“Pingos nos i’s”: Mudanças e preocupações no debate fiscal brasileiro
Mudar metas de primário adia ajuste para próximo governo sem acionar gatilhos de contenção. Ainda não se sabe se o novo IVA terá arrecadação equivalente à tributação do consumo atual, podendo acentuar a insuficiência fiscal.
Este texto foi originalmente escrito em 13 de abril[1]. Fatos relevantes para a política fiscal ocorreram desde então, mas sem alterar o cerne da nossa análise. Comentários adicionais, levando em consideração essas novidades, foram feitos no final deste artigo.
No limiar da divulgação do projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025 e ainda digerindo os sinais enviados na 1ª Reavaliação de Receitas e Despesas do Orçamento de 2024, as preocupações quanto à trajetória fiscal prospectiva voltaram à ordem do dia – mesmo com desafios já conhecidos há algum tempo.
O arcabouço fiscal, como desenhado pelo governo, só tem chance de permanecer como uma âncora crível se houver ganhos (relevantes, recorrentes, crescentes e plurianuais) na arrecadação governamental. Mesmo que diversas medidas arrecadatórias tenham sido implementadas, seu resultado efetivo é bastante incerto. Somando-se a isso uma pressão (consistente e crescente) por mais despesas, inclusive fora das regras do arcabouço, temos um cenário onde a estabilização da relação dívida/PIB está longe de ser o resultado mais provável.
Tendo em vista as recentes sinalizações do governo, consolidaram-se três preocupações mais específicas. A primeira envolve a dinâmica do resultado primário até o fim do atual governo. Fala-se abertamente de modificações nas metas de resultado primário definidas no arcabouço fiscal, especialmente para 2025 (meta de superávit primário de 0,5% do PIB) e para 2026 (meta de superávit primário de 1,0% do PIB), tendo em vista as enormes incertezas quanto à arrecadação futura e a insuficiência de iniciativas que viabilizem o cumprimento dos objetivos fiscais.
É importante ter em mente que a imensa maioria dos analistas considera que as metas primárias do triênio 2024-2026 não são exequíveis, havendo enorme diferença entre as suas projeções e os valores defendidos pelo governo (gráfico 1). Em princípio, portanto, uma modificação das metas, se bem comunicada e fundamentada, poderia promover a credibilidade da política fiscal, colocando maiores doses de realismo no debate.
Gráfico 1: Projeções de mercado para o resultado primário (2024-2027, % PIB)
Fonte: Prisma Fiscal, STN (mar/24)
Para além da óbvia delicadeza de se mudar metas recentemente definidas, emergem rumores de que a modificação seria acompanhada de outras medidas, tal como a flexibilização dos gatilhos de contenção do crescimento das despesas previstos, originalmente, no arcabouço fiscal. Caso isso ocorra, a própria existência do arcabouço fiscal como princípio de gestão fica inviabilizada – mudar-se-iam metas, instrumentos e, em última instância, objetivos da política fiscal brasileira – e estaria aberto um cenário para déficits primários até o fim da atual administração.
Em termos objetivos, uma das possibilidades hoje cogitadas para o PLDO 2025 é de que ocorra uma redução de 0,5 p.p. do PIB no objetivo fiscal, tanto em 2025 como, provavelmente, em 2026. Considerando a banda de tolerância para a meta, o novo objetivo de 2025 seria atingido com déficit de 0,25% do PIB, e o objetivo de 2026 com um superávit de igual magnitude. Se lembrarmos, no entanto, que a despesa atípica com precatórios não estará sujeita a meta no biênio, e que ela gira em torno de 0,25p.p. do PIB, teremos, sob este hipotético cenário de uma nova meta, uma chance real de déficit primário até 2027, sem o acionamento de qualquer gatilho para contenção de despesas. É desnecessário dizer que, neste cenário, a dívida/PIB não terá qualquer possibilidade de convergir.
Em direta ligação com esse debate, a segunda preocupação que emerge está associada à previsibilidade da variação da despesa pública. O arcabouço, como originalmente desenhado, estabelece um valor máximo de crescimento anual para as despesas submetidas à regra fiscal, com mecanismos de contenção e exceções à regra fiscal relativamente bem definidos[2]. Aparentemente, a discussão envolve não somente alterar as regras de contenção das despesas como, no limite, ampliar o rol de despesas a serem executadas fora dos limites impostos pela regra fiscal[3].
