A autonomia administrativa e financeira do Banco Central

Banco Central tem que se capacitar para supervisionar miríade de empresas que competem para atender clientes de forma cada vez mais personalizada e barata. Necessidades de recursos do BC não podem depender da boa vontade do governo da ocasião.
A PEC 65/2023 tem por objetivo a autonomia orçamentária do Bacen. Muito tem sido debatido sobre sua conveniência. Durante algum tempo, eu mesmo fui contra a ideia. Meu ponto de vista era o seguinte: em todas as vezes que foi conferida autonomia para propor seus próprios salários e despesas, a experiência brasileira mostra uma tendência ao corporativismo. Assim, eu fui defensor do simples – a direção do Bacen propõe o número de funcionários e a remuneração, o governo analisa e, e a não ser que haja justificativas muito fortes em contrário, aprova. De modo que as despesas com o Bacen estariam nos gastos usuais do Tesouro Nacional. Como tem sido a sistemática até agora.
Infelizmente, ficou bem claro que o Banco Central tem sido muito negligenciado em termos de recursos financeiros e de pessoal já há algum tempo. E as atribuições que o Bacen tem recebido cada vez aumentam mais. No ano passado o Bacen pediu 300 funcionários e conseguiu autorização para um concurso de apenas 100. Emergencialmente teve que pedir mais 200 este ano. Enquanto isso, os Correios (isto mesmo, esta empresa pública que está em evidência pelo seu prejuízo) fizeram um concurso cujo edital foi publicado em 11 de outubro do ano passado para contratar 3511 funcionários! Fora mais 5631 que ficaram no cadastro de reserva. E estamos falando de uma estatal que só tem acumulado prejuízos desde que o governo Lula 3 começou. Ou seja, os critérios governamentais para decidir sobre prioridades em contratações estão bem fora do eixo.
Para entender isso, vamos ver quais atribuições a Autoridade Monetária têm. Claro, o controle da inflação e da solidez do mercado financeiro. Porém há muito mais. No meu artigo de abril para a coluna do Broadcast, mostrei que o Banco Central tem focado a agenda de competitividade desde 2013. A inclusão financeira ativa estimada pelo Banco Central em 2023 era de 88% da população brasileira adulta. Este processo iniciou-se mais acentuadamente em 2013, pela adoção de Basileia III com critérios internacionais. Depois vieram a criação de inúmeras “fintechs”, o pix, o open finance e futuramente virá o Drex. Para que esta bancarização expressiva ocorresse, uma miríade de empresas está competindo para atender aos clientes de forma cada vez mais personalizada e barata. Ocorre que estas empresas, financeiras e assemelhadas, foram criadas com requisitos regulatórios menos restritos que as regras bancárias tradicionais, especialmente em relação aos preceitos de KYC (conheça seu cliente), essencial para a PLD (Prevenção à Lavagem de Dinheiro). Uma transação financeira entre duas pontas é hoje dividida em uma cadeia de pequenas transações efetuadas por empresas que só surgiram pelas normas do Bacen que permitiram a maior competição. Além das IP’s, SCD’s, SEP’s, que são explicitamente autorizadas pelo Banco Central, cito aqui, baseando-me fortemente no que mencionei em meu artigo de abril sobre algumas instituições deste ecossistema que podem não estar ainda sob a supervisão direta da Autoridade Monetária: os serviços de BaaS (banking as a service), as fintechs que são subcredenciadoras (muitas vezes não reguladas pelo Bacen), as “exchanges” de criptomoedas, empresas que prestam serviços totalmente acessórios ao setor financeiro oferecendo contas “ônibus” (contas em que diversas subcontas recebem ou pagam e apenas a conta ônibus registra o saldo), “tiqueteiras” que fazem cobranças em grandes eventos, e outras instituições não reguladas pela autoridade monetária que usam a palavra “banco”, “bank”, “banc”, “banca” ou afins no nome. Acrescento a esta enorme lista as inúmeras empresas que já estão orbitando no ecossistema do open finance, e que potencialmente podem oferecer uma enorme variedade de serviços financeiros. Hoje temos 777 empresas cadastradas no open finance. E estas poderão ainda fazer acordos bilaterais com outras empresas não financeiras e/ou financeiras.
O Banco Central será levado necessariamente a rever a legislação de KYC e PLD nesta cadeia inteira de empresas. A solução óbvia (e custosa, mas inevitável) é que o Bacen tenha a supervisão de todas as etapas da cadeia. Uma observação: uma corrente arrebenta sempre no elo mais fraco. Desta maneira, introduzir algo que dificulte a PLD em uma transação que foi dividida em mini serviços que formam uma cadeia é sempre mais fácil pelo elo fraco da cadeia. Portanto, o Bacen tem que impor a todos os elos da cadeia de serviços financeiros o mesmo padrão tradicional de KYC e PLD.
Estas empresas todas terão que ser reguladas e fiscalizadas no âmbito da Autoridade Monetária. Além disso, há as novas atribuições de regulação dos criptoativos. E vamos lembrar que toda vez que um problema complexo aparece, sempre se lembra do Bacen para resolvê-lo. Veja o caso recente das empresas de “bets”. As estimativas do mercado de apostas online foram feitas a pedido do Congresso pelo Banco Central.
Vamos ainda lembrar que o COAF, essencial para dar seguimento ao trabalho necessário para o combate à lavagem de dinheiro, desde 2020 está subordinado ao Bacen. O COAF terá que ter um grande investimento em tecnologia e recursos humanos para manter-se atualizado na supervisão deste complexo sistema financeiro descentralizado que emergiu do aumento da competição financeira.
As necessidades de recursos do Bacen não podem ficar à mercê da boa vontade do governo da ocasião. Embora haja riscos de que a PEC possa ser usada de forma inadequada para satisfazer interesses corporativistas, o risco de não se implantarem estes controles e uma supervisão mais eficazes é muitíssimo elevado, pois poderemos ter muitos problemas com a efetividade da prevenção à lavagem de dinheiro no Brasil. Temos que evitar isto a qualquer custo.
A PEC 65/2023 trata deste assunto, e deixa para a lei os detalhes. Sugiro que esta lei já comece a ser discutida abertamente e que a PEC seja aprovada. Talvez se deva colocar um limite explícito à remuneração dos empregados do Bacen, que não poderiam passar do teto constitucional do STF. Não vejo outra forma de isolar tecnicamente uma instância regulatória que trabalha com a essência do que faz a nossa economia funcionar – a taxa de inflação, a solidez das instituições financeiras, o controle dos meios e sistemas de pagamento e a PLD.
Este artigo foi publicado originalmente pelo Broadcast da Agência Estado, em 10/06/2025, terça-feira.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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