Macroeconomia

Para que serve? Serve para nada!

3 ago 2020

Um dos temas que vêm sendo discutidos fortemente nos fóruns internacionais dos produtores e divulgadores de dados estatísticos é sua disseminação. É um desafio fazer com que a narrativa de uma divulgação de uma estatística permita que o número divulgado seja compreendido de forma ampla e com clareza. E não apenas por especialistas embebidos nas tecnalidades incompreensíveis para os demais, mas por todos os interessados. Um número divulgado de forma incorreta tem enorme poder de gerar mais confusão do que esclarecer algo. A divulgação recente do Produto Interno Bruto – PIB – americano é um belo exemplo do que é estatística mal divulgada.[i]

Existem várias práticas de se divulgar dados trimestrais das contas nacionais, principalmente o PIB, propondo uma estimativa anual. Há a forma americana de elevar à quarta potência a taxa trimestre contra o trimestre anterior, a partir de séries ajustadas sazonalmente; também costumam tomar o nível trimestral, ou seja, o valor do trimestre, e multiplicá-lo por quatro.

Em linha semelhante, há ainda o método de vários economistas brasileiros de multiplicar por quatro a taxa dessazonalizada do quarto trimestre do ano contra o terceiro e usar como se fosse uma projeção; às vezes para não ser muito arbitrário, utiliza-se a média dos dois últimos trimestres multiplicada por 4.

A divulgação recente da primeira prévia do PIB americano com uma variação no segundo trimestre de -32,9% criou um impacto inicial muito forte. O Bureau of Economic Analysis – BEA – dos EUA adota, há muitos anos, a prática de divulgar seus dados trimestrais anualizados. Ou seja, toma a variação do trimestre corrente em relação ao trimestre na série imediatamente anterior, nas séries com ajuste sazonal, e eleva essa variação à quarta potência. Sobre isso veja-se: https://www.bea.gov/help/faq/463 e https://www.bea.gov/help/faq/122.

Essa prática, seguida por pouquíssimos países, tem sido condenada por várias publicações técnicas com recomendações sobre a divulgação de resultados conjunturais por: i) admite uma hipótese extremamente forte de que a variação em um trimestre pode ser uma boa proxy para a variação anual, ii) sobrestima ou superestima variações ao elevar à quarta potência e iii) em países que têm uma maior variabilidade nas suas taxas, estimará uma série de tempo com variações que não têm relação com a realidade.

O manual de contas trimestrais do FMI, no seu parágrafo 37, recomenda:

“=>  37 Os usuários devem ser informados sobre o significado dos dados e as limitações, e os usos inadequados devem ser desencorajados. Dada a probabilidade de revisões futuras, os usuários devem ser avisados sobre a menor robustez relativa da versão mais recente. Para obter uma avaliação prudente dos desenvolvimentos, os usuários devem ser aconselhados a considerar também a tendência nos dados em vários trimestres, além do último trimestre. Além disso, se os dados de QNA forem apresentados em formato anualizado, seja como taxas de crescimento agravadas ou como níveis multiplicados por quatro, é importante explicar que esta apresentação amplia a irregularidade e a incerteza dos dados de QNA. Da mesma forma, o uso de taxas de crescimento com mais de um dígito atrás do ponto decimal dá a impressão de que os dados são significativamente mais precisos do que geralmente são.”[ii]

Diz ainda o Manual no seu parágrafo 125:

=>  125 Taxas de variação trimestral devem ser apresentadas como taxas reais de variação entre um trimestre e o anterior. As taxas de crescimento às vezes são anualizadas para facilitar a interpretação dos dados pelo usuário. A maioria dos usuários tem uma noção do tamanho das taxas anuais de mudança, mas não para as mensais ou trimestrais. A anualização das taxas de crescimento, no entanto, também significa que os efeitos irregulares são compostos. Independentemente de as taxas de variação trimestrais reais ou anualizadas serem apresentadas, é importante indicar claramente o que os dados representam.[iii]

Para completar quando se trata do nível, diz o Manual no seu capítulo 7 em que trata de ajustes sazonais:

“7.127 Alguns países também apresentam o nível de dados trimestrais em níveis anualizados, multiplicando

dados reais por quatro. Essa apresentação parece artificial, não facilita a interpretação dos dados e pode ser confusa porque os dados do fluxo anual em termos monetários não podem mais ser derivados como a soma dos trimestres. Os usuários não familiarizados com a prática de anualizar os níveis dos dados atuais de preços e volume, multiplicando os dados reais por quatro, podem confundir os níveis anualizados com os dados anuais previstos. Por esses motivos, essa prática não é recomendada. ”[iv]

Essas recomendações ficam exemplificadas com a recente divulgação da taxa americana de variação do PIB: a variação anualizada de -32,9% representa na verdade um trimestre atípico e que apresentou -9,5% de variação do segundo trimestre em relação ao primeiro. Obviamente, uma queda de 32,9% anual tem um impacto irreal quando se observa a metodologia adotada.

Isto pode ser exemplificado para o Brasil: o gráfico abaixo mostra a série do PIB trimestral do Brasil com as taxas no acumulado de quatro trimestres; uma aproximação usada para a taxa anual em cada trimestre, e a taxa anualizada pelo método adotado nos Estados Unidos.

Obviamente, a série acumulada de quatro trimestres permite uma visão muito melhor, real, do que a série à quarta potência que apresenta uma variabilidade exagerada e variação fora do padrão histórico.

