Nova era do saneamento à vista (apesar dos percalços)
O dia 30 de setembro de 2020 é um dia histórico para o setor de saneamento brasileiro. Nesta data foi realizado o primeiro leilão de uma modelagem de concessão dos serviços de saneamento feita pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) – a da Região Metropolitana de Maceió/AL (RMM). Pelo que parece, foi um sucesso. A expectativa é que este tenha sido o primeiro de muitos leilões de saneamento que estão por vir. Por este motivo, cabe um olhar atento ao que ele pode nos mostrar e os percalços que os próximos poderão enfrentar.
O leilão concedeu a prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário das áreas urbanas dos 13 municípios pertencentes à RMM, bem como de todos seus povoados. A nova concessão é viabilizada em conjunto com outras duas parcerias público privadas, já vigentes quando da abertura desta licitação (uma PPP Patrocinada e uma locação de ativos, ambas referentes a sistemas de esgotamento sanitário de Maceió). Isto demonstra a relevante preocupação com a segurança jurídica dos contratos vigentes e a viabilidade de novas concessões mesmo quando já há participação privada de alguma forma na área objeto do contrato.
Com relação aos investimentos, nos 35 anos de vigência do contrato, a licitante vencedora deverá aplicar recursos da ordem de R$ 2,6 bilhões para cumprir com as metas contratuais: universalização do serviço de abastecimento de água até o sexto ano da concessão, e atingimento de 90% de atendimento dos serviços de esgotamento sanitário (coleta e tratamento) até o 11º ano de concessão nas áreas urbanas e 80% até o 16º nos povoados. Os investimentos previstos representam 13 vezes o valor daqueles realizados pelos prestadores anteriores na área de concessão desde 2007.[1]
O leilão, que teve como vencedora a BRK Ambiental (da gestora de ativos canadense Brookfield), chamou a atenção do mercado pelo fato de ter recebido sete ofertas com ágios superiores a 1.000%, sendo os quatro maiores lances superiores a R$ 1 bilhão (Tabela 1). Além disso, foi possível identificar o apetite de empresas que não atuam no setor de saneamento, mostrando que há interesse de diferentes investidores. Destaca-se também a participação da SABESP, companhia estadual de saneamento de São Paulo, em um consórcio licitante, mostrando a competitividade da empresa e seu desejo de atuar para além do estado.
Tabela 1: Ofertas no leilão da prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da Região Metropolitana de Maceió/AL
Licitante/Ofertante |
Histórico do (grupo) licitante |
Valor de outorga (lance) |
Ágio |
---|---|---|---|
BRK Ambiental |
Possui experiência no setor de saneamento, atuando em mais de 100 municípios brasileiros, distribuídos em 12 estados, beneficiando aproximadamente 10 milhões de pessoas. |
R$2,01 bilhões |
13.183% |
Consórcio Jangada, formado pela Iguá Ambiental e Sabesp |
Ambas empresas possuem experiência no setor de saneamento nacional. A Iguá atua em 37 municípios, distribuídos em 5 estados, beneficiando cerca de 7 milhões de pessoas. A Sabesp, por sua vez, atende a 369 municípios do Estado de São Paulo, beneficiando cerca de 27 milhões de pessoas – é a maior empresa de saneamento do país. |
R$ 1,48 bilhões |
9.675% |
Consórcio EQS, formado por Equatorial e SAM Sonel |
O Grupo Equatorial não possui tradição no setor de saneamento, tendo forte atuação no setor elétrico brasileiro. No segmento de distribuição de energia, atua em 687 municípios, distribuídos em 4 estados, beneficiando cerca de 7 milhões de pessoas. A SONEL Engenharia tem sua expertise voltada para a execução de obras, não se tendo identificado nenhuma concessão vinculada à empresa. Esta vendeu sua participação na concessão Serra Ambiental (ES), em 2016, à AEGEA. |
R$ 1,29 bilhão |
8.429% |
AEGEA |
Possui experiência no setor de saneamento brasileiro. Atua em 49 municípios, distribuídos em 13 estados e atende a mais de 7,6 milhões de pessoas. |
