Política e Governo

Com que roupa Lula vai?

17 nov 2022

Há pelo menos três versões para o Lula presidente a partir de 2023: o de 89, “contra tudo isso que está ai”, o Lulinha “paz e amor” da Carta ao Povo Brasileiro de 2002, e o Lula do 2º mandato, muito mais intervencionista.

Na coluna Ponta de Vista de abril de 2021, abri o texto com o seguinte parágrafo:

“Lula recuperou seus direitos políticos. Aquele que provavelmente é o maior líder popular da história muda completamente as peças do jogo. Se já não fosse pouco toda a carga simbólica da biografia de Lula com o tempero do período no cárcere, enfrentados com altivez e galhardia, há a dose adicional de simbolismo com o paralelismo à volta de Getúlio Vargas em 1951. Já circula nas redes sociais, para a diversão dos mais velhos e para ajudar na formação política das novas gerações, o vídeo com a marchinha “O retrato do velho” de Haroldo Lobo, na voz de Francisco Alves, o Chico viola.”[1]

Voltando para o tempo presente, logo após a vitória de Lula no segundo turno de 30 de outubro de 2022, reli a minha coluna de abril/21, e constatei que ela se aplica como uma luva ao atual momento. Abaixo, portanto, segue o restante da minha coluna de abril de 2021, com pequenas alterações de atualização:

Após a vitória eleitoral, as movimentações ocorrem. A grande questão é sabermos com que roupa Lula irá se apresentar. Há pelo menos três fantasias. O Lula de 89, “contra tudo isso que está ai”, o Lulinha “paz e amor” da Carta ao Povo Brasileiro de 2002, e o Lula do segundo mandato, muito mais intervencionista.

No jornal Folha de São Paulo de domingo, 28 de março de 2021, reportagem de Fábio Zanini se perguntava se Lula escreveria uma nova carta aos brasileiros. O jornalista Edmundo Machado de Oliveira, hoje assessor técnico da liderança do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo, e um dos redatores originais da Carta, afirmou em entrevista a Zanini que “Se eu fosse escrever hoje, seria para escrever o seguinte: ‘estamos vivendo um mundo completamente diferente. A âncora principal de qualquer governo, sobretudo o Brasil, é o problema da desigualdade social’.” Um pouco mais à frente na reportagem Oliveira afirmou: “A questão da desigualdade os ‘Faria Limers’ [mercado financeiro] vão ter que aprender de uma forma ou de outra (...)”.

Oliveira considera – assim como, penso eu, o PT, incluindo Lula e sua assessoria econômica – que o tema da desigualdade não é tratado pois a Faria Lima o bloqueia. Será que é fato?

A desigualdade precisa ser atacada pelo gasto e pela receita. Pelo gasto, a maior fonte da desigualdade são os regimes próprios de previdência dos servidores públicos. Esses vêm sendo lentamente reformados desde os anos 90. A reforma de 2003, no primeiro ano do petismo, e a reforma da Previdência de 2019 foram dois passos na direção correta. Há muito a ser feito, mas me parece que, quando Oliveira afirma a necessidade de a Faria Lima entender o tema da desigualdade, não é aos privilégios dos servidores públicos que ele se refere.

Oliveira se refere à baixa progressividade dos impostos no Brasil. Há toda uma agenda de tributar lucros e dividendos, aumentar o imposto sobre a herança e tributar anualmente a riqueza. Essa não é uma agenda estranha à coluna. Discutimos o tema neste espaço em novembro de 2015.

Tivemos uma longa hegemonia socialdemocrata no Brasil. Foram seis vitórias eleitorais seguidas. A baixa progressividade tributária não foi tratada nesse período. E não foi por veto da Faria Lima. A soma de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) com a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para o setor financeiro já é de 40%, 6 pontos percentuais acima dos demais setores. Os executivos em sua grande maioria já trabalham no regime da CLT. Pagam, portanto, 27,5% de alíquota do IRPF além de 20% de contribuição patronal para a previdência, cujo benefício é restrito ao teto da previdência. Não há nenhum sinal de que seja um setor subtributado. É sempre possível tornar a tabela do IRPF mais progressiva e, consequentemente, tributar mais pesadamente os salários elevados.

No entanto, as grandes distorções tributárias estão nos regimes tributários especiais, principalmente Simples e Lucro Presumido, e nas inúmeras desonerações, incluindo diversas possiblidades para que pessoas não paguem Imposto de Renda, entre tantas outras.

