Sobre ajustes fiscais
Consolidações fiscais são necessárias para restabelecer sustentabilidade fiscal – condição necessária para o crescimento. Mas composição de ajustes em termos de despesas correntes e investimentos pode afetar seu grau de sucesso.
Esse artigo, sem a figura e os hiperlinks, foi publicado na seção de Opinião do Valor Econômico no dia 01/07/2022
A sustentabilidade fiscal é uma condição necessária para o crescimento econômico. Embora não haja uma definição muito precisa do que signifique “sustentabilidade fiscal”, em geral ela está associada a um nível de endividamento público relativamente baixo e/ou cadente ao longo do tempo, bem como a um resultado fiscal, corrente e esperado, em nível suficiente para assegurar tal trajetória.
Quando a execução da política fiscal coloca a sustentabilidade fiscal em dúvida – como aconteceu no Brasil entre 2012-2014 –, faz-se necessária uma correção de rota, ou seja, uma “consolidação (ou ajuste) fiscal”. Há diversas formas de se realizar uma consolidação fiscal, via aumento da arrecadação e/ou via redução das despesas. E mais: os tipos de tributos e de gastos alterados também influenciam seu grau de sucesso, como iremos explorar neste artigo.
No final dos anos 1990 e no começo dos anos 2000, as autoridades brasileiras implementaram ajustes fiscais sobretudo por meio de elevações da carga tributária. Já em 2015/16, a escolha recaiu basicamente sobre as despesas, com a introdução de um teto de gastos para boa parte dos gastos primários federais entre 2017 e 2036 (com a possibilidade de revisão do indexador a partir de 2027).
Essa mudança de estratégia em 2015/2016 se amparou em vários fatores: i) a despesa pública no Brasil vinha crescendo expressivamente, em % do PIB, desde o final dos anos 1980 – boa parte disso por conta das despesas com o INSS, como mostraram Pires e Borges 2019; ii) a carga tributária brasileira, após as fortes elevações ocorridas em 1999-2004 (de pouco mais de 6 p.p. do PIB) e algumas desonerações em 2012-14 (de cerca de 1 p.p.), estava em torno de 32% do PIB em 2015-16, relativamente elevada para países emergentes; e iii) estudos empíricos apontavam que consolidações fiscais pelo lado das despesas seriam menos dolorosas para o restabelecimento da sustentabilidade fiscal.
Importante mencionar que a adoção de um teto de gastos no caso brasileiro não veio acompanhada de qualquer distinção entre gastos correntes e de capital (investimentos). Embora a literatura de regras fiscais já antecipasse a possibilidade de que uma regra de limite para as despesas pudesse gerar uma mudança desfavorável na composição dos gastos públicos, com redução dos investimentos (que são politicamente mais fáceis de cortar do que despesas correntes), isso foi ignorado naquele momento, sob o argumento tácito de que a produtividade do investimento público no Brasil era muito baixa.
Há alguns desfechos possíveis associados a processos de consolidação fiscal: (i) ajuste fiscal “tradicional”, que, mesmo gerando algum impacto negativo sobre o PIB no curto prazo, gera redução da relação dívida/PIB ao longo do tempo; (ii) contração fiscal expansionista, o mais almejado e raro dos resultados, que gera um efeito expansionista sobre o PIB (via confiança/expectativas) superior ao efeito “keynesiano” recessivo do aperto fiscal, com forte queda da dívida/PIB; e (iii) consolidações fiscais contraproducentes, nas quais o ajuste fiscal acaba gerando piora da relação dívida/PIB, por gerar um impacto negativo muito expressivo sobre o PIB.
Como saber qual cenário decorrerá de uma consolidação fiscal? Um trabalho recente de economistas do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Ardanaz, Cavallo, Izquierdo & Puig 2021), jogou luz sobre esse debate, apontando que a composição do gasto afeta o grau de sucesso das consolidações fiscais. Usando dados de 70 países emergentes e desenvolvidos ao longo de 40 anos, eles identificaram que ajustes fiscais associados a reduções muito expressivas da participação dos investimentos públicos no total do gasto podem gerar efeitos contraproducentes – isto é, aumento da relação dívida/PIB ao final do processo, e não queda. Por outro lado, encontraram que ajustes fiscais que conseguem ser realizados de forma concomitante a um aumento do peso dos gastos com investimentos no total da despesa ao longo do tempo podem resultar nas tão sonhadas contrações fiscais expansionistas. O canal de transmissão identificado pelos autores é a elevada complementaridade entre investimentos públicos e privados.
Tendo esses resultados em mente, vejamos o caso brasileiro. A participação dos investimentos do governo central brasileiro na despesa primária recorrente vem recuando desde 2015. Houve uma queda de 63% dessa razão na comparação de 2021 com 2014 e de 25,6% em 2021 vs 2016. De acordo com o estudo citado acima, retrações do share do investimento superiores a 16,8% (ver Figura 4 do paper) fazem com que consolidações fiscais de 1 p.p. (ou seja, elevações do primário ajustado pelo ciclo em 1 p.p.) reduzam o PIB em cerca de 1,5 p.p., 2 a 4 anos à frente.
Essa constatação é de extrema importância. Primeiro, porque pode ajudar a explicar parte da forte queda de cerca de 7% do PIB brasileiro em 2015/16. Segundo, porque contribui para entendermos a recuperação atipicamente lenta observada em 2017-19 (a despeito da existência de enorme capacidade ociosa no final de 2016). Terceiro, porque sugere que o nosso padrão de ajuste fiscal pode (e deve) ser melhorado. Vale lembrar que, a despeito de ter ocorrido uma elevação de cerca de 1,5 p.p. do PIB do resultado primário estrutural entre 2016 e 2019, a relação dívida/PIB brasileira, tanto bruta como líquida, se elevou expressivamente ao longo desse período e as projeções de consenso em dezembro de 2019 (antes do choque pandêmico) apontavam que ela continuaria subindo até 2024.
É nesse contexto que nós defendemos um novo conjunto de regras fiscais para o Brasil, envolvendo um novo teto de gastos (sim, temos que ter algum limite), mais bem desenhado e calibrado, que não penalize o investimento público, bem como outras regras que permitam que a política fiscal brasileira seja verdadeiramente contracíclica. Convém notar, por fim, que outros trabalhos recentes de economistas do BID, estudando os casos de Chile e Colômbia (aqui e aqui), apontaram que regras fiscais anticíclicas não somente reduziram a volatilidade macroeconômica, como também melhoraram a sustentabilidade fiscal.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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