Macroeconomia

Precedentes históricos da mutação de Bolsonaro

26 ago 2020

O ano de 2020 certamente entrará para a história como um momento único, no Brasil e no mundo. Mas nem tudo que temos vivido é sem precedentes. Ligar “a lanterna na popa”, para utilizar o sugestivo título das memórias de Roberto Campos,[1] pode nos ajudar a estabelecer possíveis rotas de navegação, ainda que precariamente tracejadas, para os próximos dois anos, sobretudo no que toca à situação política do governo Bolsonaro.

Qual seria o precedente para o primeiro semestre de 2020, agora que se sabe que Bolsonaro, em maio, decidiu enviar tropas ao Supremo Tribunal Federal,[2] após ter ameçado várias vezes o Congresso Nacional desde o começo do ano?

O precedente se encontraria no primeiro e único ano da fracassada presidência de Jânio Quadros, em 1961. Após seis meses no cargo (sua posse havia sido no dia 31 de janeiro) e de frequentes conflitos e frustrações com o Poder Legislativo, Jânio, populista de direita sem maioria parlamentar tal qual Bolsonaro, passou a nutrir a ideia de promover uma reforma constitucional que fortalecesse o Poder Executivo. Por meio do seu ministro da Justiça, Pedroso Horta, começou a emitir ameaças, alegando ser impossível governar com o Congresso, e a querer impor um estado de exceção[3]. Os líderes partidários rechaçaram as ameaças. O resto é sabido: Jânio renuncia na esperança de que o Congresso o peça para voltar ao cargo com poderes ampliados. Sua renúncia, todavia, foi prontamente aceita. Tal qual Jânio, Bolsonaro ameaçou, mas não logrou vergar as instituições.

Todavia, com a oposição desmobilizada pela pandemia, Bolsonaro teve sorte e não caiu. Após ter uma visão apurada do precipício com a prisão de Fabrício Queiroz no dia 18 de junho, o presidente se aproximou do Centrão, parou de fazer ameaças às instituições e moderou seu linguajar. Qual seria o precedente da mutação iniciada há dois meses? Resposta: Fernando Collor no segundo ano do seu mandato, em 1991.

No começo daquele ano, Collor, outro populista de direita sem maioria parlamentar tal qual Jânio e Bolsonaro, constatou que seu heterodoxo plano de combate à inflação falhara. Em fevereiro e março de 1991, sua popularidade passa para um patamar inferior a 30%. Ao longo do primeiro semestre, a Câmara dos Deputados lhe impõe duras derrotas. Collor decide mudar: em maio, demite Zélia Cardoso e nomeia Marcílio Marques Moreira para o Ministério da Fazenda, nomeação que ajuda a acalmar as relações do governo com o empresariado. Além disso, Collor reduz o recurso a medidas provisórias, das quais usara e abusara em 1990, desanuviando as tensões com o Congresso.

A nomeação do deputado Fábio Faria (PSD-RN) para o Ministério das Comunicações, em junho de 2020, seria o equivalente funcional bolsonariano à designação de Marcílio Marques Moreira por Collor. Mas as semelhanças param por aí porque a popularidade de Bolsonaro cresceu recentemente, no rastro do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso. A de Collor continuou a cair ao longo de 1991, uma vez que a economia continuou estagnada e a inflação, muito alta.

O auxílio emergencial salvará Bolsonaro das agruras por que continuou a passar Collor até sua queda em outubro de 1992? Aqui temos dois precedentes. O auxílio tem gerado um choque positivo de bem-estar econômico para a população de baixa renda, tal qual o Plano Cruzado I em 1986 e o Plano Real em 1994. A questão é saber se esse choque terá um caráter artificial e passageiro como o Cruzado ou estrutural e duradouro como o Real. Ainda não se sabe. Esta é a questão em que os economistas agora se deblateram.

Se o auxílio emergencial se assemelhar ao Real, cenários otimistas se abrirão para a sobrevivência e reeleição de Bolsonaro. Porém, se pender para o Cruzado, Collor em 1992 voltará a ser um possível precedente para Bolsonaro.

Em abril de 1992, já muito desgastado, Collor realizou sua última grande manobra política, ao finalmente se render às exigências do presidencialismo de coalizão. Naquele mês, montou um ministério com líderes partidários e nomes de peso ligados às elites, inclusive cultural e acadêmica. Esse novo gabinete tinha, sim, condições de tirar Collor da beira do abismo político. Contudo, em maio, a fortuna o abandona de vez, quando Pedro Collor apresenta graves denúncias contra seu irmão, o presidente. O resto é sabido: no dia 2 de outubro, Fernando Collor deixa o Palácio do Planalto após ter seu mandato suspenso pelo Congresso.

Um último comentário para mostrar os limites das analogias feitas acima. Se o auxílio emergencial se assemelhar ao Cruzado e Bolsonaro não repetir os passos dados por Collor em abril de 1992, a fragmentação da oposição ainda poderá salvar o ex-capitão do Exército do destino do caçador de marajás.


Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de agosto de 2020. Leia aqui a versão integral do BMI Agosto/2020. 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

[1] Roberto Campos, A Lanterna na Popa: Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.

[2] Ver Monica Gugliano, “Vou Intervir! O Dia em que Bolsonaro Decidiu Mandar Tropas para o Supremo”, piauí, n. 167, agosto de 2020, disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vou-intervir/.

[3] Ver Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, verbete sobre Jânio Quadros, disponível em https://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/janio-da-silva-quadros.

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