Bolsonarismo e petismo: quatro combinações hipotéticas para o próximo biênio
O bolsonarismo e o petismo são as duas grandes forças a moldar a política brasileira na atualidade, como bem salientou Carlos Melo em artigo no Estadão[1]. O primeiro por vencer as eleições presidenciais de 2018 sem laços com qualquer agremiação política sólida, desalojando do poder os grandes partidos que haviam governado o Brasil quase que ininterruptamente desde 1985. Hoje em dia, o bolsonarismo – lastreado nos instrumentos do Poder Executivo, no apoio parlamentar do Centrão e na popularidade ascendente do seu líder – detém a posição de nau capitânia do campo da direita. Já o petismo, apesar do fracasso do governo de Dilma Rousseff, da destituição legal da então presidente em 2016 e da grande derrota eleitoral impingida ao Partido dos Trabalhados nas eleições municipais daquele ano, conseguiu levar seu candidato presidencial, Fernando Haddad, ao segundo turno da disputa pelo Palácio Planalto dois anos depois. Lula e o PT ainda possuem a principal organização partidária do país, o que, não à toa, lhes permite manter a primazia no campo da esquerda.
O que os anos de 2021-2022 nos reservam dependerá, em boa medida, da combinação entre a situação do bolsonarismo e do petismo. Nos próximos seis meses, haverá uma sucessão de eventos, mais ou menos interligados, que afetará o estado das duas forças: a eleição presidencial nos EUA em novembro, as eleições municipais no Brasil no mesmo mês, a evolução da pandemia aqui e alhures, a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal no começo de fevereiro de 2021, e as expectativas relativas à saúde fiscal do país, intimamente associadas às decisões a respeito de como financiar o substituto do auxílio emergencial (o programa Renda Cidadã ou qualquer outro nome que venha a ter o pacote de gasto social que o governo e o Congresso estão tentando montar).
Um exercício útil consiste em estabelecer valores binários para o estado de bolsonarismo e petismo (fortalecido x enfraquecido) e deduzir os principais elementos de quatro cenários hipotéticos: (1) bolsonarismo fortalecido vs petismo fortalecido; (2) bolsonarismo fortalecido vs petismo enfraquecido; (3) bolsonarismo enfraquecido vs petismo fortalecido; e (4) bolsonarismo enfraquecido vs petismo enfraquecido. A seguir, elaboram-se os cenários.
Cenário 1: A reprise de 2018 – bolsonarismo fortalecido vs petismo fortalecido. Esse cenário supõe o aprofundamento da “normalização” política do governo, iniciada em junho deste ano, a partir da prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República. A prisão de Queiroz foi apenas a gota d’água que fez transbordar as tentativas de ruptura institucional protagonizadas pelo chefe de Estado ao longo do primeiro semestre de 2020. As enérgicas ações do ministro Alexandre de Moraes na condução dos processos que investigam tanto atos antidemocráticos patrocinados por seguidores de Bolsonaro quanto ataques ao Supremo Tribunal Federal nas redes sociais foram decisivas para forçar o ex-capitão do Exército a mudar sua postura política. O fato de as Forças Armadas não terem apoiado as referidas tentativas também contribuiu para o fracasso destas.
A mudança levou Bolsonaro a procurar ativamente o respaldo legislativo do Centrão, o qual tem dado ao Executivo uma base de sustentação parlamentar de aproximadamente 40% da Câmara dos Deputados e 30% do Senado Federal[2], distante ainda de uma maioria, mas suficiente para evitar a destituição do chefe do Executivo. A normalização resultará em fortalecimento do bolsonarismo se, em fevereiro de 2021, o novo presidente da Câmara dos Deputados for um parlamentar alinhado com o Palácio do Planalto, o que facilitará não apenas a aprovação dos projetos do Executivo, mas também dificultará sobremaneira a abertura de um processo de suspensão do mandato presidencial.
A reeleição de Donald Trump nos EUA será outro fator relevante para o fortalecimento do bolsonarismo, uma vez que o inquilino da Casa Branca é fonte de inspiração e o grande aliado diplomático de Bolsonaro. No tocante às eleições no Brasil, dificilmente o presidente terá um grande desempenho, uma vez que não dispõe de partido. Todavia, para que os pleitos municipais signifiquem o fortalecimento do bolsonarismo, é preciso que este colha um bom resultado na cidade do Rio de Janeiro, berço político de Bolsonaro, como destacou Jairo Nicolau em recente entrevista.[3]
Por sua vez, o provável esmaecimento da pandemia poderá levar água ao moinho do bolsonarismo pela simples sensação de alívio coletivo. Porém, para que o bolsonarismo se fortaleça, o presidente deverá ter êxito em sua manobra de transferir os custos econômicos da Covid-19 para os governadores e lograr a aprovação de um substituto do auxílio emergencial que sinalize ao mercado – de maneira digna de crédito – que a dívida pública e os gastos públicos não seguirão uma trajetória explosiva.
Para que o petismo saia fortalecido nos próximos meses, o sarrafo não é muito alto. Bastará que o PT tenha um desempenho superior ao que teve nas eleições municipais de 2016 – o que é provável, como afirmou Jairo Nicolau na entrevista acima citada –, que Lula continue aparecendo como um nome competitivo nas pesquisas de opinião relativas à disputa presidencial de 2022, e que não surja nenhuma nova de liderança de esquerda que efetivamente desafie a hegemonia petista nesse campo.
Em suma, esse cenário aponta para uma reprise da disputa travada no segundo turno das eleições presidenciais de 2018.
