Macroeconomia

Pejotização: uma análise a partir de dados da PNADC

28 mar 2019

Os efeitos da recente crise econômica sobre o mercado de trabalho, assim como a reforma trabalhista aprovada em 2017, deram certo destaque ao fenômeno conhecido como “Pejotização”. Trata-se de uma modalidade de contratação que permite ao trabalhador (pessoa física) prestar serviços na forma de empresa individual (pessoa jurídica), no lugar do vínculo empregatício tradicional com carteira assinada.

Vem ganhando força, nos últimos tempos, a ideia de que a transição para prestação de serviços na forma de PJ – e seu consequente impacto estrutural sobre o mercado de trabalho – teriam sido reforçados pela recessão econômica. Há, inclusive, quem associe esse fenômeno à recuperação do mercado de trabalho observada nos últimos trimestres.

Tal lógica decorre da análise agregada da variação, no mesmo período, das duas condições ocupacionais relacionadas: Empregado com Carteira Assinada e Conta Própria com CNPJ. De fato, tendências opostas podem ser observadas no quantitativo de profissionais ocupados nestas categorias desde o segundo trimestre de 2017, colaborando para o argumento da Pejotização.

A partir deste trimestre, é possível observar ainda a mesma tendência para o total da população ocupada e o total de Conta Própria com CNPJ, em linha com a ideia de que a Pejotização estaria puxando a retomada do mercado de trabalho (vide gráficos a seguir).


Apesar da coerência dessa interpretação, é preciso reconhecer suas limitações. A análise com base nos dados agregados não permite garantir que o incremento de determinada ocupação decorre integralmente da queda observada em outra. Ou seja, é possível que as tendências opostas observadas para as duas categorias mencionadas não sejam evidência definitiva da Pejotização, uma vez que outras possíveis migrações podem explicar igual comportamento.

Para esclarecer o grau de Pejotização recente da economia e o que tem, de fato, determinado a dinâmica e estrutura do mercado de trabalho no período analisado, importa “seguir” indivíduos ao longo do tempo, a fim de confirmar (ou não) a migração entre ocupações. Com base em dados da PNAD Contínua (PNADC) e a partir de matrizes de transição, descreve-se a seguir a metodologia empregada para tal análise.

Dados e metodologia

As chamadas “Matrizes de Transição” representam, nesse contexto, uma ferramenta de grande utilidade, na medida em que permitem mapear origem e destino do entrevistado[1] a partir de informações fornecidas em diferentes momentos. O caráter longitudinal da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua Trimestral, por sua vez, faz dessa pesquisa uma fonte ideal para analisar transições de diferentes condições ocupacionais entre trimestres.

Na análise a seguir, serão consideradas as seguintes condições ocupacionais: (i) Empregado com Carteira Assinada; (ii) Empregado sem Carteira Assinada; (iii) Empregado no Setor Público; (iv) Empregador com CNPJ; (v) Empregador sem CNPJ; (vi) Ocupado por Conta Própria com CNPJ; (vii) Ocupado por Conta Própria sem CNPJ; (viii) Trabalhador Familiar; (ix) Desempregado; e (x) Fora da Força de Trabalho (grupo indicado nos gráficos seguintes como “Fora da FT”).

O acompanhamento das transições entre períodos (trimestres) permite analisar para quais condições ocupacionais os indivíduos migraram ou, alternativamente, a partir de quais condições ocupacionais os indivíduos partiram. Com isso, é possível saber tanto para onde migraram os trabalhadores formais, tal como saber qual a origem dos trabalhadores ocupados como Conta Própria com CNPJ, permitindo a investigação mais precisa do nível de Pejotização na economia.

