Visões de política monetária: Banco Central tem ano extremamente complexo pela frente

8 mar 2022

Diante de quadro econômico extremamente complexo, agravado por guerra Rússia-Ucrânia, BC tem ano difícil pela frente. Diferentes perspectivas no Ibre, de José Júlio Senna, especialista em política monetária, e do pesquisador Bráulio Borges, apontam dimensão do desafio do BC.

A condução da política monetária no Brasil é particularmente desafiadora, dado nosso passado hiperinflacionário, com indexação ainda elevada e fragilidade fiscal crônica há quase uma década. Dessa forma, é natural que haja visões muito distintas sobre a atuação do Banco Central. No próprio FGV IBRE, encontram-se interpretações bem diferentes sobre o passado recente da política monetária brasileira e como deveria ser a atuação do BC no presente e à frente.

A abordagem do economista José Júlio Senna, do Centro de Estudos Monetários (CEM) do FGV IBRE, sobre os dilemas da política monetária brasileira no atual momento parte da constatação de que o processo inflacionário hoje, no Brasil e em boa parte do mundo, não foi previsto por ninguém na intensidade e persistência com que se materializou.

Em dezembro de 2020, quando o Fed explicitou critérios para retirar a taxa básica do nível de praticamente zero, foi estipulado que uma das condições era inflação a 2% com sinais de permanecer moderadamente acima desse nível. Essa era a inflação que o mais poderoso e bem equipado BC do mundo enxergava à frente, e não a que acabou ocorrendo, da ordem de 7,5%, em doze meses.

A grande questão, para Senna, é que a parte mais relevante e difícil do atual processo inflacionário, tanto no Brasil quanto no mundo, tem a ver com particularidades trazidas pela pandemia (o que não significa, claro, ausência de contribuição da expansão fiscal e monetária recente).

Dois fenômenos em especial se destacam. O primeiro é que a pandemia atravancou o processo produtivo, com a redução forçada do trabalho pelas quarentenas causando gargalos fabris e logísticos que comprometeram o funcionamento adequado das cadeias globais.

O segundo fenômeno é o já famoso desvio do consumo das famílias, de serviços para bens. À redução no consumo dos serviços, especialmente daqueles intensivos em contato humano, somou-se o aumento do consumo de móveis, eletrodomésticos, eletrônicos, equipamentos de informática, materiais de construção etc. O impulso para isso veio dos recursos economizados pelo menor gasto com serviços, das transferências e subsídios ao crédito para as famílias pelos governos durante a pandemia, e pelos investimentos das pessoas no novo estilo de vida mais centrado no lar, inclusive em função do trabalho remoto.

Assim, em grande parte do mundo, combinaram-se restrições de oferta e explosão do consumo de bens, produzindo fortes pressões inflacionárias.

Senna aponta que uma pandemia dessa dimensão é um evento extremamente raro, com a parada generalizada da economia global tendo sido possivelmente única na história. Dessa forma, além de imprevisíveis, os componentes inflacionários ligados à pandemia não têm paralelos e, por isso mesmo, não há qualquer mapa de experiências passadas para guiar os bancos centrais.

Como recorda o chefe do CEM do FGV IBRE, houve parada súbita de parte considerável da economia global no segundo trimestre de 2020, com as famílias presas em casa, demissões e fechamento de empresas em massa. Era um choque inédito e de dimensões imprevisíveis naquele instante e a reação – deflagrada na correria e sem muito tempo de reflexão – de enorme estímulo monetário e fiscal por parte das autoridades econômicas foi adequada e responsável, considerando-se as incertezas daquele momento.

Embora entenda que ajustes concretos já deveriam ter sido iniciados, especialmente no caso do Fed, que ainda compra papéis, ou seja, expande a oferta monetária, a despeito de a inflação ter chegado a 7,5%, Senna considera compreensíveis as reações cautelosas dos BCs diante do surgimento de pressões inflacionárias. Afinal, diz ele, persiste ainda muita incerteza não apenas sobre a evolução da crise sanitária, da qual se originou grande parte das atuais pressões sobre os preços, mas também sobre a permanência ou não dos diferentes efeitos econômicos da pandemia.

