Macroeconomia

Quanto custaria a renda básica em termos de oferta de trabalho?

28 jul 2020

 

A questão da política social do Brasil pós pandemia continua provocando grandes debates. Em geral, economistas e outros especialistas se dividem em dois polos: a adoção de uma renda básica, de um lado; ou um programa de maior focalização, como o Bolsa Família (BF), do outro.

O principal ponto de crítica à adoção de uma renda básica é que, por sua alta cobertura (alguns defendendo que deveria ser universal), seu custo deve ser muito alto. Um programa focalizado, por outro lado, tem custo mais reduzido por ter uma cobertura menor. Aumentos do valor médio do benefício do BF, dessa forma, não teriam grande impacto fiscal.

Defensores da renda básica – como este próprio articulista – buscam, portanto, encontrar fontes de despesa para cortar (como benefícios generosos da elite do serviço público) e receitas para ampliar (como novas alíquotas do imposto de renda), de modo a viabilizar o financiamento do programa. Mas há ainda outro custo da renda básica, geralmente pouco dimensionado pela literatura: aquele associado ao seu impacto sobre a oferta de trabalho.

Simular estaticamente a variação de renda da população com um novo programa social, apesar de ajudar na compreensão de seus impactos, não é suficiente, pois há ainda muitos efeitos dinâmicos possíveis. A população aumenta seu consumo, fazendo crescer a receita pública, compensando parcialmente seu gasto, além de potencialmente gerar crescimento econômico. Gerard, Naritomi e Silva (2018), por exemplo, encontraram efeitos positivos da expansão do Bolsa Família sobre o emprego formal agregado de municípios.

No entanto, há efeitos dinâmicos também potencialmente negativos das transferências. Pode ocorrer que algumas pessoas reduzam sua oferta de trabalho, por terem garantido um rendimento independentemente de quanto tempo trabalham. García et al. (2017), por exemplo, concluem que o programa Juntos, implementado no Peru, reduziu o trabalho remunerado das mulheres nas famílias beneficiárias em nove horas por semana – um efeito extremamente expressivo.

É difícil estimar, no Brasil, um efeito de redução da oferta de trabalho com um novo programa social, principalmente devido à nossa alta informalidade no mercado de trabalho. Na edição de abril do Boletim Macro do Ibre/FGV, busquei estimar os impactos da pandemia sobre a taxa de participação (incluindo os efeitos do Auxílio Emergencial), usando a PNAD Contínua, que tem um caráter longitudinal. A ideia era, controlando toda variação agregada e características fixas dos domicílios (além de outros controles), estimar a queda da taxa de participação em um domicílio associada a variações locais das condições de mercado de trabalho, juntamente com o recebimento de uma transferência de renda do governo.

O desafio dessa abordagem empírica é separar o que é o efeito de receber uma transferência do efeito de uma decisão tal como se aposentar, que provê uma transferência de renda, caso se tenha idade e contribuição suficientes. Desse modo, mesmo adicionando ao modelo a interação do recebimento de uma transferência com o percentual da população de 55 anos ou mais no domicílio, o coeficiente associado à variável pura ainda poderia estar contaminado por simultaneidades menos lineares. Portanto, alternativamente ao modelo do boletim do Ibre, separo rendimentos da Previdência dos de outros programas sociais. A especificação é apresentada a seguir:

 

Em que L é a oferta de trabalho média de um domicílio h no trimestre t, PGS é uma dummy indicativa de se o domicílio tem algum membro que recebe algum programa social (BPC, BF ou outros programas sociais, tais como especificado na PNAD Contínua), Valor é a média mensal per capita da transferência destes benefícios, Idosos é o percentual de idosos no domicílio, Z é um vetor de mais de dez controles[1] e  e  são efeitos fixos de domicílio e trimestre, respectivamente.

A ideia da especificação acima, tal como na edição de abril do Boletim Macro, é encontrar, controlando por quaisquer características fixas no tempo dos domicílios e qualquer efeito agregado no país, uma resposta média do conjunto de membros ao choque de renda de programas sociais, tanto na margem extensiva (um domicílio que não tinha nenhum beneficiário passando a ter) quanto na margem intensiva (um domicílio que já tem um beneficiário, mas que aumenta o valor da transferência).

A oferta de trabalho pode ser medida tanto por taxa de participação do domicílio (percentual de adultos ocupados ou procurando ocupação), quanto pela média das horas efetivamente trabalhadas no domicílio. O resultado é apresentado no gráfico abaixo, para quatro duplas de ano (2015-16, 2016-17, 2017-18 e 2018-19).

Fonte: PNADC Anual

O gráfico acima sugere que receber uma transferência do governo reduz a taxa de participação em quase 2,5 pontos percentuais, e 1,65 hora efetivamente trabalhada na semana, ou 6,6 no mês. Já com relação ao efeito marginal, os resultados indicam que trabalhadores reduzem suas horas trabalhadas em 0,002 por semana (ou seja, 0,008 por mês) para cada real adicional transferido.

