A urgência da questão climática diante do desastre no Rio Grande do Sul
Consumo das famílias representa 70,5% do PIB gaúcho e, com 90% do seu PIB comprometido, demais unidades da federação precisam atender demanda gaúcha. Papel do Estado é essencial para mitigar efeitos das mudanças climáticas.
O estado do Rio Grande do Sul engloba 497 municípios com, aproximadamente, 10,9 milhões de habitantes, segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2022. Isto representa cerca de 5% do total de habitantes do Brasil.
A tragédia no Rio Grande do Sul, devido às fortes chuvas e enchentes na região, trouxe a atenção do país para o estado. É bastante impressionante perceber que o desastre ainda está em curso com pessoas isoladas, desaparecidas e em abrigos. Todo este cenário tem mobilizado campanhas de doações e solidariedade em todo o país, porém o papel do Estado neste contexto é fundamental.
Além de garantir os meios para que o povo gaúcho possa se reerguer diante dessa tragédia já posta, o Estado deve exercer o papel de liderança no processo de adoção de medidas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. O Relatório Stern (2006), do Reino Unido, afirma que “as alterações climáticas são a maior e mais abrangente falha de mercado já vista”[1]. Isto significa que, o mercado não se ajustará sozinho, pelo menos não de forma eficiente. E eficiência, neste caso, vai muito além de custo monetário, já que a ausência da ação coordenada do Estado focada nas questões climáticas torna as condições de vida cada vez mais vulneráveis. Em um contexto em que se acentuam os efeitos adversos das mudanças climáticas, torna-se crucial ampliar medidas que incentivem a adaptação e a mitigação dessas alterações.
O Rio Grande do Sul está sendo impactado em diversos aspectos devido a tragédia das chuvas. A maior parte dos efeitos negativos são incomensuráveis, pois envolve a perda de vidas, da habitação e de segurança, o que deixa um enorme trauma na população. Do ponto de vista econômico, diversas análises podem ser feitas dessa situação, mas o foco deste trabalho é sobre a importância que a cooperação das demais unidades da federação (UF) terá para atender as necessidades da população gaúcha. A ideia com isso é ressaltar a importância de se colocar a questão climática no centro do debate. Embora sua importância seja crescente nos últimos tempos, ainda não está na velocidade necessária para evitar, ou ao menos minimizar, os desastres ambientais.
Economia gaúcha
1.1 Participação do PIB do Rio Grande do Sul no Brasil
O PIB do Rio Grande do Sul representou 6,3% do PIB brasileiro na média de 2010 a 2021, de acordo com dados do Sistema de Contas Regionais do IBGE. No Gráfico 1 nota-se que essa participação foi bastante homogênea ao longo da série, variando entre 6,5% e 6,1%. Em geral, o estado ocupa o posto de quarta maior economia do país, atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Apenas em 2020 o Paraná passou a ocupar o quarto lugar, porém em 2021 o Rio Grande do Sul retomou essa colocação.
Fonte: IBGE – Sistema de Contas Regionais. Elaboração dos autores.
1.2 Distribuição do Valor Adicionado no Rio Grande do Sul e principais municípios
A distribuição do PIB do estado entre os seus municípios é bastante concentrada. Apenas Porto Alegre representa 17% do PIB estadual, na média de 2010 a 2021, de acordo com dados do PIB dos Municípios do IBGE. O somatório do PIB de apenas 15 municípios representa 50% do PIB do estado. A principal atividade econômica é o setor de serviços, mesmo padrão do Brasil.
Toda a análise dessa estrutura, entretanto, se modificou nos últimos dias. A capacidade produtiva do Rio Grande do Sul está abalada, mas a população gaúcha demanda, urgentemente, produtos. Para entender melhor a questão do comprometimento do abastecimento no Rio Grande do Sul, foi utilizada a Tabela de Recursos e Usos (TRU) do estado, que é uma estatística experimental do IBGE, referente ao ano de 2018. Do total de bens e serviços ofertado no Rio Grande do Sul, 77,9% têm origem na produção do próprio estado, enquanto 22,1% vêm de outras localidades. A Tabela 1 apresenta a estrutura de origem da oferta para 12 grupos de produtos, de acordo com a TRU de 2018.