Toda essa leitura da ação dos BCs nos países avançados é pertinente para abordagem de Senna da atuação recente do Banco Central do Brasil e dos desafios à frente. A surpresa inflacionária no mundo se reproduziu de forma muito semelhante na economia brasileira. Segundo levantamento do economista Lucas Farina, do FGV IBRE, a partir de julho de 2020 (inclusive), a projeção mediana do setor privado colhida pelo Boletim Focus do BC subestimou a inflação mensal – com defasagem de apenas um mês para a data de divulgação do índice – em 17 de 19 meses, com desvio médio do resultado efetivo de 0,26 ponto porcentual, o que é muito na inflação de um mês.

Senna julgou algo imprudente a redução da Selic até 2% em 2020, mas evita usar a palavra ‘erro’, exatamente pelas incertezas extremas no primeiro ano da pandemia. De qualquer forma, com o posterior ciclo acelerado de alta da taxa básica, ele pensa que aquela questão inicial perdeu relevância: “Não faria muita diferença ter iniciado a elevação em 2%, ou em 2,5% ou 3%”, ele diz.

Na sequência, entretanto, à medida que ficava claro que a inflação estava vindo com força insuspeitada, o BC reagiu de forma mais enérgica do que o mercado previa e, na opinião de Senna, a autoridade monetária fez a coisa certa. A política monetária entrou em território contracionista em agosto de 2021, quando a taxa real de juros ultrapassou o nível neutro avaliado em aproximadamente 3,5%. Hoje, o juro real – medido pela taxa prefixada de um ano deduzida da expectativa de inflação 12 meses à frente – está em 7,2%. 

Uma questão interessante, para Senna, é por que o Fed, nos Estados Unidos, onde a recuperação avançou bem mais do que no Brasil, tem agido com tanta cautela e até relutância, enquanto o BC brasileiro, num país de renda média menor e muito mais desigual, apertou de forma tão firme o freio dos juros? Seria um exagero?

A resposta é ‘não’ para o pesquisador, e a explicação se encontra nas essenciais expectativas, muito bem ancoradas em torno da meta nos anos à frente nos Estados Unidos, o que não ocorre no Brasil. A expectativa de inflação implícita no mercado financeiro (apurada na comparação entre títulos pós e prefixados) para 2023 no Brasil tem oscilado em torno de 5,6%, enquanto a projeção mediana do Focus é de 3,5%, para uma meta de 3,25%. Chama particularmente a atenção do economista o fato de que, na sondagem de confiança do consumidor do FGV IBRE, os respondentes estimem uma inflação 12 meses à frente (não se especifica um índice) de 10%. Todas essas informações foram de quando esta Carta foi redigida.

Segundo Senna, esse contraste entre os Estados Unidos e o Brasil tem a ver com o histórico muito ruim da inflação brasileira, que leva os agentes econômicos a olhar para trás na hora de estimar e definir preços. Com isso, a inércia é maior e se torna bem mais difícil fazer a inflação descer de um patamar alto como o atual. Para ele, se o BC não agir com muita firmeza, as expectativas de inflação mais alta logo adquirem raízes profundas, cuja remoção é muito complicada.

“Infelizmente, nossa história nos condena e penso que o BC está seguindo rigorosamente os preceitos do regime de metas de inflação, já que o custo para a sociedade de se postergar a adoção de uma política monetária mais firme agora será bem maior do que o contrário”, avalia o economista.

Por outro lado, ele acrescenta que o funcionamento do sistema de meta preconiza que o BC postergue o seu cumprimento quando percebe que o custo em termos de atividade e emprego será alto demais, como ocorre no momento em relação a 2022.

Segundo Senna, o Banco Central fez muito bem em só sinalizar recentemente essa extensão formal do horizonte da política monetária para além de 2022. “A última coisa que a autoridade monetária pode fazer é sinalizar que está afrouxando e jogando a toalha antes da hora”. De acordo com o especialista, se houvesse uma ‘desistência’ prematura da meta de 2022, o público iria reagir pessimamente, agravando o problema das expectativas elevadas. Ao mesmo tempo, já se podia perceber no final de 2021 que o horizonte se voltava para 2023, mas o timing de explicitar esse fato, para o analista, foi bem administrado pelo BC, tendo em vista o efeito nas expectativas.

