Reformas microeconômicas: continuidade, tensões e retrocessos como o Saque-Aniversário do FGTS

Novas regras estabeleceram várias travas e reduziram drasticamente a possibilidade de antecipações, provocando queda superior a 80% nas operações de crédito lastreadas no FGTS em poucos meses.
A trajetória das reformas econômicas brasileiras desde a redemocratização evidencia um padrão recorrente: períodos de avanços estruturais convivem com interrupções abruptas, hesitações políticas e retrocessos que comprometem a consolidação institucional de longo prazo.
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995–2002), o país solidificou sua arquitetura macroeconômica — metas de inflação, responsabilidade fiscal e regulações setoriais mais robustas. Entretanto, como mostram estudos do Ipea e do Banco Mundial, esse ciclo de reformas concentrou-se quase exclusivamente no plano macro, deixando pouco espaço para transformações microeconômicas mais profundas, especialmente naquelas que afetam produtividade, informalidade, ambiente de negócios e eficiência dos mercados de crédito.
Foi apenas no início do governo Lula 1, a partir de 2003, que emergiu uma agenda microeconômica mais articulada. Houve avanços importantes em crédito consignado, modernização da lei de falências e inclusão financeira. Entretanto, como documentam Bonomo e França (2012), essa agenda perdeu tração já em 2006 e permaneceu praticamente estagnada por uma década.
A retomada vigorosa só ocorreu no governo Temer (2016–2018), com medidas estruturantes: reforma trabalhista, revisão da política de conteúdo local, nova governança para estatais, abertura do mercado de jogos com aposta, retomada dos leilões de petróleo e substituição da TJLP pela TLP. Essa agenda encontrou continuidade no governo Bolsonaro (2019-2022), com o marco legal do saneamento, concessões, privatização da Eletrobras e avanços institucionais com a criação do FIAGRO e outros instrumentos essenciais de financiamento e segurança jurídica.
No governo Lula 3 (2023 até os dias atuais), houve também continuidade de reformas microeconômicas, como as reformas tributária e a do marco das garantias — e, pela primeira vez desde a Nova República, acumulamos quase uma década de reformas microeconômicas consistentes.
Esse cenário, contudo, conviveu com tensões. Houve tentativas de reversão em marcos regulatórios, como no saneamento, repelidas por Legislativo e Judiciário. Outras iniciativas, entretanto, prosperaram e configuram retrocessos claros — entre elas as restrições ao saque-aniversário do FGTS, tema central deste artigo.
Criado em 2019, o saque-aniversário representa uma modernização relevante da lógica do FGTS. Até então, o trabalhador só podia acessar integralmente seu saldo em circunstâncias muito específicas: demissão sem justa causa, aposentadoria, compra da casa própria, algumas doenças graves, entre poucos outros.
O saque-aniversário introduziu maior liberdade: todos os anos, no mês do seu aniversário, o trabalhador poderia retirar voluntariamente parte do saldo da conta vinculada. Essa retirada não comprometia o acesso a outros direitos do FGTS, exceto o saque integral em caso de demissão sem justa causa — que se tornava restrito para aqueles que optassem pela modalidade.
Para compensar essa limitação, havia uma alternativa eficiente e amplamente usada: a antecipação do saque-aniversário por meio de instituições financeiras privadas, que, mediante cessão fiduciária, emprestavam ao trabalhador múltiplas parcelas futuras do saque. Com risco praticamente nulo, por tratar-se de crédito garantido no saldo do FGTS, a operação tinha juros significativamente menores que o crédito pessoal tradicional.
Essa combinação — saque anual mais possibilidade de antecipações — atendia aos três objetivos centrais estabelecidos para esse avanço institucional: (i) elevar produtividade ao reduzir restrições de liquidez; (ii) reduzir informalidade ao aumentar o retorno líquido do emprego formal; (iii) mitigar a “taxação implícita” associada à baixa remuneração do FGTS.
A literatura sobre informalidade no Brasil — incluindo Ulyssea (2018), estudos do Banco Mundial e pesquisas do Ibre/FGV — aponta dois determinantes centrais que desestimulam o emprego formal: o alto custo do trabalho e as restrições de liquidez enfrentadas pelos trabalhadores. O saque-aniversário atuava justamente sobre esse segundo ponto. Ao permitir que trabalhadores formais acessassem parte de seu FGTS — uma poupança compulsória com baixa remuneração — a política reduzia restrições financeiras de curto prazo e diminuía o diferencial de bem-estar entre as ocupações formais e informais.
Quando esse diferencial se estreita, o trabalhador percebe maior vantagem em permanecer empregado formalmente, investe mais em capacitação, reduz sua rotatividade e tende a elevar sua produtividade. Do lado das empresas, a menor rotatividade e a maior previsibilidade de permanência dos trabalhadores aumentam o incentivo à contratação com carteira assinada, contribuindo para a redução da informalidade.