Ou seja, contrariamente ao que transparece, a baixa progressividade dos impostos é fruto de um equilíbrio político muito forte que envolve praticamente todo o Congresso Nacional. Basta lembrar que os projetos de lei que elevam o limite de enquadramento para o regime do Simples são aprovados no Congresso Nacional por ampla maioria, e, recentemente, esse regime especial foi constitucionalizado como um programa que não participará dos esforços de redução de subsídios.

Assim, a ideia de que a agenda da progressividade dos impostos é bloqueada pela Faria Lima não tem nenhuma base factual. A Faria Lima tem poder político ínfimo e o fim do financiamento empresarial das campanhas eleitorais reduziu a importância das empresas na política.

Adicionalmente, essa agenda serve como álibi para que os petistas não encarem um dos principais motivos do esgotamento econômico do longo ciclo do partido no poder.

O ciclo socialdemocrata envolveu a implantação do que a coluna, há mais dez anos, chama de “o contrato social da redemocratização”, isto é, o desejo de construir por aqui versão tropicalizada do estado de bem-estar social padrão europeu continental. Uma série de ações: política de valorização do salário mínimo, reforma agrária, SUS, Benefício de Prestação Continuada (BPC), aposentadoria rural, universalização do ensino fundamental, Bolsa-Família, Prouni, FIES e tantas outras iniciativas fazem parte desse programa.

Esse projeto é da sociedade e foi implantado em todos os governos após a estabilização da economia. O que diferenciou o governo petista foi a deriva nacional-desenvolvimentista observada a partir de 2006, com a troca de guarda no ministério da Fazenda, na qual saiu Antônio Palocci e assumiu Guido Mantega.

O intervencionismo se caracterizou por colocar o Estado à frente do processo de alocação da poupança do país. Uma série de programas de investimento foram iniciados – toda a cadeia de óleo e gás, indústria naval, grande incentivo à indústria automobilística, entre tantos outros – e maturaram muito mal. Essas iniciativas tinham o pressuposto de que o caixa do setor público – Tesouro, caixa das estatais e os bancos públicos, especialmente o BNDES – era ilimitado. Não faltariam recursos para manter o cronograma de investimento. Após muito gasto[2], entramos em profunda crise no 2º trimestre de 2014. Como já defendi em outras oportunidades neste espaço, a crise é fruto das inconsistências do contrato social da redemocratização, agravada pelo custo do intervencionismo. A experiência mostra que que não cabem no orçamento do setor público ambos, o contrato social da redemocratização e o intervencionismo.

Voltando a Lula, há a interpretação que ele é pragmático e que a deriva intervencionista foi uma tentativa de sustentar o crescimento econômico em seguida à crise de 2008. Que teria havido aprendizado e que um novo governo petista não embarcaria novamente em tal aventura. Não foi isso que se depreende da fala de Lula ao longo da campanha eleitoral. Não fez nenhuma crítica ao intervencionismo, defendeu muito a indústria e sugeriu que o único responsável pela crise foi o PSDB, o partido que perdeu quatro eleições seguidas. Lula usou e abusou do discurso “a culpa foi do Aécio!”.

Não está claro com que roupa o PT irá para o samba.

Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de novembro de 2022.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[2] Somente os aportes do Tesouro Nacional para o BNDES foram por volta de R$400 bilhões. Segundo meu colega Mansueto Almeida, o impacto disso na dívida bruta – emissões e juros da dívida dos bancos públicos junto ao Tesouro – foi maior. No final de 2007, o total de empréstimos do Tesouro Nacional para todos os bancos públicos no Brasil era de apenas R$ 14,1 bilhões, ou 0,5% do PIB. No final de 2014, esse valor havia crescido para R$ 545,6 bilhões, equivalente a 9,4% do PIB, um crescimento de quase nove pontos do PIB, tendo como fonte um forte aumento da dívida pública bruta.

Comentários

fernando
O modelo de contrato social a que se refere não inclui partidos políticos porque não temos. Essa abundância de Lulas é um exemplo - o que existe é Lulismo (a última tentativa de partido foi o PSDB). O país é muito grande e heterogêneo, a cultura tolerante à corrupção , o estado muito grande....o que dificulta a formação de partidos. O resultado é o comando de inúmeros grupos de pressão( o que nos impede de cair num abismo como alguns vizinhos ,mas estamos sempre próximos).

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.