Renda Brasil levou cartão vermelho
Desde o início do mandato, o governo prometeu um novo programa de transferência de renda aos mais pobres. A ideia é bem antiga e surgiu entre alguns técnicos do IPEA que simularam quais seriam os ganhos de distribuição de renda ao consolidar alguns programas sociais como o abono salarial e salário família para que esses recursos fossem utilizados para ampliar o bolsa família.
A lógica é que como o Bolsa-Família é um programa mais focalizado, essa consolidação poderia reduzir a desigualdade de renda do país o que foi confirmado pelos estudos. A proposta sempre esbarrou no desafio político de encontrar, em um país tão desigual, uma forma de justificar a necessidade de tirar benefícios que são bastante consolidados ao longo das décadas de um segmento social cuja renda é próxima ao salário mínimo.
Apesar de já polêmica, a proposta piorou muito na passagem dos estudos técnicos para a área econômica. Em determinados momentos o programa incorporou desonerações da folha, vouchers para educação, investimentos públicos e até o congelamento do salário mínimo. Propôs-se acabar em meio à pandemia com programas de saúde que possuem avaliações positivas. No auge da megalomania propôs-se premiar bons alunos com geladeiras.
Ao ter conhecimento mínimo da proposta, o presidente afirmou que não retiraria recursos dos pobres para os paupérrimos. Talvez não tenha lido a proposta de reforma da previdência que enviou para o Congresso Nacional que reduzia o abono salarial e o BPC. Se for verdade que não leu, surpreendeu um total de zero pessoas. Mas a verdade é que a conjuntura é outra. A proposta de congelar o salário mínimo nominal, por sua vez, lembrou a repressão salarial do governo militar nos anos 1970, um símbolo histórico da piora da distribuição de renda. Essa proposta parece ter sido a pá de cal para o programa.
Mas as circunstâncias que levaram o programa a receber cartão vermelho suscitam reflexões importantes. A primeira é a necessidade de valorizar o programa bolsa família, um símbolo importante da redução de desigualdade no país. Ele pode ser aperfeiçoado, mas deve ser muito valorizado. A segunda é que distribuir rendas em um país que não cresce é uma tarefa dificílima. Essas propostas geram perdas bastante significativas e o ambiente político torna-se muito desfavorável. A terceira é que voltamos para a estaca zero no debate sobre a reação à pandemia e perdemos um tempo precioso.
Entre as pessoas mais preocupadas com a questão da sustentabilidade fiscal, a notícia trouxe alívio. De fato, o programa nesses moldes tinha todas as chances de dar errado e o risco fiscal era elevado. Mas é preciso enxergar a questão de forma mais ampla. Por um lado, as medidas extremas ventiladas mostram o desespero de quem tem que viabilizar um orçamento comprimido entre o teto e o populismo militar e religioso do governo.
Por outro lado, ao optar por não trabalhar por um programa que defendia, a tendência é que o governo também opte por não tomar outras decisões difíceis mesmo que se tornem necessárias. Ao governo cabe governar, mas abre mão disso quando empurra uma série de decisões com a barriga e não consegue decidir suas prioridades.
Por enquanto, o elefante continua lá na sala paradinho esperando as pessoas ficarem desconfortáveis. E nesse momento, quando o benefício emergencial acabar, saberemos quem terá as melhores garrafas no governo para vender. O Renda Brasil pode ter sido expulso de campo, mas ainda existe um jogo sendo disputado.
Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 16/09/2020, quarta-feira.
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