Macroeconomia

PEC da Transição: A conta está posta, e agora?

28 nov 2022

A PEC da Transição tem o mérito de explicitar claramente desejo de aumento de gastos no próximo governo, balizando o debate. Mas há detalhes preocupantes e total omissão sobre a construção de um novo arcabouço fiscal, crível. 

PEC da Transição. Foi bem preciso quem nomeou a proposta em discussão para viabilizar mais investimento público e gastos com o Bolsa Família a partir de 2023. Marca o primeiro passo de uma transição política e institucional, com revisão das prioridades alocativas do setor público e uma mudança no arcabouço fiscal de médio prazo.

A minuta inicial da PEC, apresentada em meados de novembro, teve como único ponto positivo deixar transparentes as mudanças orçamentárias que se deseja realizar, sem subterfúgios e sem fingir que a âncora fiscal anterior permaneceria (e, com tantas mudanças e exceções feitas nos últimos anos, de fato é contestável se a âncora, de facto, ainda existe). Não há, no entanto, olhos para o futuro: a ausência de debate sobre um novo arcabouço causa enorme incômodo. E, além disso, há detalhes no texto apresentado que inspiram preocupações.

Em descrição célere, a minuta apresentada, sujeita a (quase certas) alterações no trâmite legislativo, reforça as dotações orçamentárias voltadas aos investimentos e aos gastos sociais. Abre, também, espaço para aumento de despesas de custeio e até de obrigatórias, ao propor a retirada completa, e permanente, das despesas com o Bolsa Família do Teto de Gastos.

Do lado dos investimentos, receitas que superem o previsto na lei orçamentária podem ser alocadas a novos investimentos, não sujeitos ao Teto dos Gastos ou à meta de primário. O valor máximo a ser utilizado seria de R$ 23bi/ano.

Do lado social, seria viabilizada a manutenção do Bolsa Família em R$ 600,00/mês, além da concessão de benefício extra de R$ 150,00/mês às famílias com crianças menores de 6 anos. Honrar-se-ia, assim, as promessas de campanha (por sinal, de ambos os candidatos), mesmo sem previsão dessas despesas no projeto de lei orçamentária (PLOA) já aprovado para 2023, a um custo estimado de R$ 70bi no ano que vem.

Mais importante, a minuta da PEC propõe a retirada deste gasto dos limites impostos pela EC 95, abrindo, assim, espaço para execução adicional de despesas dentro do teto previsto para o orçamento de 2023[1]. Excluindo-se os gastos com Bolsa Família das regras fiscais, seria possível ampliar as despesas em R$ 105bi, com alocação a ser definida no orçamento anual – seria possível, em princípio, ampliar despesas discricionárias (especialmente investimentos), alocar mais recursos para projetos específicos ou conceder reajustes aos servidores, honrando, assim, outras promessas de campanha.

Note-se que, ao contrário do que sugere a discussão original, com amplo uso da palavra waiver, a PEC não trata propriamente de uma licença temporária para gastos, mas sim de um aumento permanente nas despesas. Somente para 2023, a adição das propostas acima elencada teria um impacto de aproximadamente R$ 200bi nas despesas primárias (algo como 2,1% do PIB, ou, em outra métrica ainda mais interessante, 60% do gasto com pessoal do Governo Federal durante os últimos 12 meses).

Ao menos, a PEC explicita o desejo por aumento dos gastos – do governo e, em alguma medida, da própria sociedade. As dificuldades de cumprir o Teto dos Gastos nos últimos anos já sugeriam isso, mesmo sob orçamento discricionário cada vez mais enxuto[2]. Desde 2019, o governo tem utilizado subterfúgios – alguns justificáveis, outros nem tanto - para “cumprir” o Teto de Gastos.

Sem ser exaustivo, e olhando somente para 2022, limitou-se o pagamento de precatórios, modificou-se a correção do teto para o IPCA acumulado em 12 meses de dezembro (e não em mais em junho) e se possibilitou um aumento de transferências de renda em período eleitoral, no contexto da “PEC das Bondades”. Somente este grupo de “desvios” contornou o Teto para viabilizar aumento de gastos de R$ 154bi em 2022. O esgotamento da âncora fiscal, como concebido na administração Temer, já era claro.

