Ganhos fiscais e incentivos por trás de uma reforma da Previdência justa
A ideia de se fazer uma profunda reforma da Previdência só se tornou um pouco mais tolerável para a sociedade brasileira e o seu sistema político quando o foco passou da questão contábil e fiscal para os aspectos de justiça. Como é bem sabido, o sistema previdenciário nacional tem regras distintas nos regimes de aposentadoria, que favorecem os servidores públicos. Estes foram contemplados pela Constituição de 1988 com integralidade (direito a se aposentar pelo último salário recebido) e paridade (reajuste dos inativos igual ao dos ativos da mesma carreira). Em sucessivas reformas ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, essas vantagens em relação ao sistema do setor privado foram reduzidas, mas ainda são muito expressivas. Assim, uma das principais preocupações da proposta do presidente Jair Bolsonaro foi a de encaminhar a unificação dos dois regimes.
Os militares foram objeto de um conjunto de mudanças à parte, bastante mais suave, que acabou desagradando setores significativos da sociedade por vir acoplado a uma melhora na remuneração dos ativos que neutralizará grande parte da economia propriamente previdenciária. De qualquer forma, esse episódio apenas reforça o argumento inicial desta Carta, de que foi apenas quando a questão da justiça foi colocada de forma mais incisiva na argumentação a favor da reforma da Previdência que esta fundamental mudança pôde contar – se não com o apoio – pelo menos com a resignação de parte do eleitorado.
Existe, entretanto, um problema de difícil resolução no impasse brasileiro diante do imperativo doloroso de reformar a Previdência como condição necessária de restauração da solvência fiscal estrutural do Estado. Embora a questão da justiça seja a que dá um mínimo de suporte popular e político à mudança, reside no regime geral do setor privado a dinâmica mais explosiva de longo prazo, ligada fundamentalmente a questões demográficas associadas às atuais regras do sistema.
Enquanto a despesa de pessoal com ativos e inativos do governo federal está estabilizada em pouco mais de 4% do PIB há pelo menos duas décadas, os gastos do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), do setor privado, saíram de 3,4% do PIB em 1991 para 8,5% em 2018. Supondo-se que não haja reforma e as atuais regras sejam mantidas, segundo as projeções de Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, os gastos do RGPS superarão a marca de 10% do PIB em 2029 e atingirão 16,75% em 2060.
Fica evidente, portanto, que apenas corrigir as injustiças do sistema previdenciário nacional não resolverá os graves problemas fiscais a ele associados. Mesmo quando se mergulha nos números do próprio RGPS, dá para notar que nem sempre o ponto crucial em termos de justiça coincide com o aspecto mais comprometedor em termos fiscais.
A aposentadoria por tempo de contribuição, por exemplo, vem sendo apresentada por esta equipe econômica (e pelas anteriores) como um ponto particularmente regressivo do sistema. Suas regras de elegibilidade em termos de tempo de contribuição fazem com que o beneficiário típico seja substancialmente mais rico do que aqueles que são levados a se aposentar por idade mínima (hoje de 60 anos para mulheres e 65 para homens). Quando se olha o ritmo de crescimento dos dois tipos de aposentadoria, entretanto, constata-se que a aposentadoria por idade tem crescido a um ritmo mais veloz – com expansão média anual de número de benefícios, entre 2011 e 2017, de 4,65%, comparado a 3,22% no caso do tempo de contribuição.
Dessa forma, embora seja politicamente mais fácil “vender” a mudança que gradualmente põe fim à aposentadoria por tempo de contribuição, as mudanças paramétricas na concessão do benefício por idade são possivelmente mais importantes do ponto de vista da solvência fiscal. Esse fato não é nada trivial em termos de economia política. A reforma da Previdência necessariamente terá uma tramitação difícil no Congresso. Por isso, há a expectativa de um grau não desprezível de diluição no que está sendo proposto. Não resta dúvida que é muito mais factível preservar os aspectos da reforma que são considerados mais justos do que aqueles que, mesmo não podendo ser incluídos nesta categoria, representam ganhos fiscais tão ou mais expressivos.
Adicionalmente, certos tópicos extremamente sensíveis que foram incluídos no atual projeto de reforma da Previdência, e que provocam particular resistência, têm sua razão de ser e não deveriam ser considerados puramente como “bodes na sala”, cuja retirada não representaria o menor problema.
Parece haver quase consenso, por exemplo, de que, na negociação da reforma no Congresso, o governo terá de ceder em relação às mudanças na aposentadoria rural e no Benefício de Prestação Continuada (BPC). No caso da aposentadoria rural, no valor de um salário mínimo, as regras atuais estipulam idade de 55 anos para mulheres e 60 para homens, e a necessidade de comprovar um tempo mínimo de atividade rural de 15 anos. Já no BPC, idosos (homens e mulheres) e deficientes em condição de miserabilidade têm direito a um salário mínimo mensal a partir de 65 anos.