Da parcela da oferta que é importada (22,1%), a maior parte origina-se em outras UF (15,7 p.p.) e, no curto prazo, este percentual deverá aumentar consideravelmente. Não apenas porque a capacidade produtiva do Rio Grande do Sul está comprometida, o que fará a produção representar menos, mas principalmente pela necessidade de consumo da população do estado. O volume de entrada de produtos oriundos de outras UF tende a aumentar. Este é o momento em que a demanda de bens e serviços da população deverá ser fornecida pelas demais UF.
De acordo com balanço divulgado pela Defesa Civil em 7 de maio[2], dos 497 municípios do estado, 397 foram atingidos pelo desastre. A contabilização de municípios atingidos segue aumentando, no balanço de 13 de maio, já eram 450 municípios diretamente afetados. No entanto, mesmo os municípios não listados como afetados sofrem as consequências das fortes chuvas. A logística de abastecimento está comprometida em todo o estado, com rodovias interditadas e racionamento de água em diversos locais.
Empiricamente é praticamente impossível, na atual sociedade capitalista, a existência de uma economia completamente autossuficiente. A economia e a sociedade são interligadas, ainda mais dentro de um país. Apesar disso, foi realizado exercício a partir dos dados do PIB dos municípios do IBGE, para mensurar a representatividade das cidades afetadas nas atividades econômicas do Rio Grande do Sul. Estes resultados estão representados no Gráfico 1.
Fonte: IBGE – PIB dos municípios e balanço da Defesa Civil. Elaboração dos autores.
Nota-se que 96% do PIB gaúcho é gerado nos 450 municípios afetados pelas chuvas, mas esse percentual é evidentemente maior porque não há como separar efetivamente os municípios. Todo o estado e o Brasil estão sendo afetados, obviamente em graus diferenciados.
O ponto sensível desta análise é que, segundo a TRU, o consumo das famílias representa 70,5% do PIB gaúcho e, como neste momento, mais de 90% do seu PIB está comprometido, é preciso que as demais unidades da federação atendam a demanda da população gaúcha.
No curto prazo, o padrão de consumo não será o mesmo de momentos de normalidade. A urgência de itens de primeira necessidade, como água e alimentos faz com que estes sejam os principais produtos demandados. Mas há de se considerar que muitas pessoas perderam todos os seus bens, logo a amplitude de bens que podem ser considerados essenciais, em uma situação como essa, tende a aumentar.
Urgência climática
Este breve retrato da economia gaúcha indica que o estrago econômico sentido na quarta maior economia do país vai além da economia e avança para o aspecto social. Mas qual o sentido em se falar em impacto econômico dessa tragédia quando muitas cidades gaúchas seguem debaixo de água, com pessoas desabrigadas e com mais riscos de temporais? Para mostrar que a manutenção do modelo econômico vigente, completamente inserido na utilização de combustíveis fósseis e desmatamento, tem um alto custo. Do ponto de vista social, imensurável e, mesmo do ponto de vista econômico, elevado.
O atual ritmo de aquecimento global tem alterado o clima na Terra de modo a acelerar as mudanças climáticas. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), “desde os anos 1980, cada década tem sido mais quente do que a anterior”, o que gera maior probabilidade de ocorrência de incêndios, doenças relacionadas ao calor e desertificação de áreas por impossibilidade de habitação devido as altas temperaturas. Apesar de o aumento da temperatura média do planeta ser, provavelmente, o efeito direto mais conhecido das mudanças climáticas, ele não é o único.
O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês) destaca que o principal fator que justifica o superaquecimento global é a elevação do nível de emissões de gases de efeito estufa provocado pela atividade humana. O padrão de vida da humanidade, a partir da revolução industrial, mudou o modo como os recursos naturais passaram a ser utilizados e trouxe à tona um novo desafio, que é o de lidar com as questões climáticas.
