Macroeconomia

Trump manda investigar a China no tema de transferência de tecnologia: conflito comercial à vista?

13 nov 2017

O Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, sigla em inglês) acatou, em agosto, o pedido do Presidente Trump para iniciar uma investigação sobre a China no contexto da Seção 301 que integra a legislação de comércio exterior dos Estados Unidos. O governo dos Estados Unidos acusa a China de atuar de forma “não razoável, discriminatória e onerosa” em relação aos interesses comerciais dos Estados Unidos no campo dos direitos de propriedade intelectual e transferência de tecnologia. O ponto central da investigação é a alegação de que o governo chinês utiliza práticas “desleais, ilegais” que obrigam empresas estadunidenses que querem operar em território chinês a transferirem conhecimento tecnológico para empresas chinesas. A investigação pode se estender no máximo até um ano. Se positivo, o Presidente Trump pode escolher entre tentar negociar com os chineses uma solução que atenda aos interesses de ambas as parte, retaliar comercialmente a China ou não fazer nada.

O anúncio de uma investigação sob a égide da Seção 301 foi duramente criticado pelos chineses, como seria esperado, mas também por analistas de comércio exterior nos Estados Unidos (um exemplo é o comentário de Gary.C.Hufbauer , 2017, e outros). O que está em jogo?

A Seção 301 é interpretada como uma medida que expressa o uso abusivo do poderio dos Estados Unidos no comércio mundial. Ela permite que o Executivo imponha unilateralmente medidas de retaliação em relação a parceiros que inflijam danos aos interesses de cidadãos (empresas) estadunidenses no comércio de mercadorias, serviços, direitos de propriedade intelectual e investimentos. Antes de 1995, data em que entrou em vigor o acordo da Rodada Uruguai que criou a Organização Mundial do Comércio (OMC), fora o comércio de mercadorias, todos os outros temas citados não eram objeto de regulações em organismos de comércio. Os Estados Unidos alegavam que utilizavam a Seção 301, pois era a única forma de proteger seus interesses. No entanto, desde 1995 todos esses temas integram as regras da OMC e, logo, podem ser acionados pelo Mecanismo de Solução de Controvérsias da instituição. Havia um “acordo de bastidores” que, com as mudanças na OMC e a reformulação para agilizar os procedimentos das disputas no órgão, os Estados Unidos não iriam mais utilizar a Seção 301.

A China entrou na OMC em 2001 e, mesmo considerando o período de 1995 até setembro de 2017, é o país com maior número de reclamações por parte dos Estados Unidos, como mostra a tabela. No total os Estados Unidos abriram 113 investigações entre 1995 e setembro de 2017, sendo 21 contra a China. Incluímos União Europeia e o Brasil para fins de comparação e chama atenção que, em todos os casos, inclusive China, os Estados Unidos são o principal alvo das investigações.

Investigado

Reclama

Brasil

China

Estados Unidos

União Europeia

Total de casos

Brasil

Na

0

11

7

32

China

0

na

10

5

17

Estados Unidos

4

21

na

19

113

União Europeia

5

8

33

na

99

                                                                                                na: não se aplica      
                                                                                                                             Fonte: www.wto.org

A abertura da Seção 301 sinaliza dois movimentos que preocupam. Primeiro, mesmo com as negociações da Rodada Doha em ritmo de estagnação, muitos analistas consideram que o papel da OMC continua relevante como fórum de solução de disputas comerciais. Trump mostra que não concorda. Segundo, ao dispensar o mecanismo da OMC, os Estados Unidos irão criar uma situação conflituosa, caso resolvam impor retaliação em relação à China. Esta pode acionar a OMC e, se Trump ignorar, fica consolidada a rejeição dos Estados Unidos ao sistema multilateral.

A alegação de que a China impõe transferência de tecnologia é uma questão sensível para a China na relação com os Estados Unidos e outros importantes parceiros. A entrada do investimento estrangeiro na China está condicionada a três regulações referentes às seguintes situações: joint ventures de cooperação entre empresas chinesas e estrangeiras; joint ventures através de acordos de compras de ações/capital entre empresas chinesas e estrangeiras; e, empresas totalmente estrangeiras com investimento em solo chinês. Além disso, o Ministério do Comércio atualiza periodicamente um catálogo com diretrizes em relação ao investimento estrangeiro, com uma lista com empresas que são incentivadas, uma lista negativa de indústrias que limita a participação do investidor estrangeiro e uma lista de setores proibidos. Falta transparência, o que dá margem para negociações de “bastidores”.

No entanto, o anúncio do Programa “Made in China 2025” pode ter sido um dos principais motivos para a ação de Trump. Esse programa tem por objetivo assegurar que as empresas chinesas ocupem posições de liderança em setores intensivos em novas tecnologias. Foram selecionados dez setores prioritários: novas tecnologias de informações; robótica e máquinas automatizadas; equipamento aeroespacial; equipamentos marítimos de última geração; equipamento de transporte ferroviário; veículos movidos com novas energias; equipamentos de geração de energia; equipamentos agrícolas; novos materiais; e fármacos de última geração.  São criados parques tecnológicos para atração do investimento estrangeiro, incentivadas compras de empresas estrangeiras com ativos tecnológicos e financiamentos por parte do governo. Ao mesmo tempo, são fixados percentuais de conteúdo local, que chegam a 70%, para assegurar a internalização das cadeias produtivas em território chinês.

No primeiro depoimento nas audiências públicas relativas à investigação da Seção 301, o representante de um instituto reconhecido como um dos principais think tanks na área de inovação tecnológica e políticas públicas, The Information Technology Innovation Foundation (ITIF), enfatizou o financiamento estatal nas estratégias de parcerias com empresas estrangeiras. Segundo o ITIF, a China tem uma clara estratégia de se tornar líder mundial na área de novas tecnologias, utilizando práticas que não estariam de acordo com as regras da OMC. No entanto, como Hufbauer (2017, já citado) chama atenção, não é um caso de fácil comprovação se for alvo de um painel de solução de controvérsias na OMC. Além disso, algumas empresas priorizam o acesso a mercado, caso a negociação de tecnologia seja considerada razoável.

Um caminho otimista seria a negociação de um acordo de investimentos entre os Estados Unidos e a China que ajudasse a definir uma estrutura aceitável por ambas as partes, o que parece distante agora. O cenário para um contencioso comercial prevalece no momento.

Por último, há certa ironia na ação de Trump. Ao defender os interesses das empresas estadunidenses que facilitem seu acesso ao mercado chinês, menos empregos poderão ser criados nos Estados Unidos. Exatamente o oposto do que os eleitores de Trump estavam esperando.

Implicações para o Brasil? O enfraquecimento da OMC não interessa ao Brasil, que não tem poder de barganha expressivo no comércio mundial (menos de 2% das exportações e/ou importações globais) e já obteve ganhos nos painéis de solução de controvérsias da OMC (subsídio ao algodão dos Estados Unidos). O exercício unilateral da política comercial dos Estados Unidos ameaça a todos os parceiros. O Brasil já foi alvo de uma Seção 301 e sofreu retaliação porque não fornecia proteção patentária aos produtos e processos farmacêuticos no final dos anos de 1980. Um clima de contenciosos comerciais irá prejudicar a todos. 

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