Macroeconomia

Sobre precatórios e o teto de gastos

31 ago 2021

No debate dos precatórios, só há duas posições razoáveis. A mais “hawk” defende que teto permaneça intocado. A mais benevolente abre concessão excepcional para parcela que foi surpresa, caracterizada como “meteoro”. É essencial não gerar espaço fiscal que não existia antes.

Temos um impasse. Nas vésperas do envio do orçamento de 2022 para o Congresso, o governo descobriu que teria que pagar um valor de precatórios muito maior do que em 2021. Sendo mais exato, a conta alcançaria R$ 89 bilhões, um aumento nominal de R$ 34 bilhões frente aos R$ 55 bilhões a serem pagos este ano. Tamanho incremento foi chamado de “meteoro” pelo ministro da Economia.

A conta de precatórios de fato vem subindo ao longo do tempo. Em 2016, o montante pago foi de R$ 30,3 bilhões. O gasto de 2021 representa um aumento de 83% em cinco anos e deve corretamente suscitar preocupações e medidas para conter esse movimento. Conhecer os motivos que têm levado a esse crescimento, verificar a tendência para os próximos anos e melhorar a representação da União na Justiça são tarefas importantes a serem realizadas com rigor nos próximos meses, a fim de ajudar na formulação de uma solução estrutural para o problema.

Apesar disso, temos esse impasse agora. Para o orçamento de 2022, o governo contava com uma alta no limite do teto de gasto para poder expandir o gasto discricionário no ano eleitoral. A inflação até junho ficou em 8,35%, reajustando o teto de R$ 1.486 bilhões para R$ 1.610 bilhões, aumentando em quase R$ 130 bilhões o espaço para gastar em 2022. Com a recente alta nas projeções de inflação para o fim do ano, contudo, a margem no teto de 2022 tem ficado cada vez menor, uma vez que boa parte das despesas obrigatórias, a exemplo da Previdência, costumam ser reajustadas pela inflação de dezembro.

Até pouco tempo atrás, essa era a questão fundamental para o orçamento do ano que vem: a inflação mais elevada comendo parte do espaço fiscal para a elevação de despesa, que, pelo desejo do governo, deveria corretamente ir para o gasto com programas sociais. O “meteoro”, contudo, modificou esse jogo. O aumento na despesa esperada com precatórios tornou-se grande ameaça para aquele espaço. A partir daí, iniciou-se intensa discussão: o que fazer?

A opção natural seria acomodar todo o gasto com precatórios dentro do teto, respeitando plenamente a regra fiscal. Essa opção, contudo, não tem muitos adeptos: o governo não quer cortar outras despesas, incluindo os elevados gastos com emendas do relator-geral do Orçamento. Como também não abre mão de turbinar os programas sociais em ano eleitoral, resta a opção de driblar o problema. Muitos economistas se sensibilizaram com o crescimento inesperado dos precatórios e, com isso, uma mudança na regra acabou se tornando mais palatável. 

Assim, o governo federal foi o primeiro a “jogar”. Formulou uma PEC que propõe a postergação de parte das despesas com precatórios e a criação de um fundo para receber recursos de privatizações e concessões que ficariam vinculados ao abatimento dessa dívida. A proposta tem sérios problemas, mas destaca-se a impertinência da criação dos fundos: não só porque vai contra o discurso do ministro (que defendia a extinção de fundos e a desvinculação de recursos), mas também por problemas de transparência (orçamentos paralelos) e da elevada chance de incentivar a criação de novos fundos e vinculações.

Depois dessa proposta, novas ideias não pararam de chegar. Na última semana, deu-se importância a uma proposta vinculada ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A ideia é utilizar o valor do pagamento de precatórios de 2016 como base para calcular um limite para pagamento em 2022. Este número estaria em R$ 39 bilhões, o que implica, portanto, na postergação de gastos em torno de R$ 50 bilhões (e com riscos de formar uma bola de neve no futuro).

Para piorar, nota-se que o pagamento em 2022, de apenas R$ 39 bilhões, estaria muito abaixo do valor pago em 2021. É o meteoro virando bilhete premiado: permite a abertura de um espaço no teto de 2022 que não existia. Trata-se de uma solução muito ruim, que desmoraliza a regra e premia aqueles que erraram ao não antecipar o problema. Infelizmente, é uma das principais soluções que estão postas na mesa, no momento.

Ainda não temos decisão e talvez o debate ainda se desenrole por algumas semanas. Independentemente disso, a solução final precisa partir de duas premissas fundamentais. A primeira é de não gerar espaço fiscal que não existia antes. Explico: se o gasto com precatórios este ano é de R$ 55 bilhões, nada justifica que fique abaixo disso em 2022 para abrir espaço forçado no teto. Uma coisa é querer discutir uma excepcionalização da surpresa (a diferença entre os R$ 89 bilhões e o gasto realizado em 2021 após correção monetária), outra coisa é excepcionalizar até o que não era surpresa, computando só R$ 40 bilhões no teto de 2022. A segunda é que não sejam criados novos fundos e vinculações. Já não basta o que queríamos extinguir?

No fundo, nesse debate, de maneira geral, só existem duas posições razoáveis.

A primeira é a mais hawk. Defende que o teto siga intacto, afinal regra é regra e não deve ser mudada, literalmente, de um mês para o outro, especialmente para permitir aumento de despesa em pleno ano eleitoral.

A segunda é mais benevolente e compreensiva. Defende o cumprimento do teto, mas considera abrir uma concessão muito excepcional para abarcar a parcela caracterizada como “meteoro” dos precatórios para 2022. Ou seja, somente a surpresa, o que não estava no radar. Isso deveria vir, preferencialmente, com o estabelecimento de alguma contrapartida ou com o acionamento artificial de algum gatilho do teto.

Qualquer outra postura pode ser bastante danosa à credibilidade das regras fiscais. A reformulação intempestiva do teto, ou retroagindo até 2016 ou de alguma outra forma, que abra espaço forçado em 2022, seria algo oportunístico, injusto e, portanto, inaceitável. Mudanças que, a poucos dias do envio do orçamento de um ano eleitoral, são ainda mais graves e suscitam a pergunta: regra é regra? Ou vale mudar de repente no meio do jogo?

Mudanças assim também estariam indo contra a linha do ajuste fiscal, pois, implicitamente, estariam protegendo fortemente as tão criticadas emendas de relator-geral e outros gastos que poderiam ser cortados. Por fim, poderiam acabar abrindo uma caixa de pandora, tornando-se a deixa para novas alterações no futuro, afinal, boas justificativas sempre vão existir. Que não entremos por esse perigoso caminho.  


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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