Não importava quem fosse eleito, onerosas promessas de campanha haviam sido feitas – e o debate passaria a ser, depois das eleições, de como (ou se) cumpri-las. Nesse contexto, é importante, do ponto de vista de transparência e previsibilidade, ter clareza do quanto se pretende elevar as despesas. A proposta do governo tem esse mérito, ao estabelecer um tamanho para a conta, ainda que este pareça, hoje, um limite superior, tendo em vista a dificuldade de obtenção de consenso para tramitação e as outras propostas para elevação dos gastos que foram apresentadas no Congresso.[3] .

Há, porém, questões na formulação atual do texto que podem ir na contramão da transparência e previsibilidade ressaltadas acima. Por exemplo, o texto prevê que, cumprindo-se ou não a meta de primário, as receitas "extraordinárias" (acima do previsto) podem ser revertidas para aumento de investimento. Qual o incentivo que isso traz para a condução do orçamento público? Faz sentido que um surpresa positiva seja imediatamente consumida (ao menos, em parte), sem consideração sobre a conveniência de aumento do superávit primário, e, assim, melhora da dinâmica da dívida pública?

A preocupação maior, contudo, é com o que a minuta não sinaliza: é necessário estabelecer uma nova âncora fiscal, crível, e o texto apresentado é totalmente omisso nesse ponto. Além disso, o aumento permanente previsto para as despesas não traz, de antemão, qualquer estratégia de compensação, do lado das receitas, para garantir a volta a uma trajetória de resultados primários que seja consistente com a sustentabilidade da dívida pública.

Simulações feitas pela IFI sugerem que os efeitos da proposta sobre a dinâmica fiscal podem ser relevantes, com o prolongamento do déficit primário até o fim da década[4]. Não é necessário dizer que, em cenário como esse, as simulações mostrarão uma dívida divergente. Das duas uma: ou teremos aumento de carga, ou outros fatores, ligados à aceleração do PIB nominal, serão capazes de promover convergência – neste caso, provavelmente muito mais via inflação (deflator do PIB) do que via forte expansão do crescimento na economia.

Até a eleição, o compasso de espera era total. As indefinições, muitas. No pós-eleição, o tamanho da conta foi posto na mesa: R$ 200 bi em despesas permanentes, ainda que este pareça ser um limite superior. A conta pode até ser menor, mas é alta.

As perguntas, agora, continuam muitas, ainda que mais específicas: A conta se manterá neste patamar após tramitação legislativa? Será paga “à vista”, com aumento de carga tributária ou compensação em outras despesas, ou será “paga a prazo”, com aumento plurianual do déficit primário e do endividamento? Tal cenário não afeta negativamente a possibilidade de flexibilização monetária pela Banco Central? E isso, por si, não afeta a dinâmica da dívida, além de nossa capacidade de registrar crescimento robusto e sustentado?

Em resumo, falta à transição demonstrar como harmonizar o aumento permanente dos gastos com a responsabilidade fiscal. E, acima de tudo, acabar com as visões, a nosso ver totalmente equivocadas, de que existe uma contraposição ente o combate à desigualdade social e a gestão responsável do erário.


[1] Apenas a partir de 2024 aumentos dos gastos com o Auxílio Brasil estariam sujeitos a limitações, impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que exige compensação em caso de aumento de despesas. Mais informações disponíveis em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/analise/novos-aumentos-do-bolsa-familia-em-2024-terao-que-ter-compensacao-da-lrf-18112022

[2] Despesas discricionárias são as que não são obrigatórias. Como o nome diz, há discricionariedade para destinação desses gastos, e sob essa linha de despesa estão gastos com custeio e investimento. A execução discricionária veio se reduzindo nos últimos anos, com valores reais saindo de R$202bi em 2019 a R$152bi previstos para 2022.

[3] Como exemplos mais notáveis, estão (i) a proposta do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que aumentaria o espaço sob o teto, de forma permanente, em R$ 80 bi, direcionando despesas para transferências de renda, saúde, educação, ciência e cultura, além de manter o Teto dos Gastos como âncora fiscal de médio prazo; e (ii) a proposta do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), que autoriza R$ 70bi de despesas adicionais, fora da regras fiscais (Teto, meta primária e regra de ouro), em 2023, com a necessidade de se estabelecer uma nova regra fiscal, por lei complementar e em substituição ao Teto dos Gastos, até julho de 2023.

[4] Em simulação dos efeitos da PEC da Transição no RAF de novembro, a IFI aponta em seu cenário base que a proposta causaria déficit primário ao longo de todo horizonte de projeção (2023-2031).

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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