Assim sendo estamos quase prontos para responder à questão formulada: para que serve a prática americana de divulgar uma taxa anualizada de variação do PIB. Ou, ainda,  para que serve a regra prática brasileira de multiplicar por 4 o último resultado da taxa trimestral dessazonalizada ou a média das 4, das 3, ou das 2, ou de uma única dessas taxas trimestrais para afirmar que já estamos crescendo no passo indicado pelo resultado dessa multiplicação.

Antes vamos explorar um pouco mais o exemplo brasileiro. Abaixo um quadro apresentando os resultados do exercício com a prática brasileira desde 2014, conforme publicado pelo IBGE no quarto trimestre de cada ano.

A tabela abaixo traz as seguintes informações:

  • na segunda coluna, tem-se a taxa trimestral dessazonalizada de cada trimestre comparado ao trimestre imediatamente anterior, conforme publicado pelo IBGE no quarto trimestre de cada ano;
  • na segunda coluna, no primeiro de trimestre de cada ano tem-se a média das taxas trimestrais dessazonalizadas dos quatro trimestres daquele ano. No segundo trimestre de cada ano, tem-se a média das taxas trimestrais dessazonalizadas do segundo, terceiro e quarto trimestre do ano. No terceiro trimestre de cada ano, tem-se a média das taxas trimestrais dessazonalizadas do terceiro e do quarto trimestre daquele ano. E, finalmente, no quarto trimestre de cada ano, tem-se a taxa trimestral dessazonalizada daquele trimestre.
  • na terceira coluna, tem-se a segunda coluna multiplicada por 4, que indicaria a taxa de crescimento anualizada do PIB caso a taxa de crescimento dos trimestres seguintes fossem mantidas no nível, evidenciando a que taxa a economia já estaria crescendo.
  •  A quarta coluna traz o resultado efetivo do ano seguinte.

RESULTADOS DO PIB TRI-IBGE NOS QUARTOS TRIMESTRES

ANO E TRIMESTRE

TAXA TRIMESTRAL DESSAZ

MÉDIA DAS TAXAS DE 4, 3, 2, 1 TRIMESTRES

MÉDIAS DAS TAXAS TRIMESTRAIS X 4

RESULTADO EFETIVO A CADA ANO POSTERIOR

2014.I

0,64

-0,06

-0,25

RESULTADO EM 2015          = -3,8

2014.II

-1,38

-0,30

-1,18

2014.III

0,16

0,24

0,98

2014.IV

0,33

0,33

1,33

         

2015.I

-0,80

-1,52

-6,08

RESULTADO EM 2016          = -3,6

2015.II

-2,11

-1,76

-7,04

2015.III

-1,72

-1,58

-6,34

2015.IV

-1,45

-1,45

-5,79

         

2016.I

-0,61

-0,63

-2,51

RESULTADO EM 2017          = 1,0

2016.II

-0,32

-0,63

-2,53

2016.III

-0,72

-0,79

-3,16

2016.IV

-0,86

-0,86

-3,43

         

2017.I

1,30

0,54

2,17

RESULTADO EM 2018          = 1,1

2017.II

0,58

0,29

1,16

2017.III

0,24

0,15

0,58

2017.IV

0,05

0,05

0,21

         

2018.I

0,41

0,28

1,12

RESULTADO EM 2019         = 1,1

2018.II

0,05

0,24

0,95

2018.III

0,53

0,33

1,33

2018.IV

0,13

0,13

0,51

         

2019.I

0,00

0,41

1,65

RESULTADO EM 2020         = ???

2019.II

0,52

0,55

2,21

2019.III

0,62

0,57

2,26

2019.IV

0,51

0,51

2,03

 

Verifica-se que, apenas em 2018, usando-se qualquer uma das métricas, tem-se uma indicação de quanto a economia poderia crescer no ano seguinte. Nos demais anos, os resultados são totalmente disparatados e algumas vezes indicam o oposto, em termos do sinal, do que viria a ocorrer.

Volta-se a perguntar, portanto, para que serve a modalidade americana de divulgação da taxa de variação do PIB? Ou ainda para que serve essa modalidade brasileira de projeção de PIB.

Nossa resposta é que serve para nada!


[i] Já havíamos comentado a necessidade de se atentar aos detalhes em um texto anterior do Blog https://blogdoibre.fgv.br/posts/divulgacao-de-dados-economicos-precisamo....

[ii]  “37 Users should be informed about the meaning of the data and the limitations, and inappropriate uses should be discouraged. Given the likelihood of future revisions, users should be cautioned about the lower relative robustness of the most recent release. To achieve a prudent appraisal of developments, users should be advised to also consider the trend in the data over several quarters in addition to the latest quarter alone. As well, if QNA data are presented in an annualized format, either as compounded growth rates or as levels multiplied by four, it is important to explain that this presentation magnifies the irregularity and uncertainty of QNA data. Similarly, using growth rates with more than one digit behind the decimal point gives the impression that the data are significantly more precise than they generally are.”

[iii] “125 Quarter-to-quarter rates of change should be presented as actual rates of change between one quarter and the previous one. Growth rates are sometimes annualized to make it easier for the user to interpret the data. Most users have a feel for the size of anual rates of change but not for monthly or quarterly ones.

Annualizing growth rates, however, also means that the irregular effects are compounded. Irrespective of whether the actual or annualized quarterly rates of change are presented, it is important to clearly indicate what the data represent.”

[iv] “7.127 Some countries also present the level of quarterly data at annualized levels by multiplying the actual data by four. This presentation seems artificial, does not make the data easier to interpret, and maybe confusing because annual flow data in monetary terms no longer can be derived as the sum of the quarters. Users not familiar with the practice of annualizing levels of current price data and volume data by multiplying the actual data by four may confuse annualized levels with forecast annual data. For these reasons, this practice is not recommended.”

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