Senna acrescenta que diversos sinais inflacionários permanecem muito preocupantes, validando a postura mais dura do Banco Central, e a expectativa de conviver por um tempo considerável com juros elevados.

Outra abordagem - Bráulio Borges, pesquisador do FGV IBRE, dá partida à sua análise focando ainda em 2020, quando o BC levou a Selic a inéditos 2%. Ele nota que uma visão bastante comum hoje é a de que o BC teria ido longe demais na redução da taxa básica de juros, razão pela qual o ciclo de alta que se seguiu teria sido tão drástico e intenso (de março de 2021 até hoje, a Selic já passou de 2% para 10,75% e a expectativa é de que continue subindo).

Borges discorda dessa crítica, já que, em 2020, primeiro ano da pandemia, quando a meta de inflação era de 3,75%, a projeção mediana de mercado do IPCA daquele ano caiu abaixo de 2% entre abril e setembro. A projeção do IPCA de 2021 ficou abaixo da meta de 3,5% durante todo o ano de 2020.

O economista lembra ainda que a chegada da Covid-19 criou uma incerteza econômica fortíssima, e que a expectativa inicial era de queda do PIB muito maior do que a efetivamente ocorrida. Diante desse cenário, a redução da Selic até 2% foi justificável, restando debater se talvez o BC devesse ter iniciado o ciclo de normalização antes de março de 2021.

Mas o que interessa mesmo a Borges é discutir a política monetária a partir de fevereiro de 2021, quando foi sancionada a Lei Complementar 179. A lei conferiu autonomia operacional formal ao Banco Central, criando mandatos intercalados para a diretoria e a presidência, que adentram um novo governo federal. As nomeações são do presidente (com confirmação pelo Senado), mas a demissão só é possível em caso de condenações judiciais e “quando [diretores e/ou presidente] apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do Banco Central do Brasil”.

A LC 179/2021 estabelece que o objetivo fundamental do BC é assegurar a estabilidade de preços, mas acrescenta que, “sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”.         

Borges se diz favorável à mudança, que conferiu maior autonomia e incluiu os objetivos subordinados relativos à atividade econômica e ao pleno emprego, já que, “com mais liberdade [referência à autonomia formal] deve vir mais responsabilidade”. O economista acrescenta que a teoria econômica mais atualizada recomenda que os bancos centrais devam ter mandatos duais (inflação e atividade/emprego), com especial atenção à ociosidade da economia.

Dessa forma, Borges esperava que, a partir de fevereiro do ano passado, o Banco Central traçasse uma estratégia que balanceasse o objetivo principal do controle da inflação com os objetivos secundários relativos à atividade econômica e ao pleno emprego. O economista ressalva que não ignora a dificuldade de conciliar a consecução da meta de inflação com as diretrizes sobre emprego e atividade, ainda mais num contexto como o atual, de expressivos choques desfavoráveis de oferta, globais e locais (incluindo, no caso brasileiro, aquele relativo à energia elétrica).

Mas ele acrescenta que “tem que haver uma estratégia delineada para tentar minimizar a perda de bem-estar da sociedade, que ocorre tanto com uma inflação acima da meta como com uma economia aquém do pleno emprego”. Na verdade, na sua visão, há um leque de estratégias possíveis, sobre as quais o BC deveria se debruçar.

No entanto, no entender de Borges, os objetivos secundários aparentemente têm sido ignorados pelo Banco Central. Ele menciona que, nas atas do Copom, no parágrafo em que se explicita a decisão específica da reunião, passou a constar há algum tempo a frase “sem prejuízo de seu objetivo fundamental de assegurar a estabilidade de preços, essa decisão também implica suavização das flutuações do nível de atividade econômica e fomento do pleno emprego”. Porém, para o economista, é uma menção mecânica, um “Control C - Control V”, na medida em que o BCB não apresenta, por exemplo, projeções para a taxa de desemprego efetiva e natural para todo o horizonte relevante

O economista observa que as projeções medianas de mercado apontam que a inflação deverá voltar para bem próximo da meta em 2023 e para a meta em 2024, enquanto boa parte dos analistas indica que a economia deverá retornar para as cercanias do pleno emprego somente em 2025 e 2026. Borges vê um claro desbalanceamento entre os dois objetivos, sem que o BC aponte o que está fazendo para reequilibrá-los.