A reforma da Previdência proposta pelo atual governo abordou de forma incisiva esses dois benefícios, cujo público-alvo de idosos pobres ou miseráveis naturalmente desperta a simpatia e a solidariedade da população. Por isso, não é à toa que parlamentares costumam resistir muito a mudanças restritivas nesses programas. Sempre foi difícil fazer qualquer tipo de alteração na aposentadoria rural e no BPC que não fosse no sentido de ampliar a generosidade. E não está sendo diferente desta vez.
Em relação à aposentadoria rural, a proposta é elevar a idade das mulheres, para recebimento do benefício, também para 60 anos, e exigir uma contribuição mínima de R$ 600 por ano, por grupo familiar, durante um período de 20 anos. Há regras de transição tanto para a mudança da idade das mulheres quanto para o recolhimento da contribuição. Já no BPC, a reforma institui um benefício de R$ 400 para pobres em situação de miserabilidade já a partir de 60 anos, mas adia o direito a um salário mínimo para os 70.
Apesar de todas as críticas à inclusão desses dois tipos de benefício na reforma da Previdência, e da perspectiva de que as mudanças propostas sejam eliminadas durante as negociações com o Congresso, ambos permanecerão na agenda econômica nacional, e não só por problemas fiscais. Mexer na aposentadoria rural e no BPC é, sem dúvida, uma questão delicada em termos de sensibilidade social, mas não deixa de ser uma tarefa menos necessária por causa disto.
A aposentadoria rural teve um ritmo de crescimento anual de benefícios entre 2011 e 2017 de 1,17%, o que é bem inferior ao do RGPS urbano, mas não é irrelevante – especialmente considerando o processo de urbanização e formalização do trabalho no campo. Adicionalmente, o número de benefícios rurais é bastante elevado, tendo atingido 6,4 milhões em 2017, mais do que, por exemplo, as aposentadorias por tempo de contribuição no mesmo ano, que totalizavam 6 milhões. O BPC, por sua vez, é um programa cujo impacto fiscal tende a aumentar – levando-se em conta as atuais regras e a demografia –, saindo de gastos de 0,79% do PIB em 2019 para 1,36% em 2040.
Como se vê, embora haja um aumento nos gastos com BPC ao longo dos próximos anos, a questão fiscal, no caso desse benefício, não parece um grande problema. No entanto, o BPC traz uma complicação de outra natureza. Em seu atual formato há o risco de estímulo à informalidade, como explicou, em recente artigo no Blog do IBRE, o pesquisador associado Fernando Veloso. O problema se dá justamente pela conjunção das presentes regras do auxílio com a elevação das exigências para a aposentadoria no regime geral.
Hoje, um trabalhador de baixa renda do setor privado pode se aposentar com os mesmos benefício e idade – salário mínimo e 65 anos para homens, respectivamente – do que alguém que ganhe o BPC. A diferença é que o aposentado pelo RGPS tem que contribuir por um mínimo de 15 anos, e o beneficiário do BPC não precisa ter feito qualquer aporte. Como escreveu Veloso, “a reforma aumenta o tempo mínimo de contribuição do RGPS para 20 anos, o que eleva ainda mais essa disparidade, reduzindo o incentivo à contribuição e podendo aumentar a informalidade”.
O pesquisador ainda nota que, mesmo sendo muito reduzida a renda que faz jus ao BPC, ocorreu forte judicialização na concessão do benefício. Em 2013, decisão do STF firmou jurisprudência que eleva a linha de corte do programa de ¼ para meio salário mínimo. Além disso, acrescenta Veloso, “um grande número de ações na Justiça tem como objetivo excluir determinadas fontes de renda ou despesas do cálculo da renda familiar per capita utilizada para determinar a elegibilidade”.
Fica clara a lógica, portanto, por trás da elevação para 70 anos da idade mínima para se obter um salário mínimo do BPC, cinco anos a mais do que os 65 da idade de aposentadoria. O objetivo é justamente o de reduzir os incentivos para que trabalhadores com condições de estar no RGPS optem pelo BPC (em alguns casos até em coordenação com empregadores) por cálculo financeiro. Veloso ressalva que o aumento, pela reforma, do tempo de contribuição do RGPS para 20 anos pode vir a criar um requisito difícil de cumprir para um trabalhador de baixa renda que não seja elegível ao BPC. Neste caso, escreve o economista, “uma possibilidade que deveria ser considerada seria a criação de uma renda mínima de aposentadoria para todos os trabalhadores, de natureza não contributiva”.
De qualquer forma, a mudança do BPC visa também a ajustar o sistema previdenciário brasileiro no sentido de não estimular a informalidade. Uma das principais linhas de trabalho de Veloso atualmente é investigar as razões do fraquíssimo ritmo de crescimento da produtividade no Brasil nas últimas décadas, e a questão da informalidade é um dos vários elementos desta equação.
Por essas razões, essas mudanças previstas no atual projeto de reforma da Previdência, que à primeira vista causaram evidente mal-estar na sociedade, não devem ser imediatamente descartadas sem que uma reflexão mais ampla seja feita, e sem que este debate possa ser amadurecido para que os problemas mencionados venham a ser resolvidos.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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