Cenários

Parte relevante da melhora fiscal brasileira em 2021/22 se deveu à aceleração da inflação

2 out 2024

Após recuar bem em 2021/22, dívida/PIB brasileira sobe desde 2023. Parte relevante dessa dinâmica não está associada à política em si, mas sim às surpresas inflacionárias do período – positivas em 2021/22 e negativas em 2023.

Como pode ser notado na figura abaixo, após o endividamento público brasileiro ter recuado em 2021/22 (para níveis inferiores àqueles observados no final de 2019), ele voltou a subir desde meados de 2023, superando, na última leitura, os valores verificados nos meses anteriores à eclosão da pandemia.

Seriam essas alterações do endividamento decorrentes puramente de decisões de política econômica, sobretudo fiscal, tomadas nesses períodos ou há outros fatores que podem ter contribuído para essa “gangorra” nos últimos anos?

É sabido que períodos de forte aceleração da inflação podem gerar “consolidações fiscais” temporárias por vários canais, seja porque a inflação mais alta se materializa instantaneamente nas receitas fiscais e somente com alguma defasagem nas despesas, seja porque o PIB nominal acaba “inflado” nesses períodos, aumentando o denominador utilizado para se calcular a razão dívida/PIB. Uma forte aceleração da inflação também pode gerar um “calote implícito” sobre a dívida pública, já que parte dos títulos públicos não está indexada diretamente às oscilações da inflação.

Um paper relativamente recente de um economista do FMI, publicado em meados do ano passado, investigou empiricamente o impacto de surpresas inflacionárias sobre os indicadores fiscais, tomando por base uma amostra com 85 países (avançados e emergentes) no período 1962-2019. A figura abaixo, obtida nesse trabalho, resume os principais achados do autor.

Como pode ser notado, um “choque” de 1 p.p. na variação do deflator do PIB em um determinando ano gera uma melhoria temporária do déficit nominal e uma redução permanente da relação dívida/PIB, sobretudo naqueles países nos quais essa razão é mais elevada antes da ocorrência desse choque.

À luz disso, é interessante analisar o que aconteceu no Brasil nos últimos anos. A primeira figura abaixo apresenta a variação do deflator do PIB brasileiro em bases trimestrais, ao passo que a segunda mostra o custo real de rolagem da dívida mobiliária federal interna, já em termos ex-post (deflacionada pelo IPCA, uma vez que os títulos públicos não são indexados ao deflator do PIB e sim ao IPCA e à Selic – a qual é calibrada para entregar metas de IPCA previamente definidas).


Como pode ser notado na primeira figura, houve forte aceleração da variação do deflator do PIB brasileiro em 2021/22, para taxas muito acima da média observada em 1997-2019. A segunda figura aponta que o juro real recebido pelos detentores da dívida foi a terreno negativo entre meados de 2021 e meados de 2022 – algo inédito na série histórica iniciada em 2005, configurando uma espécie de calote implícito (já que em termos ex-ante os financiadores do governo brasileiro não esperavam receber um retorno real negativo).

O trabalho do FMI citado anteriormente enfatiza que boa parte dos efeitos favoráveis da alta da inflação sobre os indicadores fiscais somente emerge no caso de surpresas inflacionárias – isto é, altas não antecipadas do ritmo de elevação dos preços de bens e serviços, como revela a figura a seguir.

Nesse contexto, é importante investigar qual foi o tamanho dessas surpresas no Brasil nos últimos anos. A figura a seguir compara as projeções feitas pelo governo para a variação do deflator do PIB (no âmbito dos Projetos de Lei Orçamentária Anual, PLOA, para o ano T, enviado ao Congresso em agosto de T-1) com a variação efetivamente observada.

Como pode ser notado, houve uma surpresa positiva bastante expressiva em 2021 e outra surpresa positiva relevante em 2022. Já em 2023 a surpresa foi negativa e, em 2024, não deverá ocorrer surpresa relevante (caso as projeções mais recentes para a alta do deflator neste ano se confirmem).

Levando em conta a semi-elasticidade estimada no trabalho do FMI, apontada na figura anterior ao gráfico acima (uma surpresa de 1 p.p. do deflator do PIB gerando uma queda de cerca de 0,9 p.p. da dívida bruta/PIB em países em que essa relação era superior a 50% antes do choque), é possível estimar que as surpresas positivas no deflator do PIB brasileiro em 2021 e 22 impactaram a dívida/PIB em cerca de -10,8 p.p. nesse biênio, ao passo que a surpresa negativa de 2023 impactou a dívida/PIB em aproximadamente +1,7 p.p.

Isso tudo enfatiza a importância de se considerar nos indicadores fiscais “estruturais” não somente os impactos dos ciclos do PIB “real” (em volume) sobre o resultado primário (como já é feito em várias estimativas desses tipos de indicadores), mas também os impactos do “hiato de inflação” (até mesmo porque operamos em um regime de metas de inflação desde 1999).


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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