Seção 899: Sofisticando o bullying contra estrangeiros

A Seção 899 do One Big Beautiful Bill Act prevê a taxação de investidores estrangeiros de países que utilizem “impostos injustos” contra os EUA. Os critérios são vagos, introduzindo incertezas institucionais relevantes.
A administração americana avança na Agenda Mar-a-Lago, mudando as relações do país com o mundo. O lema Make America Great Again (MAGA) se transforma, cada vez mais, em Making America Greatly Alone.
A Câmara dos Deputados americana aprovou o One Big Beautiful Bill Act, que se propõe a mudar completamente a execução fiscal do país – com efeitos nocivos sobre a dívida pública[1]. Com múltiplas renúncias do lado da arrecadação e manutenção das despesas em patamar elevado, mesmo se considerarmos mudanças em sua composição, o One Big Beautiful Bill Act tende a pressionar fortemente a execução fiscal americana, tantos nos fluxos como no estoque. A consolidação fiscal, imaginada por muitos sob a liderança de Trump, claramente ficou pelo caminho. Frente a um cenário contrafactual sem a aprovação da lei, as estimativas mais conservadoras apontam para uma expansão de US$ 2,5tri no endividamento público americano, em um horizonte de 10 anos[2]. A aprovação foi por margem mínima na Câmara dos Deputados (somente um voto), ainda sendo necessária uma apreciação no Senado[3].
Em um texto extenso e cheio de detalhes, emergiu um debate em torno da Seção 899, que propõe a cobrança de tributos sobre investidores estrangeiros detentores de ativos americanos. Soterrada em mais de 1000 páginas de legislação, a Seção 899 propõe um Revenge Tax (Imposto da Vingança, em tradução livre) que não deve ser entendido sob uma ótica arrecadatória, mas sim como mais um instrumento de coerção dentro das novas diretrizes da política externa americana. Seus benefícios parecem ser infinitamente menores do que os custos associados ao seu uso, introduzindo mais um ponto de desconforto nas relações entre os EUA e os agentes globais (governos e investidores).
Sob acionamento da Seção 899, impostos punitivos entrariam em vigor. Indivíduos e empresas que tenham associação a países que apliquem “impostos injustos” seriam alvo da taxação americana, havendo margem, inclusive, para a tributação de investidores soberanos. A renda com royalties, dividendos e juros de investidores associados a esses países seria tributada por uma alíquota incremental inicial de 5,0%, podendo chegar a um máximo de 20%, com incrementos anuais de 5,0p.p.. Em termos práticos, a Seção 899 abre a possibilidade de taxar detentores estrangeiros de ativos americanos, abarcando desde instrumentos privados a Treasuries[4], de forma um tanto arbitrária.
Os critérios de enquadramento não são claros. Em princípio, os “impostos injustos” incluem a taxação global mínima sobre multinacionais, acordada recentemente por 140 países[5], os impostos sobre serviços digitais e as práticas para coibir a elisão fiscal por lucros desviados (diverted profits)[6]. Embora outros tributos possam estar incluídos na lista de “injustiças”, no geral a discussão se referente aos tributos cobrados sobre as empresas americanas que operam em território estrangeiro. Abre-se a possibilidade concreta de ampliar a Guerra Comercial para uma Guerra de Capitais, com impactos imensuráveis sobre a economia global.
O novo imposto é persecutório, constrangendo os países a adotarem uma política fiscal soberana (doméstica) mais adequada aos interesses externos americanos. Em última instância, o Revenge Tax é um instrumento para desestimular a taxação de empresas americanas por países estrangeiros. Como corolário, a iniciativa é uma afronta às diretrizes, globais, de taxação das empresas multinacionais. Caso implementada, a política traria efeitos colaterais relevantes, não somente sobre a percepção da estabilidade das instituições americanas, como também sobre todo o desenho tributário internacional, atrapalhando esforços plurianuais de normatização e integração entre os países. O Revenge Tax seria um golpe importante na percepção de ativos americanos como reserva global de valor. Mesmo que a Seção 899 não seja aprovada no Senado, somente o fato do Executivo e da Câmara dos Deputados apoiarem tal iniciativa pode ser suficientemente negativo.
Há relevante risco “do tiro sair pela culatra”. Não há garantia de que os países estrangeiros se dobrem aos desejos americanos, modificando as suas estruturas tributárias domésticas, nem que a arrecadação resultante do Revenge Tax seja relevante– ainda que, em nossa visão, o objetivo arrecadatório seja, de fato, secundário. A questão mais relevante está no aumento da insegurança jurídica; os incentivos para que empresas e indivíduos reduzam a exposição a ativos americanos, com alguma urgência, são significativos. Renomados analistas das contas públicas americanas sugerem que os efeitos de segunda ordem da imposição do Revenge Tax seriam amplamente negativos, levando a uma redução da receita líquida anual do governo[7] e a crescentes dificuldades de colocação dos ativos americanos a mercado.
