Política

Política externa, política interna: ligações vantajosas ou perigosas?

3 jan 2024

Em um ano, Lula logrou reverter isolamento a que Bolsonaro submetera o país, fortalecendo o Mercosul e retomando o tradicional papel do Brasil na ONU. Mas presidente deu dois passos em falso que agora lhe cobram um preço alto. 

Costuma-se dizer que “a política externa é a continuação da política interna por outros meios”. Diz-se também, sobretudo nos EUA, que “a política deve parar à beira do mar” (tradução minha de “politics should stop at the water’s edge). A primeira máxima é uma constatação de fato: as motivações subjacentes à ação diplomática de um país derivam, em boa medida, de interesses políticos e econômicos domésticos. A segunda é uma aspiração e conselho de prudência: preferências ideológicas e conflitos políticos domésticos não devem se sobrepor ao interesse nacional, o qual deve ser o principal vetor da política externa. 

As duas máximas não são necessariamente contraditórias, podendo ser conjugadas da seguinte maneira: ainda que seja inevitável que os governantes, na elaboração e condução da política externa, levem em conta interesses políticos e econômicos domésticos, devem sempre estabelecer um saudável limite à influência destes. 

Usemos o parágrafo acima como métrica para avaliar os governos Bolsonaro e Lula III. 

Em seus dois primeiros anos no Planalto, Bolsonaro, coadjuvado pelo chanceler Ernesto Araújo, subordinou, quase integralmente, a política externa à sua ideologia de extrema-direita. Alinhou-se automaticamente a Donald Trump, então na Casa Branca. Insultou a esposa do presidente da França, país que, até então, mantinha estreito relacionamento com o Brasil. Ofendeu a China, nosso maior parceiro comercial. Afrontou diversas vezes a Argentina, nosso principal sócio no Mercosul e na América Latina. Usou os discursos proferidos na Assembleia Geral da ONU para dirigir-se, quase exclusivamente, à sua base de apoio doméstica. Ou seja, a política externa de Bolsonaro foi a continuação, sem qualquer filtro, da política interna. Resultado: profundo isolamento diplomático do país, sinônimo de fracasso na frente externa. 

Com a demissão de Ernesto Araújo em março de 2021 e a nomeação do discreto embaixador Carlos Alberto França para substituí-lo, o governo Bolsonaro tentou reduzir atritos com outras nações e normalizar a atuação diplomática brasileira. O esforço não foi completamente infrutífero, mas a nota final de Bolsonaro em termos de política externa foi a reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio do Planalto, no dia 18 de julho de 2022, com o propósito de denunciar, sem provas, as urnas eletrônicas usadas, de forma muito bem-sucedida, nas eleições brasileiras desde 1996. Essa reunião levou à declaração de inelegibilidade de Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral em junho de 2023. Ao fim e ao cabo, o ex-capitão jamais absorveu o conselho de cautela embutido na máxima segundo a qual “a política deve parar à beira do mar”. 

E Lula III? 

A política externa é uma das principais políticas do terceiro mandato do líder petista. Em um ano, ele logrou reverter o isolamento a que Bolsonaro submetera o país. Viajou muito para transmitir a mensagem de que o Brasil estava de volta ao palco mundial. De fato, voltamos a ter protagonismo em uma área em que o Brasil possui grandes ativos e muito o que dizer, o meio ambiente. Sob Lula III, Brasília fortaleceu o Mercosul e o tradicional papel do país na ONU, organizações desprezadas pelo governo anterior, e recobrou a ambição de ser o líder da América do Sul. O atual governo também impulsionou as negociações em torno do acordo Mercosul-União Europeia. Todos esses feitos são do interesse nacional. Ponto para Lula. 

Porém, Lula deu dois passos em falso que agora lhe cobram um preço alto. Primeiro, em maio, ao receber em Brasília o presidente venezuelano Nicolás Maduro, chamou a Venezuela de democracia, afirmando também que críticas ao autoritarismo do regime bolivariano não passam de narrativas. Segundo, durante a recente campanha presidencial argentina, apoiou abertamente o candidato peronista Sergio Massa na disputa deste com o populista libertário Javier Milei, que acabou sendo eleito. 

Vozes ligadas ao Palácio do Planalto alegam que as palavras de Lula sobre a Venezuela visavam apenas manter um canal de comunicação aberto com Maduro, governante isolado internacionalmente e responsável pela atual desgraça econômica do país. Todavia, Lula agrediu não apenas os fatos – o regime bolivariano é uma ditadura há muito tempo –, mas também uma fatia considerável dos seus eleitores, um amplo contingente de brasileiros que vê o ditador venezuelano com maus olhos. Ou seja, Lula se enfraqueceu internamente e externamente também, uma vez que vários presidentes sul-americanos são críticos acérrimos de Caracas. 

Agora, Maduro ameaça anexar a região do Essequibo, pertencente à Guiana. O contencioso Venezuela-Guiana é secular, tendo sido administrado por vias diplomáticas até recentemente, mas, desta vez, dada a situação desesperadora de Maduro, pode resvalar para a guerra, o que seria um desastre para a América do Sul, o Brasil e Lula. O descuido verbal de Lula e o grande custo que hoje isso lhe cobra decorrem de ter descartado a opinião de vários dos seus eleitores e aliados. Ou seja, Lula não considerou que, dentro de certos limites, “a política externa é a continuação da política interna por outros meios”. 

Por último, Javier Milei, o novo presidente argentino, como revide ao apoio de Lula a Sérgio Massa, convidou ninguém mesmo do que Jair Bolsonaro para a cerimônia de posse. Há que lembrar que, em 2022, Bolsonaro não reconhecera a vitória de Lula. Havia passado quatro anos atacando as instituições democráticas do país. Em 8 de janeiro de 2023, o bolsonarismo tentou um golpe de Estado. 

O destaque dado a Bolsonaro na posse de Milei foi estupefaciente. É algo que vai muito além da quebra do protocolo diplomático. É um tapa na cara do atual governo brasileiro. Lula errou ao apoiar abertamente Massa, mas o erro de Lula não se compara a este de Milei. Uma coisa é permitir que a política ultrapasse a beira do mar, equívoco cometido por Lula. Outra coisa é insultar escancaradamente o governo de um país amigo, ato inaceitável por parte de Milei. É um péssimo augúrio para as relações Brasil-Argentina 

Por conta das ações radicais de Maduro e Milei e da incúria de Lula ao lidar com os dois, o Brasil se encontra agora em uma posição diplomática na América do Sul sem precedentes nas últimas quatro décadas. 

Repita-se: ainda que seja inevitável que os governantes, na elaboração e condução da política externa, levem em conta interesses políticos e econômicos domésticos, devem sempre estabelecer um saudável limite à influência destes. 


Esta é a seção Observatório Político do Boletim Macro Ibre de Dezembro de 2023. 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.  

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