Macroeconomia

O que ficou no caminho durante a discussão do PL do Saneamento no Senado?

5 jul 2019

Não resta dúvida de que a principal fronteira a ser alcançada no setor de infraestrutura é o saneamento básico. Atualmente, cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso ao serviço de água, enquanto mais de 100 milhões não estão conectados à rede coletora de esgotos (SNIS, 2017). Esse quadro é agravado quando os números relativos ao tratamento de esgotos são analisados em maior detalhe.

De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2007, ano da promulgação da Lei do Saneamento (Lei 11.445/2007), 37% do volume de esgotos recebia tratamento. Já em 2017, uma década depois, esse índice correspondia a 53%. Levando em consideração a meta de universalização em 2033, almejada pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), a evolução desse indicador é lenta. Se esse ritmo de crescimento no tratamento – 1,6% ao ano – se mantiver, o tratamento de esgotos será universalizado apenas em 2047, ou seja, 14 anos depois do planejado.

Analisando os investimentos realizados no setor, que têm origem majoritariamente pública, constata-se que, em todos os anos, eles se mostraram aquém dos R$ 25 bilhões anuais necessários para se atingir a universalização em 2033 (Plansab, 2019). Mesmo com o aumento do volume de investimentos a partir de 2007, com a implementação do PAC, o histórico disponível aponta que o maior volume registrado foi de R$ 15 bilhões no ano de 2014, ainda bem abaixo do necessário (Figura 1).

Figura 1. Investimentos realizados em abastecimento de água e
esgotamento sanitário em bilhões de R$ por ano.

Fonte: SNIS e Plansab. Elaboração: FGV CERI. Valores em R$ de fevereiro/2019, ajustados pelo IPCA.

Ainda que as evidências apontem a necessidade de maior investimento, aumentar a eficiência do montante investido passa a ser uma estratégia complementar e fundamental para o alcance do objetivo de universalização. Sob o ponto de vista econômico, a eficiência pode ser promovida por meio da competição pelo mercado, o que passa pela derrubada das barreiras à entrada de parceiros privados no setor de saneamento.

Além da insegurança jurídica e dos riscos inerentes ao setor, a atual arquitetura do saneamento cria um impedimento à participação privada ao permitir que o município delegue a prestação dos seus serviços às Companhias Estaduais de Saneamento (CESBs), por meio de contratos de programa que não exigem licitação prévia.

Nesse cenário, desde meados de 2018 é discutida uma reforma no marco legal setorial, através da publicação das medidas provisórias (MPs) 844 e, posteriormente, 868. Ambas tinham como finalidade endereçar os entraves existentes ao desenvolvimento do saneamento. As duas MPs perderam validade por não terem sido votadas em tempo hábil.

Apesar das duas tentativas frustradas de reformulação do marco legal, essa matéria permanece em discussão através do Projeto de Lei (PL) 3.261/19, de autoria do senador Tasso Jereissati, relator da MP 868/18. O PL já foi aprovado no Senado e encaminhado à Câmara. No entanto, o texto do PL aprovado parece criar espaço para a preservação do status quo, devido aos pontos destacados a seguir.

Possibilidade de prorrogação dos contratos de programa

De acordo com o texto aprovado no Senado e encaminhado à Câmara, os contratos de programa existentes na data de publicação da lei “poderão ser convertidos em contratos de concessão, bem como poderão ter seus prazos prorrogados, por uma única vez, a fim de garantir a amortização dos investimentos necessários à universalização dos serviços contratados, mediante acordo entre as partes”.

Não está claro como será realizada a conversão dos contratos de programa em contratos de concessão, uma vez que são instrumentos com características distintas. Além disso, vale lembrar que muitos dos contratos de programa existentes não possuem metas (bem) definidas, nem medidas de avaliação ou penalidades pelo não cumprimento.

Assim, não constam estabelecidos os incentivos para que os prestadores persigam ganhos de eficiência. Sem regras claras nos contratos sobre metas e penalidades por descumprimento, o poder concedente não está investido do respaldo legal para retirar o prestador que demonstrar ineficiência na operação.

Regularização da prestação do serviço por meio de contrato de programa 

Os casos de prestação irregular existentes na data de publicação da lei, ou seja, aqueles em que as CESBs prestam o serviço, mas não possuem contratos firmados com o titular dos serviços, poderão ser reconhecidos (regularizados) como contratos de programa e formalizadas em até cinco anos. Esses contratos terão como prazo máximo aquele suficiente para garantir a amortização dos investimentos vinculados à universalização dos serviços, sendo o prazo limitado a 30 anos.

O tema da prestação dos serviços carece de tratamento. De acordo com o SNIS, em 2017, uma parcela de 27% dos municípios atendidos por CESBs encontravam-se em situação irregular: em 22% a delegação estava vencida e em 5% não havia instrumento formalizado de delegação (Figura 2). Caso não seja estabelecida uma regra de transição, os municípios em situação irregular devem contratar o serviço de forma imediata através de procedimento licitatório, o que pode comprometer o atendimento de forma contínua à população, bem como o valor das CESBs.

Figura 2. Municípios com situação irregular por estado.
Fonte: SNIS, 2017. Não há dados para o estado do MT. Elaboração: FGV CERI.

O texto do artigo do PL 3.261/19 permite, no limite, que as CESBs continuem prestando o serviço por mais 35 anos. Para a formalização dos contratos de programa, deveria ocorrer previamente uma avaliação de desempenho da prestação do serviço realizada até o momento. A regularização de contratos não deve servir para a consolidação de prestações ineficientes. Ademais, todo novo contrato deveria prever metas, formas de mensuração e penalidades.

Vale destacar que o texto da relatoria da MP 868/18, que serviu de inspiração para o PL, estabelecia que os contratos de programa firmados para fins de regularização da prestação do serviço seriam válidos por no máximo cinco anos contados a partir da data de publicação da MP, ou seja, prazo máximo bastante inferior aos 30 anos agora permitidos.  Além disso, definia que as cláusulas seriam limitadas a descrever as condições de prestação do serviço e a identificar os investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados.

Assim, ainda que o texto da MP 868/18 estipulasse melhor o conteúdo dos contratos de programa firmados para regularização, de forma excepcional à regra geral de licitação, ele não delimitava o prazo para regularização. Nesse quesito, vale destacar que a definição clara das regras de transição, bem como dos objetivos que se espera alcançar, é ponto chave para uma reforma exitosa.

O debate sobre as possibilidades de avanço no marco regulatório do saneamento continua a despeito de todos os percalços; entretanto, o atual PL aprovado no Senado deixa uma lacuna importante ao não pavimentar condições para a entrada de capitais privados. A retomada da discussão na Câmara é uma oportunidade para reverter esse quadro e resgatar condições mais isonômicas de tratamento dos prestadores públicos e privados, garantindo assim eficiência e celeridade essencial para atingir o objetivo de universalização dos serviços no prazo estipulado.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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