Voltaríamos, assim, a um problema que existiu sob o regime do teto dos gastos: uma vez atingido o limite, o Estado brasileiro usaria toda a sua criatividade para burlá-lo. A imprevisibilidade fiscal segue relevante, nas trajetórias de gastos, primário e endividamento público, e isso tem efeitos nocivos sobre o ambiente econômico que, nem sempre, ganham o devido destaque.
Por fim, a terceira preocupação está na relação entre a efetiva execução fiscal e aquela que é indicada no Orçamento Geral da União. Para o Orçamento de 2024, há divergências relevantes entre o governo e os analistas, tanto em rubricas da receita como em rubricas da despesa. Um caso emblemático é a dissonância existente nas despesas previdenciárias, com a Consultoria da Câmara (CONOF) e a Instituição Fiscal Independente (IFI), ambas bastante ligadas ao governo, apontando excessivo otimismo nas projeções oficiais. Mesmo após aumento da projeção de gastos na 1ª Reavaliação de Despesas e Receitas, ainda se aponta uma subestimação de quase R$ 20bi. O governo defende que um pente-fino nos gastos gerará menos despesas adiante, mas, hoje, tal premissa soa mais como um ato de fé.
Declarações recentes do Ministro da Fazenda reconhecem a divergência existente entre a trajetória de resultado primário e as metas que constam nas atuais legislações orçamentária e fiscal. Do lado da arrecadação, muitas medidas de majoração foram implementadas, com resultados positivos, mas o seu impacto deverá ser bastante inferior ao necessário para promover a consolidação fiscal[4]. E, pior, o ímpeto político para avançar nesta agenda parece estar se exaurindo. Um bom exemplo é a condução do debate sobre os temas que constavam na MP 1202/2024, no qual o Congresso, em oposição com o Executivo, tem tentado frear o ímpeto da reoneração da folha e de outras medidas de aumento de receita[5].
Some-se a isso uma notória dificuldade para cortar gastos, simbolizada, por exemplo, pela tentativa de limitar o contingenciamento de 2024 em até R$ 25,9bi, tese ainda em análise pelo TCU, e por “compromisso” de reajuste dos salários dos servidores em 19% até o fim do governo[6], sem que esteja claro haver espaço fiscal, dentro das regras do arcabouço, para isso. Há mérito em reconhecer o descasamento entre a realidade e as metas estabelecidas, mas isso não resolve o problema fundamental: o Estado brasileiro continua padecendo de uma insuficiência fiscal duradoura.
Em conclusão, é necessário colocar os “pingos nos i’s” do debate fiscal. A aderência às metas estabelecidas no arcabouço parece pouco provável com o atual kit de iniciativas fiscais, tanto do lado das receitas como do lado das despesas. Sob esta ótica, há algum mérito na rediscussão das metas, o que poderia, se bem-feito, reconciliar as narrativas à realidade. No entanto, são relevantes os riscos desse processo ser conduzido de forma inadequada, representando um mero abandono de objetivos vistos como excessivamente restritivos pela atual administração – coisa, por sinal, que foi observada repetidas vezes sob o regime fiscal do teto dos gastos.
De uma forma ou de outra, resulta claro que avançamos para um cenário onde a geração consistente de resultados primários que estabilizem a dívida/PIB não seja possível. Se o PLDO 2025 confirmar as mudanças nas metas e nos gatilhos de crescimento da despesa, há chance real de que acabe qualquer percepção de compromisso com a viabilidade intertemporal da política fiscal brasileira. Se isso ocorrer, os efeitos sobre as expectativas serão negativos, com reverberações sobre todo o equilíbrio macroeconômico e institucional do país.