Cenário 2: O nascimento da frente democrática – bolsonarismo fortalecido vs petismo enfraquecido. Se o bolsonarismo se fortalecer e o petismo não lograr cumprir uma das três condições acima descritas, se descortinará uma real oportunidade para a formação de uma frente democrática de oposição ao governo, alternativa que tem sido rechaçada por Lula. Caso o PT perceba que corre sérios riscos de não ir para o segundo turno em 2022 – como sempre acontece desde 1989 – e que Bolsonaro tem grandes chances de ser reeleito, Lula e seu partido poderão vir a apoiar um candidato de outra sigla, formando assim uma ampla coligação eleitoral que vá do centro à esquerda. Ou seja, uma frente democrática em 2022 depende da percepção de força de Bolsonaro e de fraqueza do PT.
Cenário 3 – Collor 2.0 – bolsonarismo enfraquecido vs petismo fortalecido. Mais do que a derrota de Trump ou de um desempenho decepcionante dos candidatos vinculados ao presidente brasileiro nas eleições municipais ou da eleição de um novo presidente da Câmara não alinhado ao Palácio do Planalto, o fator-chave para o enfraquecimento do bolsonarismo será o mau encaminhamento da questão fiscal subjacente ao substituto do auxílio emergencial. Como afirmado por esta coluna há dois meses, o auxílio “[...] tem gerado um choque positivo de bem-estar econômico para a população de baixa renda, tal qual o Plano Cruzado I em 1986 e o Plano Real em 1994. A questão é saber se esse choque terá um caráter artificial e passageiro como o Cruzado ou estrutural e duradouro como o Real”.[4] Tudo vai depender de como se resolverá a equação fiscal. Se o mercado consolidar a expectativa segundo a qual a economia está em um “rumo insustentável”, para usar a expressão do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan[5], 2021 poderá testemunhar um ciclo vicioso sob o qual mau desempenho econômico e debilitamento político do governo se retroalimentam aceleradamente, como se deu com Fernando Collor – tal qual Bolsonaro, um populista de direita sem maioria parlamentar – a partir de 1991.
Com o petismo fortalecido e o fim da pandemia, protestos de rua contra o Executivo Federal poderão ocorrer com frequência, o que, por sua vez, poderá reativar o radicalismo que caracterizou o atual governo entre janeiro de 2019 e junho de 2020.
Esse cenário ressuscitará a ideia de destituição de Bolsonaro.
Cenário 4: O renascimento do centro – bolsonarismo enfraquecido vs petismo enfraquecido: O enfraquecimento das duas forças oferecerá uma grande oportunidade para o renascimento do centro político, duramente avariado desde o vendável eleitoral que abalou o sistema partidário em 2018. Todavia, aproveitá-la dependerá de fatores relativamente aleatórios, tais como a habilidade de lideranças individuais e o abandono de ambições exageradas por parte de atores políticos secundários. É obra digna de Tancredo Neves e Ulysses Guimarães.
Eventuais vitórias de Bruno Covas (PSDB), Eduardo Paes (DEM) e Bruno Reis (DEM) nas disputas para as prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, respectivamente, favorecerão o renascimento do centro.
Esse cenário facilitará consideravelmente a formação de um novo partido centrista que junte nacos do MDB, PSDB e DEM, processo também estimulado pelo fim das coligações nas eleições proporcionais a partir das eleições do ano corrente. A criação desse novo partido sinalizará também que o Brasil, finalmente, começa a se reorganizar para deixar de ter um sistema partidário pulverizado, o qual, junto com a polarização ideológica, tanto tem contribuído para a crise política sem fim da qual o país vem sofrendo desde 2013.
Dada a incerteza que caracteriza o Brasil e o mundo hoje em dia, não faz sentido consignar probabilidades aos quatro cenários. O fundamental é ter parâmetros relativamente claros e coerentes para mapear o processo político caótico a que estamos submetidos. Esse é o papel do exercício especulativo acima esboçado. Por último, cabe ressaltar que, em tempos assim, erros táticos cometidos pelos principais atores podem ter consequências extremamente negativas e duradoras.
Este artigo faz parte do Boletim Macro Ibre de outubro de 2020. Para ler o boletim inteiro, clique aqui.
Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Ver Carlos Melo, “Antipolarização e novo centro para a disputa”, O Estado de São Paulo, 26/09/2020, disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo/antipolarizacao-e-novo-centro-para-a-disputa/.
[2] Ver Marcos Mortati, “Governo amplia apoio no Congresso, mas ambiente para reformas segue turvo”, InfoMoney, 02/10/2020, disponível em https://www.infomoney.com.br/politica/governo-amplia-base-no-congresso-mas-ambiente-para-reformas-segue-turvo/.
[3] Ver Cristian Klein, “Resultado no Rio é o que importa na eleição municipal, diz Nicolau”, Valor Econômico, 02/10/2020, disponível em https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/10/02/resultado-no-rio-e-o-que-importa-na-eleicao-municipal-diz-nicolau.ghtml.
[4] Ver Octavio Amorim Neto, “Precedentes históricos da mutação de Bolsonaro”, Blog do IBRE, 26/08/2020, disponível em https://blogdoibre.fgv.br/posts/precedentes-historicos-da-mutacao-de-bolsonaro.
[5] Ver Renata Agostini, “‘Estamos num curso insustentável’, afirma Pedro Malan”, O Estado de São Paulo, 25/08/2018, disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,estamos-num-curso-insustentavel-afirma-pedro-malan,70002472401.
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