Na visão do analista, desde pelo menos setembro do ano passado estava evidente que o cumprimento da meta de inflação de 3,25% de 2022 era impossível a não ser que a política monetária provocasse uma recessão arrasadora – o que evidentemente, para ele, vai contra o mandato dual. Naquele momento, a inflação de 2021 já dava sinais de fechamento no ano perto dos dois dígitos. Numa economia como a brasileira, com seus problemas de inércia e indexação atrelando a inflação futura à passada, bem como negociações salariais e contratos, e com muitos choques desfavoráveis em processo de descompressão lenta e irregular, já era óbvio que a chamada “taxa de sacrifício” necessária para levar a inflação à meta ainda em 2022 era demasiadamente alta.

Para Borges, portanto, já em setembro de 2021 o BC poderia ter levado em consideração o seu mandato dual “light” (isto é, com atividade e emprego como objetivos secundários) para alongar o horizonte de convergência para além do final de 2022. Ele inclusive escreveu à época um artigo no Blog do Ibre defendendo essa posição. Como acrescenta o economista, o Copom oficializou isso apenas na comunicação após a última reunião, de 1 e 2 de fevereiro deste ano, apontando na ata que o horizonte relevante da política monetária inclui “os anos-calendário de 2022 e, em grau maior, de 2023”.

Na interpretação do economista, essa demora em admitir que a política monetária não estava mais mirando a condução da inflação para a meta já em 2022 pode ter ajudado a criar um “overkill” de taxa de juros.

Diferentemente dos Estados Unidos, onde a política monetária para controlar a inflação pós pandemia tem sido bem mais cautelosa e o PIB já está bem próximo do pleno emprego, o Brasil foi atingido pela Covid-19 quando ainda contava com grande ociosidade de fatores, que já vinha desde 2015/16. Assim, diz Borges, “nós não estamos convergindo para o pleno emprego, estamos divergindo neste ano de 2022, para então voltarmos a convergir, lentamente, de 2023 em diante”, o que, na sua visão, demonstra o desbalanceamento entre os objetivos do Banco Central.

“Não vejo estratégia do BC olhando para os dois objetivos, mas apenas de buscar a meta de inflação, dando muito peso ao horizonte mais curto, de 12 a 15 meses à frente, enquanto em todo o mundo a tendência é olhar mais para 18 a 24 meses, dadas as defasagens da política monetária”, adiciona o pesquisador, para quem esse comportamento da autoridade monetária brasileira “tem um custo econômico não desprezível”.

Uma das principais facetas desse custo, segundo Borges, é a histerese econômica negativa (“scarring”), um tema ao qual vem dedicando a sua atenção mesmo antes da pandemia. A histerese ocorre quando as perdas cíclicas se tornam tão prolongadas que acabam assumindo um caráter permanente ou muito duradouro. O exemplo mais emblemático é o desemprego de longa duração, que acaba prejudicando ou mesmo inutilizando parte do capital humano, isto é, a capacitação das pessoas para trabalhar.

A pressão sobre o BACEN – Para complicar e tornar ainda mais nebulosa e incerta as diretrizes a serem dadas à política monetária, o mundo encara uma guerra: a invasão da Ucrânia por tropas russas. As repercussões sobre a economia brasileira serão, indubitavelmente, sentidas. Não há como negar, diante de visões bem fundamentadas e distintas como as descritas por Senna e Borges, que o BC terá um ano de 2022 bastante difícil no cumprimento de seu mandato.

Em um processo eleitoral que promete ser marcado por posições fortes de lado a lado, a ação do Banco Central será acompanhada com extrema atenção. Por isso, com tantas dúvidas pairando no ar quanto à condução “técnica” mais apropriada, o Chefe do Poder Executivo e os gestores do BC devem dar sinais claros e inequívocos de que a política monetária será comandada pelo Banco Central, como reza a legislação. Interferências políticas “indevidas” podem macular severamente o processo de amadurecimento econômico-institucional brasileiro.


Esta é a Carta do Ibre de março/2022, publicada pela Conjuntura Econômica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

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