Como se vê, o impacto de receber um benefício é consideravelmente alto, independentemente do valor da transferência. Segundo a POF, cerca de 20% dos domicílios brasileiros são beneficiários de algum programa social – no entanto, esse número pode ser significativamente maior, pois essa pesquisa tende a subestimar o número de beneficiários do Bolsa Família (o percentual de domicílios no país que recebe o programa já é, por si só, próximo a 20%), de modo que o número mais correto pode estar próximo de 25 ou até 30%.

Considerando um desenho tal como proposto no último artigo de minha autoria sobre o assunto, a cobertura dos domicílios com alguma transferência de renda teria um grande salto (e a proposta não é universal). Pelas simulações realizadas na POF 2017-18, o percentual de todos lares com algum beneficiário seria de cerca de 85%.

Tendo em vista que a renda básica teria um benefício médio de R$ 133 (pouco menos de 5% do PIB per capita) para domicílios que não recebiam qualquer transferência, o impacto sobre estes seria de pouco mais de 7,66 horas mensais trabalhadas a menos. Já para domicílios que já tinham algum beneficiário de um programa social (cuja média do valor transferido era de R$ 80, e para os quais a renda básica teria um valor médio de 220), o impacto seria de apenas pouco mais de 1,1 hora efetivamente trabalhada a menos, já que estes não mudariam de status de recebedores de transferências.

Desse modo, pode–se calcular a totalidade do impacto da renda básica que se daria por essa expansão de quase 55 pontos percentuais dos domicílios recebendo uma fonte de renda fixa, garantida pelo governo. Pressupondo uma renda do trabalho por hora potencial dos trabalhadores que reduziriam sua oferta de trabalho, pode-se estimar também o impacto negativo sobre o PIB. Para um valor hipotético de R$ 6,25 por hora (equivalente a R$ 1000 reais por mês com 40 horas semanais trabalhadas), tem-se que o impacto agregado negativo seria menos R$ 28,5 mensais gerados em média para todo país, o que significaria uma perda de pouco mais de 0,9% do PIB, tendo em vista um PIB per Capita de quase R$ 3 mil mensais.

Tabela 1: Esquematização dos resultados

Potenciais Beneficiários da Renda Básica

Percentual na população

Impacto sobre horas trabalhadas totais por mês

Efeito agregado negativo sobre horas trabalhadas no país

Rendimento do trabalho por hora trabalhada

Impacto agregado

Não beneficiários de programas sociais atualmente

55%

7,66

4,2 (2,6% de 160 horas trabalhadas no mês)

6,25

 

26,3 (0,87% do PIB per Capita)

Beneficiários de programas sociais atualmente

30%

1,1

0,33 (0,2% de 160 horas trabalhadas no mês)

6,25

2,1 (0,07% do PIB per Capita)

Fonte: Resultados a partir das estimativas pelas PNADC Anuais e simulações da POF 2017-18

É importante ressaltar que o resultado, além das hipóteses simplificadoras anteriores, supõe nenhum ganho de produtividade por trabalho-hora. É possível, no entanto, que, com uma menor redução de horas trabalhadas, os trabalhadores compensem parcialmente com maior produtividade (possivelmente devido a maior descanso, aumento do esforço durante a labuta e melhor desempenho).

Além disso, não estão sendo considerados os efeitos dinâmicos totais, como aumento do consumo das famílias, que tende a aumentar a atividade econômica. Desse modo, o resultado de queda de quase 0,9% do PIB (e PIB per capita) deve ser interpretado apenas como uma parte – a mais negativa – de uma expansão de um programa social, tal como a renda básica previamente proposta.

Por fim, também não são considerados efeitos heterogêneos das transferências, por faixa de renda. Apenas o impacto médio foi estimado, o que pode causar imprecisões, uma vez que a renda potencial por hora trabalhada tende a ter grandes disparidades entre membros de domicílios mais ricos e mais pobres.

No entanto, essa estimativa é um primeiro passo para avançar na compreensão mais geral de todos os custos que a sociedade deve estar disposta a enfrentar para viabilizar um programa social de tal porte e cobertura. Assim, poderemos ter maior clareza também sobre o planejamento necessário para adoção da renda básica.   

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.


[1] Os controles são o log do volume de empregos da região, o log da renda média da região, uma dummy indicativa de recebimento de aposentadoria/pensão, interagindo com seu valor e com o percentual de idosos, o percentual de jovens, de idosos, de homens e de não brancos no domicílio, a escolaridade média dos adultos (com polinômio de segundo e terceiro graus), a idade média e idade média quadrática do domicílio, a taxa de formalidade da região e a renda do não trabalho privada do domicílio.

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