As “Matrizes de Transição” construídas a partir da PNADC têm cobertura de cinco trimestres, de forma que os mesmos indivíduos poderão ser analisados no mesmo trimestre de anos consecutivos. Deste modo, é possível observar migrações entre condições ocupacionais em um ano, excluídos os efeitos de sazonalidade. Seguindo a limitação de disponibilidade dos dados da PNADC, serão analisadas as duplas de trimestres de 2015.IV-2016.IV até 2017.III-2018.IV.  

O gráfico abaixo, cobrindo de 2015.IV a 2018.IV, mostra o destino no respectivo trimestre (t) daqueles que se encontravam Empregados com Carteira Assinada no mesmo trimestre do ano anterior (t-1). Desconsiderando as permanências, isto é, aqueles que declararam continuar Empregados com Carteira Assinada no mesmo trimestre do ano seguinte, é possível observar as migrações para cada par de trimestres.

Ao longo período analisado, destacam-se 3 principais destinos dos Empregados com Carteira Assinada: Fora da FT, Empregado sem Carteira Assinada e Desempregado. Por outro lado, a migração que configura Pejotização (isto é, destino Conta própria com CNPJ) mostrou-se bastante limitada, variando entre 0,6% e 0,8%.

Observando as informações referentes ao último par de trimestres, temos a seguinte distribuição, em 2018.IV, daqueles que declararam estar Empregados com Carteira Assinada um ano antes (2017.IV):

  • 5,1% encontravam-se Fora da FT;
  • 5,1% Empregados sem Carteira Assinada;
  • 4,5% Desempregados;
  • 2,5% como Conta Própria sem CNPJ;
  • 1,6% no Setor Público;
  • 0,8% como Conta Própria com CNPJ;
  • 0,6% como Empregador com CNPJ; e
  • 0,1% como Trabalhador Familiar.

Pelo resíduo da soma destes destinos, 79,4% se mantiveram Empregados com Carteira Assinada entre tais trimestres.

A reduzida migração referente à Pejotização em todo o período nos leva a questionar o que, de fato, tem explicado a expansão da categoria Conta Própria com CNPJ nos últimos trimestres. Uma vez que o gráfico 3 acima mostra não ter sido este o principal destino dos Empregados com Carteira Assinada que migraram de condição ocupacional, cabe, então, realizar o exercício inverso – isto é, investigar a origem do número crescente de firmas individuais. 

O gráfico abaixo, cobrindo igual período, mostra as condições ocupacionais de origem no referido trimestre (t-1) daqueles que se encontram no mesmo trimestre do ano seguinte (t) como Conta Própria com CNPJ. Novamente desconsiderando as permanências, isto é, aqueles que já haviam declarado ser Conta Própria com CNPJ no mesmo trimestre do ano anterior, destacam-se 2 principais origens das PJs individuais: Conta Própria sem CNPJ e Empregador com CNPJ.

Confirmando os resultados obtidos pelo exercício anterior, a migração que configura Pejotização (isto é, origem Empregado com Carteira Assinada) apresentou números mais contidos, variando entre 3,9% e 5,4%.[2]

Também quanto ao último par de trimestres, temos a seguinte distribuição, em 2017.IV, daqueles que declararam ser Conta Própria com CNPJ um ano depois (2018.IV):

  • 21,7% eram Conta Própria sem CNPJ;
  • 9,1% Empregador com CNPJ;
  • 5,5% Fora da Força de Trabalho;
  • 5,2% Empregado com Carteira Assinada;
  • 3,6% Empregado sem Carteira Assinada;
  • 1,7% como Trabalhador Familiar.
  • 1,3% Empregador sem CNPJ;
  • 0,9% Desempregado; e
  • 1,1% Setor Público;

Pelo resíduo da soma destas origens, 49,9% se mantiveram como Conta Própria com CNPJ entre tais trimestres.

Tais dados permitem responder, enfim, que tipo de movimento tem determinado a expansão dos Contra Própria com CNPJ: mais de 1/5 dessas novas firmas individuais eram Contra Própria sem CNPJ, o que corresponde a um movimento expressivo de formalização. Não se trata de negar que exista Pejotização, mas de reconhecer sua limitada dimensão e contribuição para dinâmica recente do mercado de trabalho.