O Revenge Tax deve ser entendido dentro de um contexto de reformatação das relações econômicas, financeiras e comerciais dos EUA com o mundo. As recentes diretrizes da política externa americana partem do pressuposto que outros países se beneficiam da provisão de bens públicos globais pelos EUA, tais como a segurança militar e financeira, espoliando os contribuintes americanos (pessoas físicas e jurídicas) e, em última instância, o próprio governo do país. Os estrangeiros devem ser, dessa forma, penalizados, “pagando” de alguma forma por esses bens públicos. Nas palavras de Stephen Miran, atual presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca [8]:
“In my view, to continue providing these twin global public goods, there needs to be improved burden-sharing at the global level. If other nations want to benefit from the U.S. geopolitical and financial umbrella, then they need to pull their weight, and pay their fair share. The costs cannot be solely borne by everyday Americans who have already given so much (…) We are under siege by hostile adversaries trying to erode our manufacturing and defense industrial base and disrupt our financial system; we will be able to provide neither defense nor reserve assets if our manufacturing capacity is hollowed out. The President has been clear that the United States is committed to remaining the reserve provider, but that the system must be made fairer. (…)”
A “Agenda Mar-a-Lago” está sendo implementada. A visão estratégica de Miran, conhecida como a “Agenda Mar-a-Lago”[9], define que mecanismos de coerção geopolítica, econômica e financeira devem ser utilizados para “equilibrar” as relações entre os Estados Unidos e o mundo. Assim, os fluxos de bens, serviços e capitais devem ser reformatados, propiciando a redução do déficit comercial, o onshoring da produção e do emprego, notadamente o industrial, o enfraquecimento do dólar americano e a redução dos dispêndios fiscais com iniciativas que não coloquem os interesses americanos em primeiro lugar.
Essa é uma visão de mundo muito particular, que, se implementada, terá profundas e duradouras implicações sobre a liderança global dos EUA. Ao utilizar diversos instrumentos que estimulam as tensões institucionais com outros países, coloca-se em risco a posição hegemônica internacional: o governo americano é visto como pouco confiável e os ativos americanos deixam de ser percebidos como um inequívoco porto seguro. Ainda no campo do capital, somente a possibilidade de um Revenge Tax, nos moldes da Seção 899, reduz a atratividade americana justamente em um momento no qual a entrada de capitais é necessária para financiar a sensível elevação da dívida pública prevista pelo One Big Beautiful Bill Act. As iniciativas em discussão tendem a pressionar os rendimentos dos títulos de longo prazo americanos, aumentando o custo de rolagem da dívida, e, ao reduzirem a demanda por ativos domésticos, tendem a enfraquecer o dólar americano contra outras moedas e “ativos de reserva”[10].
Preocupa-nos a elevada carga ideológica dos policymakers americanos, o que aumenta enormemente a chance de um erro de política econômica. Ao defender a narrativa de espoliação pelos estrangeiros e ao concentrar grande parte das mazelas externas na posição excessivamente apreciada da moeda, a administração americana fornece um diagnóstico equivocado a respeito dos desequilíbrios econômicos do país. Além disso, os benefícios da emissão da moeda de reserva global[11] são amplamente ignorados. A “Agenda Mar-a-Lago”, em todas as suas vertentes (políticas imigratórias, redução do soft power, mudanças na projeção de poder militar, ataque ao multilateralismo, guerra comercial e, agora, a Seção 899), é isolacionista e enfraquece a posição americana no mundo. O lema Make America Great Again (MAGA) se transforma em Making America Greatly Alone.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Este artigo foi orginalmente publicado como Destaque BRCG em 05/06/2025. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/
[2] Para mais informações, acesse https://www.cbo.gov/publication/61461
[3] Lembremos que o Partido Republicano controla as duas Casas Legislativas, ainda que exista dúvida importante sobre a aprovação da Seção 899 no Senado. Para mais informações, acesse https://www.cnbc.com/2025/05/30/us-set-to-weaponize-taxes-on-foreign-inv...
[4] Para mais informações, acesse https://taxlawcenter.org/files/22Revenge-taxes22-risks-and-uncertainties...
[5] Para mais informações, acesse https://tax.thomsonreuters.com/blog/what-is-global-minimum-tax/#:~:text=...(GMT,rate%20of%2015%25%20on%20profits. .
[6] Quando uma empresa multinacional utiliza planejamento tributário para modificar a jurisdição na qual será taxada.
[7] O Comitê Conjunto de Tributação (Joint Committee of Taxes, JCT) do Congresso Americano estima que a medida geraria uma receita direta de US$ 116,3bi nos próximos dez anos. Mas com a saída de capitais do país e a redução da atratividade dos ativos americanos no exterior, ocorreria uma redução da receita tributária anual dos EUA em US$ 12,9bi em 2033 e 2034. Para mais informações, acesse https://taxlawcenter.org/files/22Revenge-taxes22-risks-and-uncertainties...
[8] Para mais informações, acesse https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/2025/04/cea-chairman-ste...
[9] Para mais informações, acesse https://www.hudsonbaycapital.com/our_research
[10] Para mais informações, acesse https://www.bloomberg.com/news/videos/2025-06-03/full-implementation-of-...
[11] O termo “privilégio exorbitante” foi originalmente cunhado pelo ministro das Finanças francês, Valéry Giscard d'Estaing, na década de 1960, para destacar o papel único do dólar americano no sistema de Bretton Woods, permitindo aos EUA reduzir os seus custos de financiamento externo, já que a dívida americana oferecia aos investidores internacionais uma forma de seguro contra volatilidade e riscos cambiais. Hoje, o termo adquiriu um significado mais amplo, referindo-se aos benefícios desfrutados pelo país na forma de menores custos de endividamento externo ou retornos líquidos sobre sua posição internacional de investimentos. Para estimativas recentes desse benefício, acesse https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/ire/article/ecb.ireart201906_02~9c8301...
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