COMENTÁRIOA ADICIONAIS (1)
No dia 15 de abril de 2024, foi divulgado o PLDO 2025. O projeto de lei apresentou mudanças nas metas fiscais, confirmando uma postura mais defensiva do governo na interpretação do cenário fiscal, reduzindo o otimismo com as medidas de aumento de receitas e de redução de despesas anteriormente considerado. A meta de superávit primário para 2025, que era de +0,5% do PIB, foi alterada para 0,0%. Já a meta para 2026, que inicialmente era de +1,0%, foi reduzida para +0,25% do PIB, um ajuste maior do que o inicialmente aventado. A divulgação endossou e acentuou as preocupações que tínhamos quanto à insuficiência fiscal estrutural do Estado brasileiro, bem como quanto à previsibilidade dos gastos públicos durante os próximos anos.
Em relação à insuficiência fiscal, estimávamos antes da PLDO que, com as mudanças de meta em discussão, seria possível, por uma pequena margem, entregar déficit primário até o fim do governo no limite da banda de tolerância da meta fiscal. Com isso, não seriam acionados os gatilhos de contenção de despesas previstos no arcabouço fiscal para quando o resultado primário fica abaixo do piso da banda de tolerância.
A flexibilização da meta de primário ocorreu como esperado em 2025 e acima do esperado para 2026. Além disso, a estimativa de despesas atípicas com precatórios (aquela que não está sujeita a meta de primário) ficou ligeiramente acima dos 0,25p.p. do PIB mencionados no corpo do texto. Considerando esses eventos, a possibilidade de que tenhamos déficit primário sem acionamento dos gatilhos de contenção de despesas ficou ainda mais concreta. Mesmo que o governo entregue o centro da meta de primário até 2026, haverá, de fato, déficit primário, ao contabilizar as despesas com precatórios não sujeitas à meta.
Em relação à previsibilidade fiscal, as projeções de longo prazo ainda requerem atenção, destoando do maior realismo que passamos a ver nas projeções de curto prazo. Para que a convergência da relação dívida/PIB ocorra entre 2027 e 2028, como indica o cenário oficial, é necessário um ajuste fiscal robusto, de 0,5p.p. do PIB entre 2027 e 2028. Para isso, as projeções oficiais consideram que a despesa discricionária (ou não obrigatória) do Executivo, orçada em 2,0% do PIB em 2024, atinja 1,0% do PIB em 2028.
Sob o guarda-chuva do orçamento discricionário, estão despesas como custeio e investimento público. Para efeito de comparação, durante a vigência do teto dos gastos da Emenda Constitucional 95/2016, o orçamento discricionário foi tão comprimido que o investimento público sequer recompunha a depreciação do capital e a verba para custeio eventualmente atingia patamares preocupantes, perto da inviabilização de alguns serviços públicos. Mesmo assim, a despesa discricionária anual nunca foi inferior a 1,4% do PIB.
Portanto, existem duas alternativas em relação à projeção de economia de gastos do governo, ambas prejudiciais à previsibilidade fiscal. Se o governo cumprir o que está projetado, afetará a estabilidade interanual do gasto discricionário, tão necessária para o planejamento de obras públicas e para o funcionamento básico da máquina pública. Se o governo descumprir o que está projetado, confirma-se que está sinalizando uma trajetória de ajuste mais otimista do que realmente seria possível, com a informação atual.
COMENTÁRIOS ADICIONAIS (2)
Se o debate de curto e médio prazo está ganhando “pingos nos is”, ainda não se pode dizer o mesmo sobre o debate de médio e longo prazo, especialmente no que envolve a Reforma Tributária. A regulamentação da reforma da tributação sobre o consumo foi apresentada nos dias 24 e 25 de abril. Sua tramitação ainda está em estágio inicial, mas algumas considerações já podem ser feitas. Acima de tudo, existe enorme incerteza sobre os impactos da reforma no financiamento público a longo prazo.
A alíquota de referência divulgada na regulamentação foi de 26,5%, em linha com a última projeção do governo, no fim do ano passado, que sinalizava alíquota entre 25,4% e 27,0%. Para chegar a essa faixa, conta-se com estimativa otimista para o hiato de conformidade, termo técnico para as perdas com sonegação, inadimplência, elisão e judicialização, em percentual da arrecadação. A estimativa do governo tem como hipótese que as perdas com conformidade do novo IVA seriam entre 30% e 55% menores do que as observadas no PIS/COFINS.