Demais resultados

A partir da análise desagregada dos dados da PNADC e tendo levantado evidências quanto à dimensão da Pejotização nos últimos anos, é possível analisar com mais precisão recortes específicos das migrações identificadas. A análise por faixa de renda, por exemplo, permite investigar a hipótese recorrentemente levantada de que a Pejotização estaria concentrada nas maiores faixas de renda.

Os Gráficos 5 e 6, a seguir subdividem a transição dos Empregados com Carteira Assinada e Conta Própria sem CNPJ, respectivamente, para Conta Própria com CNPJ, de acordo com a faixa de renda[3] declarada no primeiro trimestre reportado. Ou seja, eles mostram, dentre aqueles que estavam que eram prestavam serviços por Conta Própria com CNPJ em um trimestre, e estavam em uma das faixas de renda no ano anterior, quantos eram Empregados com Carteira Assinada (Gráfico 4) ou Conta Própria Sem CNPJ (Gráfico 5).

Como se vê no primeiro gráfico, durante todo o período, o menor percentual de transição Carteira Assinada-CNPJ é observado faixa de renda mais baixa, confirmando o argumento de que são os Empregados com Carteira Assinada de maiores rendimentos que predominam no movimento de migração para empresa individual.

Cabe questionar, dessa forma, o efeito agregado que a Pejotização tem sobre as contas públicas, a despeito da sua magnitude limitada observada. Grande preocupação recai, por exemplo, sobre a Previdência, uma vez que o trabalhador pejotizado contribui apenas sobre o declarado como pró-labore. Além da menor base de incidência (geralmente, um salário mínimo ao invés do salário do contrato de trabalho, que deve respeitar os pisos salarias de cada categoria), a menor arrecadação previdenciária também decorre da suspensão da contribuição patronal, uma vez que o que antes era pago pelo empregador não passa a ser recolhido do trabalhador-PJ.

O inverso, no entanto, é observado quando analisamos a formalização (transição Conta Própria Sem CNPJ para Com CNPJ), onde as rendas mais altas são as que apresentam menor percentual. É possível afirmar, assim, que o processo mais intenso de formalização tem sido concentrado entre aqueles de renda inferior, estimulados por políticas de incentivo ao pequeno negócio, como o cadastro do Microempreendedor Individual e o regime facilitado do Simples Nacional.

Conclusão

Esse artigo se propôs a analisar, a partir de matrizes de transição elaboradas com dados da PNADC, a tese de que o mercado de trabalho brasileiro estaria se recuperando a partir de um processo de pejotização. Como observado, tal tipo de migração de carteira assinada para firma individual tem ainda magnitude limitada, correspondendo a menos de 1% dos movimentos interanuais dos celetistas, ainda que se tenha observado que há maior grau de transição em faixas de renda mais altas. Por outro lado, verificou-se um grande movimento de formalização, no qual ocupados por conta própria sem CNPJ correspondem a 20-25% daqueles com CNPJ um ano depois.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Como estratégia de identificação dos indivíduos nos referidos trimestres foram utilizadas as variáveis “data de nascimento” e “identificação de domicílio” (gêmeos desconsiderados).

[2] Os valores encontrados para o mesmo movimento de migração (Empregados com Carteira Assinada virando Conta Própria com CNPJ) diferem de acordo com a ótica (origem ou destino) devido às bases de comparação. Em termos absolutos, no entanto, tais valores são equivalentes.

[3] Esta análise considerou como faixas de renda aquelas estabelecidas pelo Instituto Nacional de Segubridade Social para determinação das alíquotas de contribuição. Em 2017, tais faixas eram de R$ 0 a R$ 1.659, R$ 1.660 a R$ 2.765, R$ 2.766 a R$ 5.531 e acima de R$ 5.531.

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