Macroeconomia

A questão militar no pós-Bolsonaro

1 jul 2020

Para todos aqueles preocupados com a democracia e a defesa nacional, é deprimente verificar que a agenda política brasileira tem sido marcada, nos últimos meses, por um intenso debate em torno da possibilidade de um golpe militar ou de uma extremamente controversa intervenção das Forças Armadas, ao abrigo do Artigo 142 da Carta Magna, nos conflitos entre o Executivo e o Supremo Tribunal Federal. Dados o radicalismo do governo Bolsonaro, suas frequentes afrontas às instituições, seu fracasso no combate à pandemia e a presença massiva de militares no governo, tal debate era inevitável[1]. Tornou-se, inclusive, objeto de especulação pela imprensa internacional no mês de junho. Esta coluna não vai abordar nem as razões pelas quais se chegou a esse ponto nem suas consequências de curto prazo. A seguir, se oferecem algumas reflexões a respeito do que pode acontecer e o que se deve fazer com a questão militar após a passagem de Bolsonaro pelo Palácio do Planalto.

Se Bolsonaro for destituído e substituído pelo Vice-Presidente Hamilton Mourão, general de quatro estrelas da reserva, é de se esperar alguma redução no número de ministros de origem militar, abrindo espaço para que o novo mandatário possa incorporar ao Executivo mais políticos dos partidos conservadores, de modo a aumentar a base de apoio parlamentar ao governo, que certamente enfrentará um começo difícil. Mesmo assim, os militares continuarão com amplo poder político e voltados para questões domésticas.

E se os mandatos de Bolsonaro e Mourão forem cassados pelo Tribunal Superior Eleitoral ou se Bolsonaro for derrotado nas urnas em 2022? O que deve um presidente de origem civil fazer com a questão militar?

Uma primeira sugestão já foi dada pelo historiador José Murilo de Carvalho: eliminar cinco palavras – “à garantia dos poderes constitucionais” – do Artigo 142 da Constituição, em que se lê que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. A remoção daquelas cinco palavras acabaria com divergências sobre a interpretação do papel constitucional das Forças Armadas[2]. Como esse passo exigiria uma emenda constitucional, seu êxito dependeria do ânimo dos setores mais à direita do Congresso, historicamente sempre tolerantes com a participação dos militares na política.

Há outras três possibilidades de mais rápida e fácil implementação, todas tendo como norte a retirada dos militares da arena política e o reforço da orientação das Forças Armadas para atividades relacionadas à defesa nacional.

Na Estratégia Nacional de Defesa, publicação oficial do Ministério da Defesa de 2008, havia a seguinte promessa: “O Ministério da Defesa realizará estudos sobre a criação de quadro de especialistas civis em Defesa, em complementação às carreiras existentes na administração civil e militar, de forma a constituir-se numa força de trabalho capaz de atuar na gestão de políticas públicas de defesa, em programas e projetos da área de defesa, bem como na interação com órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e técnico”[3].

Passados doze anos, o país dos concursos públicos ainda não conseguiu realizar o concurso para o quadro de especialistas civis em Defesa. Estima-se que seriam necessárias aproximadamente 100 vagas para a criação do quadro. Não é por falta de recursos que não foi criado. Também não faltam excelentes candidatos para as vagas. Afinal, o Brasil produz, anualmente, centenas de doutores em administração pública, ciência política, direito, economia, história e relações internacionais que poderiam concorrer aos postos de especialista civil em Defesa. Assim, com um simples decreto, um novo presidente de origem civil poderia mandar realizar aquele concurso. No longo prazo, os especialistas civis permitiriam democratizar as relações civis-militares em seu ponto nevrálgico, o Ministério da Defesa.

Haverá certamente muita resistência ao quadro de especialistas civis por parte das Forças Armadas, uma vez que o Ministério da Defesa deixará de ser quase que completamente mobiliado por oficiais da Marinha, Exército e Força Aérea, tal qual se verifica hoje.

Para aplacar a referida resistência, aqui vai a terceira sugestão: um novo presidente de origem civil não deverá contingenciar o orçamento de investimento da Defesa, de modo que as Forças Armadas possam ter a garantia de que conseguirão concluir seus principais projetos dentro dos prazos planejados (aquisição de caças pela FAB – Projeto FX-2; programas de desenvolvimento de submarinos e o programa nuclear da Marinha – Pro-sub e PNM; despesas com a aquisição de cargueiros táticos de 10 a 20 toneladas e o programa de desenvolvimento de cargueiro tático de 10 a 20 toneladas – Projetos KC e KC-X; despesas com o programa de implantação do sistema de defesa estratégico – Astros 2020; despesa com a aquisição de blindados Guarani pelo Exército; e as despesas referentes à implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – Sisfron).

Será uma conta salgada, sobretudo para um país que estará em profunda crise econômica e social, mas pagá-la é condição necessária para que a Forças Armadas possam se concentrar em suas funções precípuas. Um futuro presidente de origem civil deverá ter vontade e capacidade de cortar gastos orçamentários destinados a atividades rentistas para financiar os investimentos em Defesa e não cortar gastos sociais, como tem feito o governo Bolsonaro[4].

A última sugestão é prestar atenção a uma recente afirmação de Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa: “Ao poder político cabe definir a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, os objetivos, estrutura e meios das nossas Forças Armadas. Mas ele, o poder político, não o faz, se aliena. A Política e Estratégia vigentes, elaboradas em 2016 quando era Ministro da Defesa, foram votadas na Câmara e no Senado sem audiências públicas, sem emendas, debates e por voto simbólico”[5]. Do ponto de vista prático, isso significa que, assim que um novo presidente de origem civil chegar ao Palácio do Planalto, os líderes do Congresso deverão iniciar uma vigorosa discussão sobre a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, de modo a imprimir plena chancela parlamentar ao emprego das Forças Armadas em atividades intimamente relacionadas à defesa nacional.

Finalmente, cumpre fazer um alerta: é absolutamente vital que as lideranças democráticas do país comecem a pensar seriamente sobre a questão militar no pós-Bolsonaro, sob pena de termos que conviver com os fantasmas do pretorianismo por um longo tempo. É ingenuidade ou desconhecimento da história achar que o encerramento dos mandatos de Bolsonaro e Mourão resolverá o problema.


Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de junho de 2020. Leia aqui a versão integral do BMI Junho/2020. 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

[1] Os últimos dados sistemáticos sobre os militares no Executivo Federal se encontram em Leonardo Cavalcanti, “Militares da ativa ocupam 2.930 cargos nos Três Poderes”, Poder 360, 17/06/2020, disponível em https://www.poder360.com.br/governo/militares-da-ativa-ocupam-2-930-cargos-nos-tres-poderes/.

[2] Ver Ancelmo Gois, “A sugestão sobre como encerrar a divergência do papel constitucional das Forças Armadas, O Globo, 09/06/2020, disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/sugestao-sobre-como-encerrar-divergencia-do-papel-constitucional-das-forcas-armadas.html.

[3] Ver Brasil – Ministério da Defesa, Estratégia Nacional de Defesa, 2008, p. 50.

[4] Ver “Governo de Bolsonaro dá a primazia aos militares”, Valor Econômico, 06/02/2020, disponível em https://valor.globo.com/opiniao/noticia/2020/02/06/governo-de-bolsonaro-da-a-primazia-aos-militares.ghtml.

[5] Ver Raul Jungmann, “A responsabilidade que nos cabe”, Capital Político, 05/06/2020, disponível em https://capitalpolitico.com/a-responsabilidade-que-nos-cabe/.

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