Ajuste necessário e urgente
Um mundo com elevada incerteza, da desinflação à eleição nos EUA, demanda cautela ainda maior dos países emergentes em suas políticas econômicas. Em particular, no Brasil, o calcanhar de Aquiles é a insustentabilidade fiscal.
Desde o final de 2022, o Brasil vem experimentando uma sensível deterioração fiscal, com forte aumento dos gastos e persistente elevação da dívida pública. Isso sem que sejam adotadas medidas capazes de dar resposta adequada aos riscos daí decorrentes. Pelo contrário, o que se viu foram sucessivas propostas de mais e novos gastos, como se o problema não existisse. Surpreendentemente, porém, até meados do ano esse quadro parecia ter pouca influência sobre o preço dos ativos, cuja dinâmica vinha sendo quase exclusivamente determinada pelo quadro externo, em especial o ritmo de redução dos juros nos EUA.
Como seria razoável esperar, porém, com a persistência do problema e, talvez, a semelhança com a dinâmica das contas públicas à véspera da grande recessão de uma década atrás (e.g., um déficit nominal de 10% do PIB), o risco fiscal voltou ao centro das atenções dos agentes de mercado. E passou a fazer preço, como se diz, com a forte elevação da curva de juros e a desvalorização do real, mesmo com o ciclo monetário no Brasil indo na contramão do que se observa hoje nos EUA.
É fato que também ajudam a explicar essa dinâmica a piora do humor internacional, com notícias mais negativas sobre a economia chinesa e sobre as eleições nos EUA. Impressiona, porém, essa piora dos ativos domésticos, na contramão do que se poderia esperar do fato de a agência de classificação de risco Moody’s ter elevado a nota de crédito soberano do Brasil, de Ba2 para Ba1, e com perspectivas positivas.
Um dos possíveis motivos para a relativa leniência dos mercados com a deterioração fiscal até recentemente pode ter sido a situação relativamente confortável das contas externas. Porém, após um período de baixo déficit em conta corrente, estamos caminhando para valores mais próximos de 2,5% do PIB. As exportações seguem mostrando bom resultado, mas, com a forte aceleração das importações, mais um sinal de hiato positivo do produto, o saldo comercial tem caído.
Como mencionado na seção do Setor Externo: “Déficits em conta corrente da ordem de 2,5% do PIB não representam nenhuma ameaça concreta à nossa sustentabilidade externa. Há sinais, no entanto, de que o equilíbrio externo exigirá a absorção de mais capitais de curto prazo, o que pode tornar os resultados do balanço de pagamentos mais instáveis.” Ou seja, o investimento estrangeiro direto será insuficiente para cobrir as necessidades de financiamento externo e, nesse contexto, há necessidade de um diferencial de juros doméstico com relação ao juro americano significativamente elevado para financiar a conta corrente. Tudo isso contribui para um quadro de taxa de câmbio mais depreciada e a necessidade de política monetária mais apertada.
Como bem destacado no capítulo 2 do recente Relatório de Estabilidade Financeira Mundial do FMI, a incerteza macroeconômica pode ameaçar a estabilidade financeira de um país, elevando o risco de cauda negativo nos mercados de ativos, afetando a oferta de crédito e o crescimento econômico. Em particular, esses efeitos são mais fortes em países com maiores vulnerabilidades, com endividamento excessivo nos setores público e privado. Entre as principais recomendações de política está a redução do endividamento público.
Um mundo com elevada incerteza, tanto por questões relacionadas ao combate à inflação nos países desenvolvidos, como pelas de natureza geopolítica, como as incertezas em relação às consequências da eleição nos EUA, demanda cautela ainda maior dos países emergentes na condução de suas políticas econômicas. Em particular, no Brasil, o nosso calcanhar de Aquiles é a insustentabilidade fiscal.
Este ano foi marcado pelo expressivo estímulo fiscal, que preponderou no primeiro semestre do ano. Mesmo com sinais de desaceleração do gasto e de menor estímulo fiscal, estamos vivenciando uma nova rodada de desconfiança dos agentes de mercado. Diversas manobras fiscais e a ausência de contenção de gastos abalam a credibilidade do regime fiscal. De fato, os gastos crescem além do que pode ser bancado pelo aumento das receitas. Este ano, devido ao aumento de receitas não recorrentes, bem como às decisões do Judiciário, o déficit público primário do Governo Central deve ser de “apenas” 0,4% do PIB, cerca de metade do déficit do setor público consolidado, de 0,8%. Mas, se nada for feito, o déficit vai continuar crescendo no ano que vem. E a conta dos juros não para de subir, de forma que em breve a dívida pública deve superar os 80% do PIB.
Conforme fala recente da ministra do Planejamento Simone Tebet: “O Brasil já fez o dever de casa do lado da receita, não é possível mais resolver o problema fiscal pela receita".... “chegou a hora para levar a sério a revisão de gastos estruturais."
A grande dúvida é se haverá apoio político para tais medidas. Infelizmente, revisões sobre a regra de reajuste do salário mínimo e a desvinculação das aposentadorias, pensões e BPC do mínimo foram descartadas. E essas são medidas que dariam um impacto relevante na trajetória de gastos ao longo do tempo. Resta saber o que de fato será apresentado e aceito do ponto de vista político. Enquanto isso, estamos passando novamente por um uma crise de confiança. Em geral, um contexto como esse pode ajudar a aumentar o apoio às medidas propostas. Ou pode levar a uma séria deterioração da economia, como ocorreu há uma década. A ver.
Em suma, o ajuste dos gastos públicos é necessário e urgente.
Este é o Sumário do Boletim Macro FGV IBRE de outubro de 2024.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Deixar Comentário