Estimativas anteriores sugerem alíquotas iniciais mais elevadas. Quando somamos os impactos estimados pelo governo para as exceções adicionadas ao texto em 2023 às estimativas anteriores para a alíquota basal (reconhecendo que as estimativas foram feitas com modelos bastante simples), chega-se a uma alíquota que, em alguns casos, poderia ultrapassar 30,0%[7]. O que temos de informação não impossibilita que a alíquota de 26,5% seja aquém da necessária para manter a arrecadação no patamar atual. Introduz-se, assim, mais uma fonte de preocupação em um contexto de insuficiência fiscal no médio prazo.
É importante, no entanto, ressaltar os avanços em termos de simplicidade, transparência, redução de litigância e eficiência na mudança do regime atual. Esses avanços foram destacados ao longo da tramitação no ano passado, e podem ter efeito positivo perene sobre a produtividade. É preciso estar atento aos detalhes para que esses impactos não sejam diluídos no debate da regulamentação. O aumento significativo do número de exceções e a redução dos efeitos de promoção do crescimento econômico marcaram a tramitação da Emenda Constitucional que implementou a Reforma em 2023, e são riscos importantes durante a regulamentação.
Em resposta a esse histórico, a proposta de regulamentação infraconstitucional do novo IVA traz estratégias, nas entrelinhas, para sufocar o apetite por novas exceções. Em específico, o governo prometeu divulgar, em parceria com o Banco Mundial, uma ferramenta online para indicar o impacto exato da inserção de novas exceções sobre a alíquota proposta. A possibilidade de termos o maior IVA do mundo, superando os 27,0% da Hungria, vem gerando comoção pública e manchetes de jornal.[8] Ao explicitar os custos de mudanças adicionais, o Executivo coloca o Congresso sob pressão, transmitindo para ele o ônus de levar a alíquota brasileira à liderança mundial. É inequívoco que esta é uma estratégia politicamente inteligente, mas, ao mesmo tempo, não é claro que seja bem-sucedida.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Referências:
IPEA (2023) – “Propostas de reforma tributária e seus impactos: Uma avaliação comparativa”
Ministério da Fazenda (2023) – “Alíquota-padrão da tributação do consumo de bens e serviços no âmbito da Reforma Tributária"
[1] Original publicado como Destaque BRCG. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/
[2] Um resumo dessas medidas pode ser visto em https://bit.ly/3vPqhdn
[3] Mudanças no arcabouço para abrir espaço extra para despesas estão em tramitação. Para mais informações, acesse https://bit.ly/43Srnlb
[4] Mais comentários em Destaque BRCG | Arcabouço fiscal: O jogo só começou e em Destaque BRCG | Potencial de arrecadação da tributação de IRPJ/CSLL sobre os incentivos fiscais do ICMS. Disponíveis em https://brcg.com.br/destaque-brcg/
[5] A desoneração da folha se encerraria em 2023. O presidente vetou projeto de lei que prorrogava a desoneração até 2027, mas seu veto foi derrubado pelo Congresso. A MP 1202/2024 veio como reação do governo, com: i) desenho mais focalizado para a desoneração da folha e ii) medidas compensatórias do lado da arrecadação, dentre as quais o fim de um programa de desoneração para o setor de eventos, o PERSE. O Congresso mostrou resistências aos rumos da desoneração da folha e do PERSE ensejados pelo Executivo, e os temas deverão ser apreciados em projetos de lei específicos, à parte da MP 1202/24. Para mais informações, acesse https://bit.ly/4d5LsJ4 ; https://bit.ly/3Jfm8SX ; https://bit.ly/3xGtAnA .
[6] Como sinalizado pela ministra Esther Dweck. Governo e funcionalismo ainda estão em negociação, que poderia resultar em crescimento da remuneração ainda maior que os 19% em 4 anos. Para mais informações, acesse https://bit.ly/3UeJ6jG
[7] Estimativas que constavam na proposta inicial da PEC 45/2019 e IPEA (2023), somadas aos efeitos de exceções adicionadas ao texto após a divulgação de cada uma dessas estimativas (Ministério da Fazenda, 2023).
[8] O debate tem mais efeito simbólico do que prático, porque a tributação atual já mascara em impostos em cascata e em miríade de complexidades uma alíquota média superior a esses 27,0%.
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