Macroeconomia

Quando e quanto aumentou o gasto primário em proporção do PIB?

13 set 2018

Dando continuidade ao meu último post, neste texto apresentarei a evolução do gasto primário recorrente da União, desde o fim dos anos 1990 A definição de gasto recorrente segue a metodologia adotada pelo próprio governo, no Boletim de Resultado Estrutural da Secretaria de Política Econômica.[1]

A figura 1 abaixo mostra a variação anual do gasto recorrente, em pontos percentuais do PIB, desde 1998. Os dados mais recentes correspondem às últimas projeções oficiais do governo (última avaliação trimestral de 2018 e PLOA 2019).

FIGURA 1

Considerando os últimos cinco mandatos presidenciais, o gasto deve subir de 14,8% do PIB no final do segundo governo Fernando Henrique (1998) para 19,8% do PIB no final do governo Temer (2018). O aumento acumulado será, portanto, de 5 pontos percentuais (pp) do PIB em 20 anos, uma média de 0,25 pp por ano.

Como qualquer razão, a evolução da despesa primária em proporção do PIB depende do crescimento do numerador (gasto primário) e do denominador (renda total da economia).

Por exemplo, é perfeitamente possível que a despesa cresça em termos reais e, ainda assim, o gasto caia em proporção do PIB, desde que a taxa de crescimento da despesa seja inferior ao crescimento da economia, como aconteceu em 2008 e 2010.

No sentido oposto, também é possível que o gasto caia em termos reais e, ainda assim, seu valor suba em percentual do PIB, desde que a queda do PIB seja relativamente maior do que a contração do gasto, como ocorreu em 2015.

Para analisar a política fiscal com maior detalhe, vale a pena separar o “efeito despesa” do “efeito PIB” na evolução do gasto primário em proporção da renda total da economia. Mais formalmente, a evolução da razão despesa/PIB () pode ser dividida em dois componentes:

 

onde  correspondem ao crescimento real do gasto primário e do PIB, calculados com base no deflator do PIB.

O primeiro termo do lado direito da equação acima é a contribuição do aumento da despesa primária para o aumento do gasto primário em proporção do PIB. Por definição, se o gasto cresce em termos reais, este componente é positivo e vice-versa.

Já o segundo termo do lado direito da equação é a contribuição da expansão do PIB para a variação do gasto primário em proporção da renda total da economia. Também por definição, este componente é negativo quando há crescimento real do PIB e vice-versa.

A identidade contábil acima nos permite calcular quanto da variação relativa do gasto primário decorreu diretamente do aumento da despesa, e quanto decorreu indiretamente do crescimento da economia. A figura 2 abaixo apresenta esta decomposição para os números apresentado na figura 1.

FIGURA 2

O sentido intuitivo da figura 1 é que a despesa primária cresce em proporção da renda total da economia quando a expansão da despesa (barra azul) não é totalmente compensada pela expansão do PIB (barra vermelha).

Na maioria dos anos em questão houve crescimento da despesa e do PIB, mas houve quatro anos em que a despesa caiu em termos reais (1999, 2003, 2015 e 2017), bem como três anos de “crescimento negativo” do PIB (2009, 2015 e 2016).

 

Considerando o período de 1998-18 como um todo – cinco mandatos presidenciais – o aumento acumulado do gasto primário (5 pp do PIB) decorreu de um “efeito despesa” de 12,2 pp do PIB e de um “efeito crescimento” de menos 7,2 pp do PIB.

A tabela 1 abaixo apresenta os números para cada mandato Presidencial. Os números apresentam alguns detalhes geralmente desconhecidos por não especialistas em política fiscal, quais sejam:

