Reforma política: muito ativismo não é bom
No segundo semestre de 2017, o Congresso Nacional aprovou um projeto de reforma política que atacava o principal problema de nosso sistema político: a excessiva fragmentação partidária. O projeto instituiu a cláusula de desempenho e vedou coligação para voto proporcional. Os interessados podem ler o texto da EC 97 no site da Câmara.
A emenda estabelece (válido a partir da eleição do ano passado) que “terão acesso aos recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão os partidos políticos que – na legislatura seguinte às eleições de 2018: obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 1,5% (um e meio por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 1% (um por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou tiverem elegido pelo menos nove deputados federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação”.
Essa cláusula de desempenho aumentará até atingir, na eleição de 2030, “3% (três por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 2% (dois por cento) dos votos válidos em cada uma delas” ou “tiverem elegido pelo menos 15 deputados federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação”.
A EC também veda, a partir da eleição de 2020 (neste caso para as câmaras de vereadores), a coligação partidária para o Legislativo. Quando partidos ideologicamente distintos concorrem para o Legislativo – seja municipal, estadual ou federal – coligados, como ocorre hoje, frequentemente o eleitor vota em um deputado de esquerda e este voto contribui para a eleição de um candidato de direita e vice-versa. Turva demais o processo eleitoral, enfraquece muito a opção partidária do voto para o Legislativo e concorre para elevar a fragmentação partidária.
Adicionalmente, a vedação de coligação para voto proporcional impedirá que os partidos pequenos troquem tempo de televisão por carona no cociente eleitoral dos partidos grandes, como tem ocorrido até o momento. A manutenção das novas regras reduzirá muito, ao longo da próxima década, a fragmentação partidária.
Bem, aparentemente as novas regras não terão tempo de maturar antes que novas alterações no sistema político brasileiro tramitem no Legislativo e possivelmente sejam aprovadas. Tramita na Câmara o Projeto de Lei 9.212 de 2017, de autoria do senador José Serra, de São Paulo, já aprovado no Senado, que institui no Brasil o voto distrital misto, inspirado no sistema alemão. A cargo da relatoria na Câmara está o deputado Samuel Moreira, do PSDB de São Paulo, que fez excelente trabalho na relatoria da reforma da Previdência no primeiro semestre.
Para as eleições municipais, o PL estabelece que, nos municípios com menos de 200 mil habitantes, o voto continuará sendo proporcional, como é hoje, mas por meio de listas pré-ordenadas dos partidos. O voto no vereador deixará de ser nominal. Reduz-se muito o custo de campanha. Abre-se a possibilidade de forte elevação da participação feminina: pelo menos 30% da lista terá que ser ocupada por mulheres. Eleva-se muito o poder das lideranças partidárias. Elas terão peso significativo na escolha dos candidatos e na ordenação. Evidentemente não constitui mudança tão radical assim, pois hoje as lideranças partidárias já têm um peso significativo na destinação de recursos às campanhas.
Para os municípios com mais de 200 mil habitantes, o voto será distrital misto. Metade das cadeiras da câmara municipal será completada pela regra distrital e metade pela regra proporcional. Se houver um número ímpar de cadeiras, a “metade” distrital terá uma cadeira a menos.
Se a reforma for aprovada, o modelo distrital misto será adotado para as assembleias estaduais e para a Câmara federal na eleição de 2022. O modelo é bem próximo ao alemão. O eleitor vota na lista de um partido e vota no candidato a vereador do seu distrito. Para a eleição de 2022, votará na lista de um partido, tanto para o Legislativo estadual como federal, e num candidato a deputado federal e num estadual do seu distrito.
O PL estabelece regra de repartição das cadeiras de forma a manter sempre que possível a proporcionalidade. A proporção de cadeiras de cada partido será essencialmente determinada pela participação de cada partido na votação proporcional. As cadeiras às quais cada partido terá direito serão ordenadas iniciando-se com as cadeiras obtidas na eleição distrital. Após alocar estas, passa-se a alocar os candidatos de lista.
Suponha um Legislativo com 50 cadeiras, 25 distritais e 25 proporcionais. Um partido elege 10 deputados (ou vereadores) pela regra distrital e o voto proporcional indica que o partido tem direito a 13 cadeiras. Nesse caso, além dos 10 legisladores desse partido eleitos na parcela distrital da eleição, os três primeiros deputados da lista serão eleitos. Ou seja, se mantém o princípio da proporcionalidade.
A proporcionalidade será infringida no caso em que o partido tiver elegido um número de cadeiras na porção distrital maior do que a sua proporção nos votos na lista. No caso alemão, quando esse fato ocorre, cadeiras são adicionadas – o Legislativo aumenta de tamanho – para atender aos dois objetivos: manter a proporcionalidade dada pelo voto em lista e atender a todos os eleitos na porção distrital da eleição.
No projeto em tramitação na Câmara, adota-se o modelo escocês: a cadeira que houver a mais, para o partido que tiver mais deputados (ou vereadores) eleitos na parcela distrital do que a sua proporção na lista partidária, será retirada da distribuição das cadeiras da lista. Ou seja, esta cadeira a mais reduzirá em uma cadeira a parcela proporcional daquele Parlamento.
Adotando o princípio burqueano (remete ao pensador conservador irlandês Edmund Burke) de que reforma institucional deve ser incremental e respeitar o status quo, não me parece que a reforma descrita nesta coluna seja positiva.
Talvez fosse melhor deixar o sistema funcionar alguns anos para verificarmos como as regras de 2017 maturariam. Em particular, preocupa, na parcela distrital da eleição, a figura do suplente. No Senado, o suplente muitas vezes é uma pessoa rica que financia a eleição do candidato em troca da suplência. Não temos tido boa experiência com a suplência no Senado.
Para a eleição que se avizinha, o PL estabelece que a justiça eleitoral terá que, em até seis meses, desenhar os distritos para cidades com mais de 200 mil habitantes. Uma dificuldade não notada pelo PL é que a unidade geográfica básica da justiça eleitoral é o município. No interior de um município não há correspondência entre o local de moradia da pessoa e o local de voto. Não está claro como os distritos serão construídos.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de outubro de 2019.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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