R$ 1,21 bilhão |
7.904% |
Consórcio Águas do Pratagy, formado pelo Grupo Águas do Brasil (SAAB) e a VINCI |
O Grupo Águas do Brasil possui experiência no setor de saneamento. O Grupo atua em 14 municípios, distribuídos em 3 estados, beneficiando mais de 4 milhões de pessoas. A VINCI Partners, por sua vez, acumula sólida experiência na gestão de ativos e empresas de infraestrutura. |
R$ 667 milhões |
4.309% |
Consórcio Paraíso das Águas, formado por AVIVA Ambiental, Enops Engenharia, CYMI Construções e Cobra Brasil |
AVIVA Ambiental atua em dois municípios no interior do estado de São Paulo – Mirassol e Palestina – e no município de Jacundá no estado do Pará, beneficiando cerca de 100 mil pessoas. A Enops Engenharia é uma empresa especializada no emprego de recursos tecnológicos para o combate a perda de água nos sistemas de saneamento. Atua em todo o país em parceria com diversos prestadores de serviços (públicos e privados). |
R$ 450 milhões |
2.875% |
Águas de Alagoas, formado por Conasa, Zetta e Ello |
O Grupo Conasa Infraestrutura tem atuação consolidada na execução de obras de saneamento, além de outros segmentos como rodovias e energia. Possui uma concessão no estado de Santa Catarina – Águas de Itapema – em que presta os serviços de saneamento para 60 mil pessoas. Já a Ello Serviços, Obras e Participações atua no município de Jacundá/PA juntamente com a empresa AVIVA Ambiental, onde beneficia cerca de 30 mil pessoas. |
R$ 251 milhões |
1.562% |
O elevado valor de outorga comparado com a projeção do BNDES (R$ 15,1 milhões) merece uma análise mais acurada. Do ponto de vista econômico, há o receio de um valor de outorga muito elevado refletir a capacidade de negociação do vencedor e não necessariamente a sua eficiência. Esse tipo de comportamento em contratos de concessão, conhecido como “winner’s curse”, geralmente ocorre quando o vencedor ganha ao oferecer um lance que não consegue bancar, mas possui grande capacidade negocial e de influência no regulador do serviço, o que levaria a uma expectativa de renegociação contratual após poucos anos de contrato. Outros fatores, talvez mais plausíveis para o caso, podem explicar os elevados lances ofertados: uma projeção de demanda subestimada ou uma projeção de custos sobrestimada por parte do BNDES, que podem ter levado a valores de outorga estimados bastante inferiores. Além disso, uma análise de risco muito conservadora por parte do BNDES pode ter levado a uma taxa de desconto elevada, o que resultaria em um baixo valor mínimo para a realização do leilão. Pela elevada discrepância entre os valores ofertados e o lance mínimo definido para o leilão é possível que alguma combinação desses fatores esteja presente.
O mais provável é que não seja uma situação de “winner’s curse”, uma vez que os quatro maiores lances superaram a casa do bilhão e foram dados por empresas com experiência no setor de infraestrutura, em especial no saneamento. Ademais, a BRK Ambiental é a maior operadora privada de serviços de saneamento no Brasil, com alguns exemplos promissores, tais como a concessão de Limeira/SP, que, com um contrato firmada há 25 anos, posiciona-se como a primeira concessão privada no ranking do saneamento do Instituto Trata Brasil[2] e a concessão de Uruguaiana/RS, que registrou avanço bastante superior às demais cidades gaúchas na coleta e tratamento de esgotos[3]. Isso leva a crer que a concessionária consegue executar o serviço com qualidade e a custos competitivos. De qualquer modo, cabe atenção da agência reguladora deste contrato para garantir que não seja um caso de “winner’s curse”. O novo marco legal do setor (Lei n° 14.026/2020) potencialmente contribuirá com isso, ao delegar a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência de supervisora regulatória e edição de normas de referência, inclusive sobre governança regulatória – que promove maior enforcement para atuação da reguladora.