A ONU destaca que a elevação do nível do mar, devido ao aumento da taxa de aquecimento do oceano, é um dos efeitos das mudanças climáticas. Isto acelera o processo de derretimento das calotas polares, e torna vulneráveis as populações que vivem em zonas costeiras e insulares devido a elevação do nível do mar. Ainda segundo a ONU, o maior aquecimento dos oceanos também altera a frequência e a intensidade dos eventos climáticos catastróficos, como o surgimento de ciclones, furacões, tufões, tempestades e inundações. No final de abril, esta informação poderia parecer um pouco exagerada e distante da realidade brasileira, mas ela está acontecendo, neste instante, no Rio Grande do Sul.
Há ainda vários efeitos perversos destacados pela ONU, como o aumento da probabilidade de extinção de espécies da fauna e da flora e do surgimento de pragas. Há riscos de aumento da insegurança alimentar, devido ao comprometimento da produtividade da produção de alimentos. Este risco também pode parecer distante para um país que se destaca no agronegócio. No entanto, o problema dos efeitos das mudanças climáticas é que, muitas vezes, ele pode aparecer “do nada” e quem não se preparou adequadamente, pode ser surpreendido. E claro, embora a sociedade como um todo seja de alguma forma impactada, os maiores afetados são a população mais pobre. A ONU inclusive destaca que um dos efeitos indiretos das mudanças climáticas é a tendência de aumento da pobreza e da miséria.
A importância de se considerar as mudanças climáticas e seus impactos têm ganhado destaque nos últimos tempos, mas a velocidade de ações ainda não é suficiente frente aos potenciais danos que podem causar a vida das pessoas. Já existem diversas alternativas menos danosas ao meio ambiente que não rompem com o padrão de consumo atual e são mais sustentáveis, como a eletrificação de automóveis, a geração de energia eólica, a geração de energia solar, entre outras.
No entanto, há uma barreira econômica que impede que esse movimento avance mais rapidamente, que é o custo monetário. A questão é que esse é o caso clássico de externalidade positiva. Se colocar na balança, e internalizar os benefícios advindos do investimento nestas práticas mais sustentáveis, como as vidas preservadas, os custos da transição tornam-se menores. Por esta razão, é importante que sejam realizados investimentos que viabilizem e estimulem o uso de alternativas menos intensivas em carbono. Apesar de ser um processo complexo, a transição energética torna-se, cada vez mais, inevitável. Por esta razão que o papel do Estado é fundamental para garantir que os esforços convirjam para um desenvolvimento sustentável da economia em que os efeitos das mudanças climáticas sejam mitigados.
Enquanto a questão climática não for uma prioridade, infelizmente a tendência é que as fortes chuvas castiguem a população. Do ponto de vista climático a sociedade já está atrasada. Segundo o Acordo de Paris, tratado internacional firmado em 2015 na 21ª Conferência das Partes, o limite máximo de aumento da temperatura média global deverá ser de 2ºC até 2100, em comparação ao período pré-industrial. Para isto ocorrer, é necessário que se invista no presente em ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Não dá para mudarmos o que passou, mas podemos, e devemos, repensar nossa prioridade como sociedade e ter a questão climática como assunto de primeira ordem no debate do Estado.
A severidade da tragédia do Rio Grande do Sul escancarou a fragilidade das ações preventivas para lidar com as modificações do clima. É urgente que as ações governamentais direcionem a sociedade para que a iniciativa privada invista em atividades sustentáveis. Para isto as ações devem ser no sentido de incentivar estas atividades e desincentivar as mais poluidoras. Isto é fundamental para que eventos como o desse mês não se repitam em nenhum outro local. Embora o que acontece no Rio Grande do Sul deva-se a junção de diversos fatores decorrentes da geografia da região com o elevado volume de chuvas. Isso não é algo particular deste estado e variados efeitos das mudanças do clima serão cada vez mais frequentes em diversos lugares, se nada for feito para mudar a rota da economia rumo a práticas sustentáveis.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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