Fiscal

Pagamento atípico dos precatórios: aspectos técnicos, impulso fiscal e efeitos sobre as metas

25 jan 2024

Ainda que meritório, pagamento atípico de precatórios terá efeitos assimétricos nas regras fiscais vigentes, nublando acompanhamento da execução fiscal no curto prazo. Excepcionalidades não são positivas para perspectiva fiscal.

No início do último mês de dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o teto para o pagamento de precatórios[1], estabelecido em 2021, no contexto da pandemia, através das Emendas Constitucionais 113/2021 e 114/2021. A medida passava a limitar o crescimento anual das despesas decorrentes de sentenças judiciais à regra de correção do teto dos gastos da Emenda Constitucional 95/2016. Gastos que ultrapassassem esse limite seriam postergados, abrindo espaço para que outras despesas sujeitas ao teto dos gastos pudessem ser executadas.

Mesmo que muitos tenham evitado usar o termo, a manobra constitui uma moratória com prazo de validade. A limitação para os dispêndios anuais com os precatórios perduraria até 2026, deixando grandes indefinições quanto ao pagamento dos montantes devidos – a conta seria paga, mas somente pelo presidente seguinte (supondo, aqui, a reeleição do ex-presidente Bolsonaro para o termo 2023-2026). As estimativas variam, mas a conta seria bilionária[2], colocando a gestão fiscal, a partir de 2027, sob intensa pressão[3].

A decisão do STF desmontou esse imbróglio, parcelando as despesas entre 2023 e 2026. O Executivo propôs que o STF tipificasse essas despesas como financeiras, excluindo-as, portanto, do cálculo primário. Tal demanda foi rechaçada. No entanto, o STF fez com que o pagamento dos precatórios, mesmo que configurado como despesa primária, não esteja incluído nem nas metas de primário nem nos limites de gastos estabelecidos no arcabouço fiscal em vigor.

Mais ainda, no dia 20 de dezembro de 2023, o governo antecipou o pagamento das parcelas referentes a 2024, resultando em pagamento único para o biênio 2023-2024, através da Medida Provisória (MP) 1.200/2023. O montante total aprovado foi de R$ 93,1 bi, restando dúvida relevante sobre a velocidade de efetivo dispêndio – ou seja, se o governo teria capacidade gerencial de pagar esses valores em período tão exíguo (basicamente, na última semana do ano), ou se haveria um vazamento, como restos a pagar, para o início de 2024.

Em consulta ao Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP), com dados até o segundo decêndio de janeiro de 2024, foi possível averiguar que o governo liquidou a virtual totalidade dos valores autorizados, com dispêndios de R$ 92,4bi ao final do ano passado (tabela 1). Esse pagamento foi classificado como despesa primária obrigatória, levando o resultado primário de 2023 a um déficit de aproximadamente R$ 225bi (2,1% do PIB)[4]

Tabela 1: Despesas com precatórios da MP 1.200/2023 (R$mi, correntes)

Fonte: SIOP. Elaboração: BRCG

Os muitos aspectos técnicos detalhados acima nos ajudam a mapear alguns efeitos que a MP 1.200/2023 terá sobre o desempenho fiscal de curto prazo. Destacamos três pontos que merecem redobrada atenção.

Em primeiro lugar, haverá mais uma rodada de impulso fiscal de curto prazo, emulando, em menor medida, o ocorrido no 1º ano deste governo. O pagamento atípico de precatórios deve gerar impulso fiscal entre 0,24 e 0,28 p.p. do PIB, segundo estimativas da Secretaria de Política Econômica (SPE) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Tal impulso refere-se especialmente à parcela dos chamados precatórios alimentares (direitos detidos por pessoas físicas), e é aproximadamente 25% do impulso gerado pela Emenda Constitucional da Transição (EC 126/2022).

Em segundo lugar, a tipificação acordada para as despesas com precatórios levará a efeitos assimétricos sob as regras do arcabouço fiscal em vigor. Como exposto anteriormente, as despesas primárias com os precatórios foram removidas das metas e dos limites de despesas dentro nas novas regras fiscais. Haverá, no entanto, um efeito positivo na arrecadação, seja pela tributação dos valores pagos, seja pelos efeitos do impulso fiscal sobre o PIB nominal. Os efeitos diretos, estimados pelo governo, são de até R$ 10bi – constituindo um caso curioso, no qual o aumento da despesa reduzirá o esforço necessário para o cumprimento das metas estabelecidas nas atuais regras fiscais.

Por fim, haverá intensa erosão fiscal em 2023. Com as despesas extraordinárias com precatórios, deveremos ter o 3º pior resultado primário (% PIB) da série histórica, iniciada em 1997. A estimativa de déficit só será superada pelo ocorrido em 2016 (-2,6% do PIB, no ápice do experimento voluntarista da administração Rousseff) e em 2020 (-9,8% do PIB, no contexto da pandemia). Em termos de dinâmica da dívida pública, não importará se os gastos estão dentro ou fora das metas fiscais; ao fim do dia, excesso de despesas, em relação às receitas, colocará pressão adicional sobre o endividamento do Estado brasileiro.

Em conclusão, é importante deixar claro que a solução do imbróglio gerado em 2021 é, em si, uma iniciativa positiva: havia, de fato, uma bomba-relógio que estouraria em 2027, com risco de inviabilizar qualquer gestão minimamente organizada das contas públicas brasileiras. No entanto, a estratégia escolhida para o pagamento dos precatórios e seus impactos assimétricos sob as regras do arcabouço constituem fatores que nublam a execução fiscal de curto prazo.

Atualmente, a política fiscal é regida por uma regra incipiente, cercada de dúvidas e contestações. Se excepcionalidades como as descritas acima se tornarem rotineiras, repetiremos nossos muitos erros do passado. E, assim, será virtualmente impossível ancorar expectativas e sinalizar um compromisso com a sustentabilidade fiscal no médio prazo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Precatórios são um tipo de gasto governamental, resultante de decisões judiciais favoráveis a indivíduos ou empresas e que ainda não foram executadas.

[2] Segundo estimativas da Secretaria de Política Econômica (SPE) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), R$ 202 bi, ou 1,4% do PIB em 2027.

[3] Esse artigo foi originalmente publicado como Destaque BRCG em 18 de janeiro de 2024. Disponível em www.brcg.com.br

[4] No conceito utilizado pela Secretaria do Tesouro Nacional (acima da linha). No conceito utilizado pelo Banco Central (abaixo da linha), as receitas provenientes da utilização dos recursos não-sacados do PIS/PASEP devem ser retiradas, implicando em elevação do déficit em 0,2p.p. do PIB.

Comentários

Fábio
Essa conta absurda foi gerada a partir da decisão do STF de substituir a TR pelo ipca. O STF tomou as rédeas do País e quer decidir até a política econômica

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.