Pandemia e crise econômica: primeiro ano
Diferentemente da grande crise financeira global, que produziu perda permanente de produto nos Estados Unidos e na Europa, no evento atual da pandemia as economias devem, após o término das campanhas de vacinação, voltar a operar na mesma tendência vigente antes da crise.
Um ano após a epidemia ter atingido o mundo todo e ter se tornado, portanto, uma pandemia, já é possível termos algumas ideias da natureza da crise. Ainda falta muito – tanto para o fim da pandemia como para uma melhor compreensão do fenômeno –, mas já se podem alinhavar alguns fatos.
A crise econômica causada pela pandemia tem características de queda da oferta e queda da demanda. Não é, como em geral ocorre em grandes crises macroeconômicas, um processo de recuo apenas da demanda. Houve um choque de demanda, mas houve também um choque de oferta.
Várias pessoas perderam sua renda ou experimentaram forte redução da renda. Consequentemente, a demanda caiu. Por outro lado, houve forte retração na oferta. O que recuou mais?
Mesmo considerando de forma estrita a política fiscal, é difícil responder essa pergunta. Tipicamente o impulso fiscal estimula a atividade. Não parece ser o caso no presente episódio. Na epidemia, parte do gasto público é para permitir que as pessoas fiquem em casa consumindo os bens de primeira necessidade. Não parece que haja muito estímulo fiscal à demanda. Se não houvesse o auxílio emergencial, a pessoa usaria suas reservas para manter algum consumo de bens de primeira necessidade – esta foi a escolha do governo chinês, jogar o custo da quarentena no colo das famílias. Se não tivesse nenhuma reserva, a pessoa iria para a rua procurar alguma ocupação na informalidade para gerar renda. Ou seja, não é tão clara assim a relação entre gasto público com políticas de sustentação da renda e a atividade econômica. Essas políticas têm uma natureza social mais do que macroeconômica.
De fato, trabalho recente do FMI sugere que o efeito do gasto público na ‘surpresa de crescimento’ em função da pandemia não foi expressivo. A surpresa de crescimento é medida pela diferença entre a previsão de crescimento do país específico ao longo do primeiro semestre de 2020 e a expansão efetivamente observada. Os países cujo estímulo fiscal foi muito maior tiveram surpresa de crescimento da ordem de 0,5 ponto percentual superior.[1]
Tudo sugere que, após um fechamento súbito das economias no 2º semestre de 2020 – a China fechou no 1º –, a atividade voltou com força no 2º semestre de 2020. Houve recuperação em ‘V’ das economias.
A retomada em ‘V’ foi heterogênea entre os setores. A agropecuária não sentiu a crise sanitária. A indústria de transformação recuperou-se fortemente. O mesmo ocorreu com o varejo liderado pelo comércio eletrônico. Os chamados ‘outros serviços’ – alimentação fora do domicílio, todo o entretenimento, seja ligado à cultura ou aos esportes, turismo e outros serviços pessoais – ainda não voltaram.
Principalmente nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, esse padrão de recuperação gera preocupações com possível agravamento do dualismo da economia: a retomada até o momento tem favorecido bem mais os setores mais formalizados e que empregam trabalhadores mais educados.
Também têm aparecido dois choques inflacionários associados à recuperação da epidemia. A Covid-19 forçou que as pessoas ficassem em casa se protegendo do vírus. As longas estadias em casa geraram a necessidade de compra de bens duráveis. As pessoas compraram novos computadores, televisões, reformaram a casa, adquiriram móveis, bicicletas, equipamento de ginástica etc. A fuga do transporte público elevou a demanda por carros novos e usados.
Estamos, portanto, ainda em meio a um choque forte e sincronizado, em todo o mundo, de demanda por bens. A indústria “bomba”. Há carência de matéria prima de todos os tipos. Tem sido noticiado, por exemplo, a falta de chips para a indústria automobilística. Não somente há falta de matéria prima para a indústria como a infraestrutura de transporte – fretes e serviços portuários – ligada ao comércio internacional tem apresentado gargalos importantes. Tudo indica que esse choque somente se dissipará no final de 2021 ou um pouco depois.
Para aquelas economias um pouco à frente do processo de reabertura, em que a demanda por serviços tem voltado, surgiu uma desorganização na oferta. Assim, faltam lugares nos restaurantes e os voos estão lotados. Diversos restaurantes foram fechados e as companhias aéreas reduziram muito o número de voos e os destinos para onde voam. Já aparece uma inflação de serviços nos EUA, por exemplo, após o avanço com a campanha de vacinação e o gradativo processo de normalização. A inflação gerará um processo natural de reorganização da oferta, mas é difícil saber quanto tempo levará a normalização desses setores. Consideramos que a natureza da crise, um choque exógeno que causou queda da atividade e fechamento de diversos setores e empresas por motivos totalmente alheios à qualidade da gestão ou ao plano de negócios, sugere que a reabertura completa da economia será mais fácil do que se imagina.
Finalmente, há um terceiro choque muito importante, desconectado da Covid-19: em 2020 houve a recomposição do rebanho suíno chinês, após redução de 40% das unidades, que foram abatidas em 2019 em função da gripe suína africana. A recomposição substituiu a criação de porco de chiqueiro, alimentado por resto de alimentos, a famosa lavagem, pela suinocultura moderna. Ou seja, houve aumento de 8% da demanda mundial por ração! Levará algumas safras para que a oferta de soja e milho se ajuste.
A soma desses três choques explica o surto inflacionário mundo afora. Os choques todos se reverterão. A dúvida é a intensidade e a extensão no tempo. Ambas parecem fortes. Será que os choques contaminarão as expectativas, forçando ajuste da política monetária antes do que pensávamos? No Brasil, esse processo já se iniciou. A dúvida maior é saber como o Fed, banco central americano reagirá. Os sinais até o momento são de que o Fed não reagirá a um pico inflacionário.
O ponto final da coluna é a atividade. Para onde estamos caminhando? Tudo sugere que a crise econômica produzida pela pandemia não deixará marcas permanentes muito profundas sobre o sistema econômico. Nossa aposta é que mesmo aqueles setores mais afetados, como vimos, restaurantes e transporte aéreo de passageiros, devem se reorganizar.
Ou seja, diferentemente da grande crise financeira global, que produziu perda permanente de produto nos EUA e na Europa, no evento atual as economias devem, após o término das campanhas de vacinação, voltar a operar na mesma tendência vigente antes da crise. Este já é o caso da economia chinesa. Nos Estados Unidos, o crescimento de 6,5% projetado para 2021 deve colocar a economia rodando sob a tendência pré Covid já na virada de 2021 para 2022. No resto do mundo, liderado pela Europa, que deve atingir 50% da população imunizada em junho, a retomada deve seguir forte no 2º semestre de 2021.
A economia mundial caminha para a normalização plena em algum momento do segundo semestre de 2022.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de junho de 2021.
[1] Ver “Initial output loses from the Covid-19 pandemic: robust determinants” de Davide Furceri, Michael Ganslmeier, Jonathgan Ostry e Naihan Yang, document de trabalho do FMI número 18 de 2021 (WP/21/18) (https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2021/01/29/Initial-Output-...). “Estímulo fiscal muito maior” é dado por elevar o estímulo fiscal de um país cujo estímulo era dado pelo 1º quarto da distribuição para estímulo dado pelo 3º quarto da distribuição. Estímulo fiscal dado pelo 1º quarto da distribuição significa que ¼ dos países estimularam menos a economia e ¾ estimularam mais.
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