Macroeconomia

Responsabilidade social depende de responsabilidade fiscal

16 nov 2022

Várias razões justificam expansão de gasto social. Mas é importante que programa assistencial seja bem desenhado e haja fontes adequadas de financiamento. Caso contrário, dívida pública se eleva, penalizando os mais pobres.  

A pandemia de Covid-19 evidenciou as fragilidades da rede de proteção social brasileira. Além de uma parcela significativa da população se encontrar na pobreza e extrema pobreza, os trabalhadores informais são extremamente vulneráveis a situações em que ocorre uma perda abrupta de renda.

Para enfrentar esta situação, foi criado no final do ano passado o Auxílio Brasil. Além de oferecer vários benefícios, foi estabelecido um valor mínimo de R$ 400 para cada família. Inicialmente temporário, este ano o Congresso decidiu tornar permanente este benefício extraordinário. Em seguida, foi aprovado o aumento deste valor para R$ 600 por família até o final deste ano. Durante a campanha eleitoral, o presidente eleito, assim como outros candidatos (incluindo o atual presidente), prometeu manter o piso de R$ 600 por família de forma permanente.

Como já tive oportunidade de discutir neste espaço, o problema mais grave do Auxílio Brasil foi exatamente a criação de um valor mínimo por família. Na medida em que são desconsideradas a composição familiar e a insuficiência de renda, isso compromete a focalização do programa nos mais pobres, com diversas consequências negativas.

Além disso, eleva o incentivo para que as famílias se inscrevam no Cadastro Único de forma isolada para receber mais de um benefício. De fato, o número de famílias com uma só pessoa aumentou de 2,1 milhões em novembro de 2021 para 5,2 milhões em agosto deste ano.

A manutenção permanente de um valor mínimo de R$ 600 também terá um impacto fiscal muito elevado. Um programa social de cerca de R$ 35 bilhões (Bolsa Família) poderá custar R$ 175 bilhões em 2023, incluindo a despesa adicional de 18 bilhões caso seja criado um benefício de R$ 150 para crianças até seis anos.

Embora várias razões justifiquem uma expansão dos gastos sociais, é muito importante que o programa assistencial seja bem desenhado para gerar os efeitos desejados de redução da pobreza. E, naturalmente, é fundamental que existam fontes adequadas de financiamento. Caso contrário, a consequência será a elevação da dívida pública, com aumento da inflação e menor crescimento e geração de emprego, o que penaliza exatamente o público-alvo do programa social.

Vários exemplos recentes ilustram de forma bastante clara as consequências negativas de um financiamento inadequado. No caso do Brasil, as exclusões das despesas sociais (além de várias outras) do teto de gastos, no contexto da aprovação da PEC dos Precatórios e da PEC Eleitoral, resultaram em elevação significativa das taxas de juros de mercado e impacto inflacionário via desvalorização do câmbio. Outra consequência será a desaceleração da atividade econômica e do mercado de trabalho ano que vem.

No exterior, o pacote fiscal excessivamente ambicioso de Biden no início de seu mandato contribuiu para a elevação da inflação nos Estados Unidos em relação a outros países desenvolvidos, com consequências negativas para sua popularidade. No Reino Unido, a tentativa desastrosa da primeira-ministra Liz Truss de fazer uma grande redução de impostos sem compensação da perda de receita implodiu seu mandato logo no início.

No entanto, é possível conciliar responsabilidade social com responsabilidade fiscal. Em setembro de 2020, participei da elaboração do Programa de Responsabilidade Social, a pedido do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP).[1] Esta proposta serviu de base para o PL 5343/2020, de autoria do Senador Tasso Jereissati, que cria a Lei de Responsabilidade Social (LRS).

A proposta do CDPP consiste em medidas de aprimoramento da rede de proteção social brasileira, respeitando a necessidade de equilíbrio das contas públicas. Seus objetivos são eliminar a pobreza extrema, proteger os trabalhadores informais da volatilidade de sua renda e promover a igualdade de oportunidades.

Para financiar o pagamento dos benefícios sociais, propusemos a fusão do Bolsa Família com programas ineficientes e baixa capacidade de redução de pobreza: o Abono Salarial, o Salário Família e o Seguro Defeso.

Uma avaliação recente do Abono Salarial por parte do Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) do governo federal mostra que, apesar do impacto fiscal significativo (R$ 24,9 bilhões na PLOA 2023), o Abono não contribuiu para a redução da pobreza ou da desigualdade. Também não foram encontrados efeitos positivos sobre a formalização, com exceção das mulheres com remuneração inferior a 1,5 salários mínimos.

Em relação ao Seguro Defeso (R$ 4,9 bilhões na PLOA 2023), segundo dados apresentados na avaliação do programa realizada pelo CMAP, o número de beneficiários do Seguro Defeso era mais que o dobro dos pescadores artesanais identificados na PNAD Contínua em 2018. Também existem evidências de que o programa incentiva não-pescadores a se tornarem pescadores para poder receber o benefício.

Já a LRS propõe que o novo programa social seja financiado com recursos que eram destinados ao Bolsa Família, complementados com o remanejamento de emendas parlamentares e uma parcela do Abono Salarial. Neste último caso, são modificadas as regras de acesso ao benefício, cujo valor passa a depender do número de dependentes menores de idade dos trabalhadores elegíveis. Também são propostas fontes adicionais de financiamento caso as metas de redução da pobreza e extrema pobreza não sejam atingidas, como redução dos gastos tributários, acionamento dos gatilhos do teto de gastos e suspensão das deduções do imposto de renda referentes a gastos com dependentes.

Assim como a proposta do CDPP, a LRS determina que a despesa com o programa social respeitará os limites fiscais vigentes, em particular o teto de gastos. Este é um ponto fundamental. Qualquer tentativa de expandir programas sociais sem considerar a delicada situação fiscal em que o país se encontra resultará em aumento da inflação e baixo crescimento econômico, penalizando os mais pobres e trabalhadores com maior vulnerabilidade social.


[1] A proposta está disponível no site do CDPP: https://cdpp.org.br/wp-content/uploads/2020/09/CDPP-Paper-Projeto-Programa-de-Responsabilidade-Social.pdf.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 11/11/2022.

Comentários

Izaquiel Gielman
Parabéns pelo artigo. Exatamente isso. Há que se acertar a formulação dos benefícios sociais de forma a que os mesmos alcancem reais brasileiros de nossa pirâmide social . E que haja justiça social. Nem mais nem menos
Eli Moreno
É incrível como o populismo é capaz de fazer de mouco com relação à história. O Brasil nunca construiu um plano social de largo prazo que fosse capaz de promover transformações sociais com base na educação e mercado. Salvo em situações emergenciais (como o da pandemia), a preferência sempre foi pelo assistencialismo e pelo clientelismo que reforçam a manutenção da pobreza. Exageros à parte, às promessas lembram ração no lugar de liberdade e trabalho. Como diz Alkmin, ao justificar a PEC, "dinheiro de graça".

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