  1. O segundo mandato de Fernando Henrique começou com queda real da despesa primária, mas o gasto voltou a crescer bem acima do PIB a partir de 2000. No acumulado de quatro anos, a contribuição do aumento de gasto foi de 2,38 pp do PIB, versus um efeito crescimento de 1,35 pp do PIB.
  2. O primeiro governo Lula também começou com redução do gasto primário real, a maior registrada na série. O esforço fiscal também durou pouco, isto é, em 2004-06 a despesa voltou a crescer acima do PIB. Considerando o primeiro mandato de Lula como um todo, a contribuição do aumento de despesa foi de 2,98 pp do PIB, contra um efeito crescimento de 2,11 pp do PIB.
  3. O segundo governo Lula começou com aceleração do gasto primário e do PIB, em 2007. Porém, em 2008, houve forte desaceleração do gasto primário, que chegou a cair em proporção do PIB. Já a partir de 2009, a política fiscal anticíclica para combater os efeitos da crise internacional acelerou o gasto primário. Mesmo com esta expansão, a despesa primária voltou a cair em proporção do PIB em 2010, devido à rápida recuperação da economia naquele ano. No período como um todo, a contribuição do aumento do gasto público foi de 3,44 pp do PIB, enquanto o efeito crescimento foi no sentido contrário em 2,98 pp do PIB.
  4. A transição para o governo Dilma ocorreu com nova desaceleração do gasto primário, que cresceu abaixo do PIB em 2011. Porém, novamente o ajuste teve vida curta. A deterioração do cenário internacional levou a uma nova expansão fiscal a partir em 2012, com a despesa primária crescendo bem acima do PIB. Apesar desta decisão, considerando os quatro anos como um todo, a contribuição do aumento de despesa foi de 2,69 pp do PIB durante o primeiro mandato de Dilma, contra um efeito crescimento de 1,56 pp do PIB. Em comparação com os anos Lula, o gasto desacelerou, mas o crescimento da economia desacelerou mais ainda.
  5. O segundo governo Dilma começou com grande corte das despesas primárias, que caíram em termos reais. Apesar desta queda, o gasto primário aumentou em proporção do PIB devido à queda do nível de renda em 2015. Em números, a contribuição da despesa primária foi negativa em 0,35 pp do PIB, mais isto foi mais do que compensado pelo “efeito retração do PIB”, que atingiu 0,67 pp do PIB em 2015.
  6. O governo Temer começou com forte expansão fiscal, em 2016.[2] Porém, no ano seguinte, houve nova redução da despesa primária real. Para 2018, a projeção do governo é de retorno da expansão fiscal, com o gasto primário crescendo acima do PIB. O saldo final da política fiscal de Temer deve ser um efeito despesa de 1,01 pp do PIB, somado a um “efeito contração” do PIB de 0,17 pp do PIB.

Tabela 1: decomposição do aumento do gasto primário recorrente da União em efeito despesa e efeito crescimento, números em % do PIB.

 

Variação acumulada

Efeito despesa acumulada

Efeito PIB acumulado

Variação média anual

Efeito despesa média anual

Efeito PIB média anual

FHC 1 (1999-02)

1,03

2,38

-1,35

0,26

0,59

-0,34

Lula 1 (2003-06)

0,87

2,98

-2,11

0,22

0,74

-0,53

Lula 2 (2007-10)

0,46

3,44

-2,98

0,11

0,86

-0,75

Dilma 1 (2011-14)

1,13

2,69

-1,56

0,28

0,67

-0,39

Dilma 2 (2015)

0,33

-0,35

0,67

0,33

-0,35

0,67

Temer (2016-18)

1,18

1,01

0,17

0,39

0,34

0,06

 

 

 

 

 

 

 

Total

4,99

12,15

-7,16

0,25

0,61

-0,36

Governos PT (2003-15)

2,78

8,76

-5,98

0,21

0,67

-0,46

Governos não PT (1999-02 e 2016-18)

2,21

3,39

-1,18

0,32

0,48

-0,17

Fonte: MF/STN, MF/SPE, Programação fiscal de 2018, PLOA 2019 e cálculos do autor

Para completara a análise, a figura 3 apresenta as taxas anuais de crescimento real do PIB e do gasto primário recorrente.

Durante a maior parte do período a política de gasto primário foi pró-cíclica, isto é, a taxa de crescimento da despesa e do PIB variaram na mesma direção. Porém, considerando apenas os últimos cinco anos, o gasto público foi fortemente pró-cíclico, em 2013-15, e “sanfona”, a partir de 2016 (expansão seguida de contração seguida de expansão).

Com base no PLOA 2019, o próximo passo da estratégia “sanfona” proposta por Temer seria outra forte contração fiscal em 2019, mas isto obviamente dependerá do resultado das urnas em outubro.

Nossa experiência recente indica ser muito improvável dois anos consecutivos de corte real de despesas, sobretudo na atual conjuntura de grande redução de gastos discricionários pela União.

O cenário mais provável do próximo governo é, portanto, uma redução relativa do gasto primário da União, com a despesa crescendo em termos reais, mas abaixo do crescimento do PIB, com ocorreu em 2008, 2010 e 2011.

FIGURA 3

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Os dados cobrem 2002-17. Para 2018, considerei o subsídio ao diesel como gasto não recorrente, seguindo a classificação da atual equipe econômica.

[2] Esta expansão foi proposta pelo Governo Dilma, mediante redução significativa do resultado primário, o que acabou sendo aumentado e aprovado após o golpe parlamentar de 2016.

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Dayanne Darth

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