Alguns indicadores macroeconômicos posteriores se alinham a essa interpretação. Em 2019, a informalidade havia alcançado 41,1% — o maior nível desde 2016. Após a pandemia, caiu para a faixa de 36% a 37% e permaneceu estabilizada abaixo do patamar pré-2019, chegando a 37,8% em junho de 2025, com recorde de empregos formais segundo o Caged.
No campo da produtividade, séries do Ipea e do IBGE registram forte queda entre 2015 e 2020, seguida de estabilização a partir de 2021 e leve recuperação em 2024-2025, sobretudo em serviços formais e na indústria. Embora diversos fatores expliquem essas dinâmicas, é plausível — e metodologicamente honesto — reconhecer que o aumento de liquidez para trabalhadores formais, viabilizado pela antecipação dos saques, contribuiu para um ambiente mais favorável à formalização e à produtividade marginal do trabalho.
Foi nesse contexto que o governo Lula 3 promoveu um conjunto de mudanças que, na prática, desestruturaram o funcionamento do saque-aniversário. As novas regras implementadas especialmente em 2025 estabeleceram várias travas e reduziram drasticamente a possibilidade de antecipações”.
A justificativa oficial era proteger o trabalhador de um suposto “endividamento excessivo”, embora a modalidade tivesse inadimplência praticamente nula e juros relativamente baixos justamente porque o risco era integralmente coberto pelo saldo do FGTS. Essa iniciativa do governo Lula 3 segue o raciocínio de que o Estado (ou os burocratas) presume saber melhor que o trabalhador como ele deve usar seus recursos — debate parecido ao que ocorreu em 2003, quando o governo Lula avaliava se adotaria o Bolsa Família, que dava mais liberdade ao beneficiário, ou o Fome Zero
Na prática, a medida extingue o componente mais eficiente da política: o canal de liquidez. Com isso, reduz-se a renda disponível e a capacidade de suavização de consumo das famílias, desmonta-se um mecanismo moderno de crédito privado com risco baixíssimo, enfraquecem-se incentivos à formalização e contrariam-se recomendações de organismos internacionais, que defendem políticas pró-trabalho baseadas em redução de rigidezes financeiras.
Há ainda um choque de políticas públicas difícil de justificar: enquanto a política de isenção do Imposto de Renda pretende aumentar a renda disponível das famílias em cerca de R$ 28 bilhões por ano em 2026, as restrições ao saque-aniversário retiram da economia praticamente o mesmo valor — R$ 28,8 bilhões, segundo estimativas da ABBC. Ou seja, uma política anula o efeito de estímulo da outra.
Logo, esse retrocesso não se limita ao plano econômico; tem também implicações políticas e talvez o governo não tenha se dado conta disso. Em ano eleitoral, a redução de liquidez para trabalhadores formais irá contrastar com a expectativa de que a política de isenção de imposto de renda amplie bem-estar — o que torna a decisão ainda mais difícil de compreender. Ademais, ao desmontar parcialmente uma política que ampliava liberdade, liquidez e eficiência alocativa, o governo rompe a continuidade institucional construída desde 2003, retomada em 2016 e aprofundada até 2022.
A história econômica brasileira mostra que avanços microeconômicos exigem consistência, previsibilidade e resistência às tentações de curto prazo. A reversão do saque-aniversário ilustra os custos — econômicos, sociais e possivelmente políticos — de abandonar esses princípios. Se reformas microeconômicas levam anos para gerar efeitos positivos, basta um conjunto de decisões mal calibradas para comprometer o caminho construído.
O Brasil, mais uma vez, enfrenta o risco de desperdiçar uma oportunidade de consolidar ganhos institucionais que poderiam elevar produtividade, reduzir informalidade e, sobretudo, ampliar as liberdades econômicas dos trabalhadores.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Referências Bibliográficas:
ABBC - Associação Brasileira de Bancos. (2024). Nota Técnica sobre os impactos da restrição à antecipação do Saque-Aniversário do FGTS. Brasília.
Banco Mundial. (2003). Brazil Investment Climate Assessment. Washington, DC.
Bonomo, M.; França, M. (2012). "A Agenda Microeconômica e seus Entraves." Revista Conjuntura Econômica, FGV.
FGV/Ibre. Diversos estudos e séries históricas sobre informalidade e produtividade (2018-2025). Inclui: Boletim Macro Ibre, Observatório de Produtividade.
Ipea. (2021-2024). Indicador de Produtividade do Trabalho - IPT.
Ulyssea, G. (2018). Firms, Informality and Development: Theory and Evidence from Brazil. American Economic Review.










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