Importante destacar que este primeiro leilão teve sua governança “facilitada”, uma vez que se tratava da concessão dos serviços nos municípios constituintes da Região Metropolitana da capital do estado (RMM). Com isso, não houve a necessidade de aprovação da licitação por cada um dos municípios individualmente, e sim pelo órgão de governança interfederativa da RMM - Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Maceió, criado de acordo com o Estatuto da Metrópole (Lei n° 13.089/2015). Arranjos de governança interfederativa estáveis, para além das regiões metropolitanas, são imprescindíveis para a celeridade e segurança jurídica dos processos de concessão de prestação regionalizada (conjunto de municípios). De fato, este é um dos maiores desafios para viabilizar a onda de investimentos esperada no setor de saneamento. Tão desafiador quanto é a aceitação por parte dos executivos municipais que os órgãos de governança, em especial em regiões metropolitanas, têm competência para deliberar sobre o planejamento, gestão e execução das funções públicas de interesse comum – saneamento sendo uma delas. Um exemplo desta dificuldade é o caso do Rio de Janeiro/RJ.
Na contramão desta tendência nacional e da política federal com vistas a atração de capital privado em infraestruturas essenciais, como a do saneamento, a prefeitura do Rio de Janeiro, liderada pelo atual prefeito Marcelo Crivella, parece tentar frustrar qualquer expectativa de avanço na área. A CEDAE, também modelada para uma possível privatização pelo BNDES, tem o seu processo competitivo ameaçado, uma vez que a prefeitura da capital do estado (responsável por 85% da arrecadação da empresa) é contra acordo decidido no âmbito do Instituto Rio Metrópole, estrutura de governança da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o qual aprovou a modelagem feita pelo banco. A má prestação do serviço na cidade não parece incomodar o prefeito, que, recentemente tomou na justiça a concessão da Linha Amarela com promessas de serviço de qualidade sem necessidade de pedágio. Este incidente, ratificado de forma monocrática pelo novo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pode criar um perigoso precedente, com implicações em mais risco regulatório e menos investimentos em todos os setores de infraestrutura. Na visão da prefeitura do Rio de Janeiro, esta "encampação" pode ser realizada sem nenhum tipo de indenização aos investidores, uma vez que os "altos preços dos pedágios" já teriam cumprido este papel – trata-se de ponto de vista sem amparo na lógica e na teoria econômica, e que já prejudicou muito o país em termos de atração de investimentos privados, ainda mais necessários dentro de um ambiente de Finanças Públicas deterioradas em todos os níveis.
Por fim, apesar de alguns percalços localizados, como o mencionado na cidade do Rio de Janeiro, a perspectiva de novos investimentos em saneamento básico no Brasil serve de alento para investidores e, principalmente, para a população que se beneficiará dos serviços. Há expectativa que o leilão da Companhia de Saneamento de Alagoas (CASAL) seja apenas o início, dada as grandes possibilidades de concessões a serem realizadas em outras regiões do país. Atualmente, empresas privadas prestam os serviços de água e esgoto para apenas 7% da população brasileira atendida, trazendo grandes possibilidades de investimentos ainda por vir. Além disso, espera-se que essa onda de investimentos se espalhe para outros setores da economia, uma vez que fiquem claros os benefícios a todos os stakeholders, principalmente para a população.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Segundo dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), entre 2007 e 2018, foram investidos R$ 149.195.884,33 pelos prestadores anteriores (Companhia de Saneamento de Alagoas e/ou o serviços autônomos municipais) nos 13 municípios pertencentes à RMM (SNIS, 2020).
[2] Instituto Trata Brasil (2020). Ranking do Saneamento 2020 – 100 maiores cidades brasileiras.
[3] ABCON - Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (2020). Panorama da participação privada no saneamento 2020.
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