Macroeconomia

Princípios para um debate fiscal mais produtivo

15 jun 2020

No campo da política fiscal, somos mais propensos a dar crédito ao jockey que deveria ser dado ao cavalo (Joseph Schumpeter, 1954).

A pandemia elevou os gastos do governo, reduziu sua receita e ampliou o déficit primário que será superior a 10% do PIB. A depender da duração da crise, dos termos em que as políticas serão renovadas e da ampliação das políticas que não estão funcionando, o déficit pode se aproximar de um trilhão de reais.

O governo se transformou em uma seguradora, pois seu papel é repor renda para os mais afetados pela crise. A idiossincrasia é que o sinistro foi acionado antes da sociedade pagar pelo seguro, pois o contrato é implícito. Há, portanto, um elevado risco moral na relação do governo com a sociedade que será explicitado no pós-crise quando a dívida pública deve ser estabilizada.

Muitos analistas apontam preocupação com o tema porque em alguns cenários a dívida pública pode atingir 150% do PIB nos próximos anos. Mas é importante não haver precipitação já que em uma crise é muito fácil ser pessimista. Pessoas racionais devem analisar os temas de forma serena. Essas projeções partem da hipótese de que nada será feito para corrigir o problema ou que uma parte relevante das políticas extraordinárias será continuada.

O resultado envolve uma tautologia porque conclui que nada dará certo se adotarmos políticas estúpidas, mas esse não é o nosso histórico. O objetivo desses exercícios é apontar o problema para que algumas políticas sejam revistas. E a análise construtiva, portanto, deve se dar em torno do que fazer baseado nos objetivos e prioridades da sociedade.

A política fiscal possui três funções: alocação, distribuição e a estabilização econômica. A função alocativa disponibiliza recursos da forma mais eficiente possível para o governo cumprir suas funções: saúde, educação, segurança, acesso à justiça, desenvolvimento de novas tecnologias, entre outras.

A função distributiva reduz a desigualdade de oportunidades entre as pessoas e protege os mais vulneráveis. Isso pode ser feito a partir dos mecanismos de tributação mais progressivos para financiar as políticas sociais aos mais pobres. Existe relação entre as duas primeiras funções, pois vários serviços públicos têm foco no atendimento aos mais necessitados.

A estabilização econômica mitiga os ciclos econômicos, em particular, as crises e modera os níveis de endividamento que podem criar fragilidades econômicas para o país. Quando o déficit público é muito elevado, o governo tem que emitir títulos públicos em proporções que esse mercado não está habituado a absorver. Como em qualquer mercado, o aumento da oferta de títulos públicos reduz o seu preço e com isso as taxas de juros se elevam. Quando a dívida pública é elevada, a necessidade de rolagem dessa dívida pressiona ainda mais o mercado de títulos.

Essa análise assumiu até o momento que a demanda por títulos está fixa. Em uma crise, as correlações ficam fora de lugar por algum tempo. O FED fez uma expansão monetária impressionante e alguns desses recursos fluem para o mercado de títulos doméstico. A recessão é bastante profunda e para combate-la o banco central está reduzindo a taxa básica de juros que é a referência para todos os mercados. Expectativas sobre esse processo também afetam esse equilíbrio. Ambas as políticas contrapõem a elevação da taxa de juros decorrente dos fundamentos fiscais.

O efeito líquido da piora das condições fiscais depende da resultante entre essas forças e que pode até mesmo tornar as condições de financiamento da dívida melhores, no curto prazo. É possível que as condições prevalecentes depois da crise nos dê algum tempo para reconstruir a posição fiscal ao longo dos próximos anos.

Esse equilíbrio, contudo, é muito frágil e eventuais mudanças das condições internacionais e domésticas podem mudar tudo. Portanto, é importante ter claro que uma eventual folga não deve resultar em complacência. As reviravoltas de cenário não são expressas em um valor numérico para a dívida como muitos analistas parecem supor, mas ocorrem de forma muito repentina e criam custos elevados para tirar o país dessas situações.

O desafio será conciliar a estabilização da dívida com os demais objetivos da política fiscal. Com maior pobreza e informalidade, o país deverá apresentar programas redistributivos mais abrangentes para atender os mais vulneráveis. Não parece sensato um novo planejamento fiscal que mantenha o investimento reprimido por mais tempo. Um novo sistema tributário deve ser mais justo e promover crescimento.

Esse não é um debate sobre um pequeno ajuste de regras fiscais como muitas pessoas pressupõem, mas sobre as prioridades e propósitos do país na próxima década. O papel das regras fiscais é aprimorar as decisões políticas de forma incremental e, portanto, não definem as prioridades tampouco produzem ajustes fiscais por si, como já deve ter ficado claro com o arcabouço vigente. Esse é um importante desentendimento da questão e do papel desse instrumento. Como Schumpeter apontou há mais de 60 anos, temos que evitar dar um crédito indevido ao jockey, sob risco de não entendermos a importância do cavalo.


Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 10/6/2020, quarta-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

sueli
artigo pobre que parece ter interesse de defender a ingerência do governo federal

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