O shut down das estatísticas econômicas
Em qualquer país o governo é o principal produtor e consumidor de estatísticas. Na busca do interesse público, é o principal interessado, pois suas utilidades são as mais variadas. As estatísticas são úteis para a definição de políticas públicas em várias áreas. No controle de epidemias é necessário saber onde ocorre a concentração dos casos para identificar o foco da doença e iniciar o controle. De forma análoga, na segurança pública é necessário saber onde estão as principais ocorrências para distribuir de maneira adequada o contingente policial. Existem vários outros exemplos.
A dependência do uso das estatísticas tem sido crescente porque há maior conscientização sobre a sua importância e também maior capacidade de processamento e armazenamento de dados, com novas tecnologias sendo criadas de forma contínua.
A produção das estatísticas do governo possui baixo custo em relação ao benefício que proporcionam. São as estatísticas que permitiram desenhar a reforma da Previdência que vai produzir uma economia de centenas de bilhões de reais nos próximos anos. Em 2018, o governo anunciou a economia de R$ 10 bilhões com a fiscalização do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Essa economia foi produzida apenas com cruzamento de informações entre as várias bases do governo, com custo quase zero.
Recentemente, um episódio causou certa comoção na sociedade. Quando o orçamento de 2019 foi divulgado, o IBGE anunciou que seus recursos não seriam suficientes para produzir o Censo 2020. O Censo é a principal e a mais simbólica pesquisa do principal órgão de estatística do Brasil criado, no formato atual, em 1938. A única vez que havia sido atrasado foi durante o Governo Collor. A despeito de longo debate entre especialistas, até agora há pouca certeza se o Censo será de fato produzido e com qual nível de qualidade.
Já tive oportunidade de escrever em várias ocasiões sobre as consequências do shut down, como nesse post. Em alguns casos, as consequências podem ser sentidas pela sociedade. O caso mais emblemático acontece no INSS, em que a aposentadoria de seis mil servidores inviabilizou o atendimento de aproximadamente 2 milhões de pessoas, o que causou a demissão do seu presidente.
Mas a situação é mais dramática porque existe um shut down que é invisível para a parte mais expressiva da sociedade. Qualquer gestor público, com a restrição financeira que vivemos hoje, vai tomar decisões e escolher algumas prioridades. Parece compreensível que essas escolhas priorizem aqueles serviços que tem alto potencial de crise imediata. Assim, a deterioração de certos serviços públicos ocorre lentamente e de forma pouco visível, mas com consequências importantes para o futuro e que resultarão em custos elevados para a sociedade.
O Ministério da Economia anunciou que no próximo mês deverá encaminhar a reforma administrativa que visa alterar as regras do funcionalismo público. O antigo Ministério do Planejamento produzia um relatório de pessoal abrangente desde a época do MARE (Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado), liderado pelo ex-ministro Bresser. Desde então, os vários ministros que por lá passaram ampliaram o fluxo de informações com dados detalhados sobre carreiras, estrutura salarial dos servidores, quantidade, fluxo de entrada e saída. Sob o argumento de tornar a base de dados mais interativa, o que aconteceu foi a redução do universo de informações disponível ao usuário. Como a sociedade irá avaliar a reforma administrativa que virá? Deixo a seguir o link das duas bases para que meu leitor possa julgar o assunto.
A nova base:
A base antiga (disponível, mas descontinuada):
http://www.planejamento.gov.br/assuntos/gestao-publica/arquivos-e-publicacoes/BEP
A Receita Federal é responsável por divulgar a base de informações da carga tributária brasileira com metodologia relativamente estável e pública. No relatório que comenta os novos cálculos sempre existem informações interessantes como a comparação internacional. A publicação normalmente ocorria no segundo semestre do ano seguinte ao da divulgação. A última divulgação ocorreu em 2017. O país vai debater reforma tributária sem ter dados atualizados sobre o quanto se paga de impostos e como essa arrecadação se distribui entre União, Estados e Municípios.
Na área de orçamento e de política fiscal não é diferente. Os dados da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) deixaram de ser atualizados em março de 2018. Essa atualização era mensal e os dados são muito interessantes porques possuem aberturas diferentes do Tesouro Nacional. Foi a SOF que criou o acompanhamento do resultado da Seguridade Social, uma base de informação importante do debate sobre reforma da Previdência. Ah, nunca é demais dizer: tem déficit na seguridade social sim!
A Previdência Social acabou de ser reformada com novas regras. A Secretária da Previdência, no entanto, deixou de atualizar seu anuário estatístico, principal base de informações e a mais detalhada. Se continuar assim, vai demorar para termos uma avaliação mais abrangente dos impactos da reforma e tentar aperfeiçoar o sistema, corrigindo suas injustiças e buscando seu equilíbrio financeiro. O que o governo ganha com isso? Nada, pois se a base estivesse atualizada teria sido possível antecipar a crise atual dos atendimentos e remediar a situação.
http://www.previdencia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-previdencia-social/
Ainda existem vários outros problemas como disponibilização de informações em arquivos em pdf. A área orçamentária e fiscal faz isso aos montes: Secretaria do Tesouro Nacional, Empresas Estatais, por exemplo. O correto é divulgar os relatórios e, de forma separada, as planilhas com as informações utilizadas.
No período em que trabalhei no governo sempre fiz isso, como no Relatório de Distribuição de Riqueza em que os dados da pesquisa passaram a ser públicos e divulgados pela Receita Federal, mas infelizmente o relatório deixou de ser produzido pela SPE. Por outro lado, na divulgação do Resultado Primário Estrutural, a prática foi mantida. O mesmo acontece com o Boletim de Custeio Administrativo. Nesses casos, parte dessa cultura permaneceu, mas é negativo quando uma boa prática não é institucionalizada e depende apenas das pessoas que estão lá.
http://www.fazenda.gov.br/assuntos/politica-fiscal/atuacao-spe/resultado-fiscal-estrutural
http://www.planejamento.gov.br/servicos/central-de-conteudos/boletim-de-custeio-administrativo
Em outras áreas, o método de divulgação e produção de estatísticas nunca teve qualidade. É necessário investir em ciência de dados. Falta metodologia, periodicidade e tempestividade. Esse é o caso, por exemplo, das estatísticas do FAT. Há também, situações recentes em que ocorreram negativas de informação. Isso aconteceu com o Bolsa Família:
Episódio de negar informação também aconteceu no Banco Central que provocado por um debate não informou sua medida de hiato do produto. Em política econômica, há cada vez mais necessidade de ser transparente como bem denotaram Braulio Borges do IBRE e Ricardo Barboza.
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/01/21/inflacao-sugere-hiato-de-5-diz-economista.ghtml
Em alguns casos esses episódios podem ser justificáveis: a informação pode ser considerada sensível, sistemas precisam ser aperfeiçoados o que pode causar algum atraso, mas a questão substantiva é que existe um retrocesso estatístico importante em várias áreas que faziam isso bem. Em várias discussões importantes essas informações vão fazer falta ou poderão ser utilizadas de forma conveniente para forçar uma visão de mundo única e defender uma política específica que não necessariamente reflita o interesse público.
Depois que manifestei essa preocupação, outros colegas atentaram para outras pesquisas que também estão atrasadas. Não as relatei aqui porque não tenho conhecimento suficiente dessas bases de dados, mas para quem se importa com esse tipo de assunto sugiro registrar publicamente se esse tipo de situação ocorreu na sua área de interesse ou de trabalho. Uma auditoria da sociedade vai custar bem menos do que R$ 48 milhões que podem ser utilizados para melhorar as estatísticas do país.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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