medidas acima, foi anunciada uma isenção de IR para os salários até 5000 reais. Algo que não tem relação alguma com o pacote de corte de gastos. Além de ser incrível que o governo deseje isentar salários que são muito (muito) acima da média do Brasil (o rendimento habitual médio na PNAD contínua de outubro foi de 3279 reais por mês). Para compensar esta despesa, há a proposta de elevação em 10% da alíquota de quem ganha mais do que 600 mil reais por ano. Mesmo com a Lei de Responsabilidade Fiscal e decisão do STF sobre as compensações, sabemos como estas discussões são: as benesses são aprovadas com louvor, mas os aumentos de tributos... Enfim, o efeito desastroso do anúncio do pacote fiscal, algo que deveria fazer com que ficassem de uma vez de lado as dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida pública, deixam claro que a elevação da isenção do IRPF é um assunto delicado e que exige muita atenção para ser feito na última hora e de forma atabalhoada.
As medidas anunciadas são muito pouco eficazes. Em particular, o crescimento das despesas tem alguma diminuição (com a imposição do teto de 2,5% para a elevação anual do salário-mínimo), mas pouco altera a trajetória explosiva de aumento dos gastos obrigatórios. Isto por uma razão muito simples. O salário-mínimo não só impacta aposentadorias pelo INSS, como também o BPC. Ambos os benefícios são dados a pessoas idosas, e a população mais velha do Brasil tem crescido a um ritmo muito acima do crescimento populacional. Assim, a proporção de pessoas que têm direito a estes benefícios tem aumentado. Em cima disto temos um indexador que eleva ano a ano a despesa nestes itens acima da inflação (até um limite de 2,5%). O resultado é uma dinâmica muito ruim dos gastos públicos, que se reflete em uma dívida pública em trajetória ascendente como proporção do PIB. Fora o fato que, como mostramos acima, o efeito pode até ser expansionista, se os superávits dos fundos legais forem usados extra arcabouço em sua totalidade.
O anúncio não afastou o risco de entrarmos em um regime de dominância fiscal. Os dados objetivos de mercado mostram que houve uma sensível piora entre o momento que escrevi meu artigo de novembro e agora. Primeiro, o dólar está próximo ou acima de R$6,00 desde um dia antes do anúncio das medidas fiscais. Isto mesmo após ter havido uma revisão do ritmo de aumento da Selic pelo Copom. E as taxas pré-fixadas estão indicando um nível final do ciclo de elevação em torno de 15% ao ano! Mesmo com juros maiores, ainda assim o real desvalorizou-se em relação a novembro. Segundo, a inflação implícita nos títulos em IPCA está mais alta ainda, chegando a 6,8% (?) nos prazos até 3 anos, cerca de 1% ao ano acima de quando escrevi em novembro. Terceiro, os discursos dos dirigentes do Bacen continuam duríssimos (cumprir a meta inatingível de 3% ao ano a qualquer custo) e as expectativas continuaram se deteriorando. Os sinais de ineficácia da política monetária parecem ainda mais acentuados.
Obviamente, tudo isto é passível de reversão, se uma política fiscal crível, que coloque a relação dívida/PIB numa trajetória decrescente nos próximos anos, for implantada em nosso país. E o trabalho do Banco Central está ficando cada vez mais difícil: conter uma inflação em alta, com medidas monetárias que apresentam sinais de eficácia cada vez menor.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Este artigo foi publicado originalmente pelo Broadcast da Agência Estado, em 10/12/2924, terça-feira.
Comentários
Deixar Comentário