O risco de leniência
Taxa de sacrifício da desinflação nos EUA tem sido relativamente branda, mas ainda há muita incerteza. No Brasil, com choque desinflacionário externo e interno, recuo da inflação tem sido bem mais pronunciado do que o projetado.
Na análise de conjuntura, a virada de ano é sempre uma oportunidade para revermos o que ocorreu naquele que se encerra e alinharmos expectativas para o que vai começar.
Olhando para trás, vemos que, após um período pós-eleição bem conturbado, o desempenho da economia em 2023 foi marcado por algumas surpresas positivas.
Com relação ao cenário internacional, havia grande preocupação com a elevada inflação global, temor de um longo ciclo de alta de juros pelo Fed e outros BCs e receio de recessão nos EUA, gerando riscos financeiros expressivos, num contexto de endividamento, público e privado, em especial das empresas, muito elevado. A quebra do Silicon Valley Bank e de outras instituições, no primeiro semestre, parecia referendar essas preocupações. Porém, após várias idas e vindas, o cenário mudou, para melhor, e, ao final de ano, a taxa de sacrifício para o combate à inflação tem se mostrado relativamente branda.
Isso não quer dizer, necessariamente, que a batalha contra a inflação já esteja vencida, mesmo que o início da flexibilização monetária nos EUA se dê no primeiro semestre de 2024, como se espera. Em especial, sem redução contínua e significativa nas medidas de núcleo de inflação, o total de cortes em 2024 pode ficar bem aquém do que hoje precifica o mercado. E as variações nos núcleos de inflação continuam elevadas e resilientes: em novembro, o núcleo da inflação ao consumidor dos EUA subiu 0,28%, ficando estável em 4,0% no acumulado de 12 meses. Já o índice cheio atingiu 0,10%, recuando para 3,1% em termos anuais, ante 3,2% em outubro. Assim, o início e a intensidade da queda de juros nos EUA estão muito incertos, conforme destacado na seção sobre a Economia Internacional.
Também em relação ao cenário econômico doméstico, o nível de incertezas se reduziu ao longo do ano, após as muitas ameaças de retrocesso em avanços de políticas econômicas implementados em governos anteriores. Sem dúvida, o novo arcabouço fiscal, apesar de não convencer os analistas quanto à volta dos superávits primários, mitigou os riscos de um descontrole mais significativo das contas públicas, principalmente após a PEC da transição, que aumentou os gastos públicos em mais de R$ 160 bilhões.
Concomitantemente, fomos beneficiados pelo extraordinário desempenho da agropecuária, além de um expressivo aumento na produção de petróleo bruto, derivados de petróleo, gás e biodiesel. O grande destaque do ano na atividade econômica são os setores relacionados às commodities agrícolas e energéticas. Somando a participação no PIB do setor do agronegócio e do setor extrativo, chegaremos a algo em torno de um terço de nossa economia. Em relação à inflação ao consumidor, por seu turno, destacam-se os alimentos no domicílio, com queda de 1,14% nos 12 meses até novembro.
Com um choque desinflacionário externo e doméstico, o recuo da inflação tem sido bem mais pronunciado do que se chegou a projetar. A notícia mais favorável foi a retração das medidas de núcleo de inflação, com destaque para a inflação de serviços subjacentes. Esse foi um dos fatores que impulsionou o consumo das famílias, que, avaliamos, tem crescido em torno 1% (TsT), em média, por trimestre, desde meados de 2021, impulsionado também por aumento de transferências de renda, alta real do salário mínimo e desempenho do mercado de trabalho melhor que o projetado. Como nos EUA, também por aqui a taxa de sacrifício no combate à inflação tem sido bem mais branda do que se temia.
E, nesse contexto, também o comportamento da taxa de câmbio foi melhor do que seria o esperado, contribuindo ainda mais para a desinflação de tradables no Brasil. Por fim, a manutenção da meta de inflação em 3% pelo Conselho Monetário Nacional e a perseverança do Banco Central reduziram os riscos inflacionários, o que permitiu o início da flexibilização monetária.
Com isso, o crescimento do PIB deste ano deve ficar próximo ao de 2022, após revisões na série histórica. Porém, as expansões observadas nos dois anos possuem características muitos diferentes, distinções que ajudam a pensar sobre o que esperar para 2024.
Em 2022, a alta de 3,0% no PIB foi puxada quase que integralmente pelas atividades mais cíclicas, que contribuíram com 2,8 p.p. desse crescimento. As atividades mais exógenas à política monetária, como agropecuária, extrativa e os serviços públicos[1], deram uma contribuição irrisória para a atividade. Este ano foi completamente diferente, pois esse segundo grupo de atividades deve contribuir com 1,6 p.p. do crescimento esperado de 2,9%.
Para o próximo ano, projetamos expansão mais moderada do PIB. Primeiro, pois estimamos um carregamento estatístico para 2024 de apenas 0,3%, contra 0,9% este ano. A razão é que projetamos estabilidade do PIB neste quarto trimestre, em relação ao terceiro. Segundo, os efeitos do aperto monetário, apesar de se mostrarem bem mais moderados do que o esperado, estão presentes e devem perdurar até meados do ano que vem. Com isso, haverá espaço limitado para a expansão das atividades cíclicas. E, por fim, estimamos forte queda da contribuição das atividades exógenas à política monetária, com destaque para a agricultura. Prevemos contribuição de apenas 0,5 p.p. dessas atividades para a alta do PIB de 2024, contra 1,6 p.p. em 2023.
A agropecuária, em especial, após registrar crescimento recorde este ano, de quase 16%, deve ter contração de 1,6% em 2024, contribuindo negativamente para o crescimento do PIB, comparado a cerca de 1,0 p.p positivo deste ano. Em particular, diante do clima desfavorável, é esperado um moderado recuo da produção da soja e uma forte queda na produção do milho. Isso não apenas terá efeitos negativos na atividade, mas também pressionará a inflação de alimentos, o que reduzirá o poder de compra das famílias, especialmente as de mais baixa renda.
Enfim, tudo indica um ano com choque de oferta negativo, ao contrário de 2023. Consequentemente, esperamos crescimento do PIB de 1,4% em 2024.
Além dos riscos climáticos, há também muita incerteza sobre se o governo vai aceitar uma desaceleração da economia em um ano de eleição municipal – eleição que, segundo as análises, pode influir bastante naquelas para presidente e o congresso em 2026. Entre os principais objetivos de uma regra fiscal, como o arcabouço, inclui-se gerar condições para a estabilização da dívida pública, melhorar a qualidade do gasto público e produzir uma política fiscal anticíclica. Porém, com toda a pressão política que estará presente em 2024, em um quadro de acirrada disputa entre a esquerda, no controle do Executivo, e o Centrão, no do Legislativo, não há certeza que essas preocupações prevalecerão e que as escolhas do governo irão na direção de respeitar e fortalecer o arcabouço fiscal.
Consequentemente, é difícil mensurar qual será a taxa de juros terminal do atual ciclo de queda. Mesmo com um cenário externo mais favorável, ela dependerá também da política fiscal. Diante do cenário mais favorável no curto prazo, o risco é o mercado e o governo agirem de forma leniente e perdermos uma oportunidade de assegurar a sustentabilidade fiscal.
Este é o Sumário do Boletim Macro Ibre de Dezembro de 2023.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Incluímos as atividades imobiliárias neste grupo, pois o valor adicionado depende, em grande medida, do aluguel imputado. A metodologia de cálculo gera uma elevada persistência no resultado final.
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