Pedaladas no Arcabouço
Os programas “Pé de Meia” e “Gás para Todos” embutem mecanismos para driblar restrições do novo arcabouço fiscal, e ministro Haddad sinaliza que o mesmo pode ocorrer com a generosa renegociação da dívida estadual em curso.
Durante o governo Dilma ficou muito proeminente o conceito das pedaladas fiscais. Em que consiste o conceito da pedalada? Havia metas de superávit primário que não podiam ser ignoradas. Assim, um sem-número de manobras contábeis com o orçamento público foram feitas de modo a ter despesas (neste conceito incluo subsídios ou reduções de receitas) que não impactassem o cálculo do superávit primário. Este é composto de receitas e despesas não financeiras da União, Estados e Municípios. A mecânica básica da pedalada era a seguinte: transformar em despesa financeira algo que é não financeiro em sua essência. Ou vice-versa, transformar uma receita financeira em uma não financeira. O melhor exemplo constitui-se nas capitalizações via dívida, que o Tesouro fez ao BNDES. Estas remuneravam o Tesouro menos que o custo da dívida pública (para simplificar, vamos supor que em média a captação do Tesouro custe Selic). Com custo de captação inferior à Selic, o BNDES poderia repassar com um spread e ainda assim acabava com recursos bem atrativos para emprestar. Obviamente, isto é equivalente a termos subsídios que deveriam ser contabilizados como despesas para equalização de juros. Mas, sendo feito desta forma, as regras (pelo menos as então vigentes) não registravam desta maneira. Para fazer um aporte, a União capta a mercado pela Selic. Isto aumenta a dívida bruta do governo, que custa Selic em média. Quando o aporte de capital é feito, aparece uma aplicação financeira no ativo da União de igual valor à dívida captada. Portanto, a dívida líquida do governo federal (e do setor público) não se altera! Assim, pela forma de cálculo do déficit/superavit primário, este permanece inalterado. A consequência desta operação é clara: a dívida líquida do setor público passa a ter um custo maior, pois o governo recebe remuneração pelo aporte menor que o custo de captação deste aporte (pois o BNDES paga ao Tesouro uma taxa inferior à Selic pelo capital, para que possa subsidiar as taxas que oferece às empresas). Em resumo, como foi dito, transformou-se um subsídio nas taxas de juros de empréstimos do BNDES, que deveria ser uma despesa não financeira, em uma despesa financeira, isto é, um custo maior que a Selic para a dívida líquida como um todo. Este custo financeiro não passa pela conta que determina o déficit primário, nem altera a dívida líquida. Eis a mágica! Só que obviamente a dívida bruta continua a crescer e o déficit nominal total também. A situação fiscal segue mais deteriorada, embora nos conceitos formais de superávit ou déficit primário e de dívida líquida, isto não esteja registrado. Uma outra forma de pedalada seria um aporte de capital para empresas públicas, que utilizariam parte destes recursos para aumentar sua distribuição de dividendos para União. Isto é, criar-se-ia uma receita da União via dividendos, através de uma elevação da dívida bruta que mantém a dívida líquida inalterada.
Uma dinâmica similar, entre contas públicas financeiras e não financeiras, está sendo observada agora. Em relação ao arcabouço fiscal. O arcabouço fiscal tem limites de crescimento de despesas ligados à receita e, também, metas de déficit/superávit primário. Desta maneira, estão sendo feitas várias medidas que não impactam ou a definição de déficit primário, ou a receita líquida, mas que têm impacto na dívida bruta e no déficit total. São as pedaladas no arcabouço. Vamos mostrar aqui três exemplos disto, todos com a aprovação explícita do Ministério da Fazenda.
Primeiro, o programa “pé de meia” (Lei 14818 de 16/1/2024). Esta lei cria um fundo de até R$ 20 bilhões com recursos de superávits e sobras de outros fundos (Fundo Social, FGO e FGEDUC). Ou seja, não há despesa do Tesouro, pois este novo fundo será diretamente administrado pela CEF. Uma alternativa que permitiria fazer de forma a contabilizar pelo arcabouço seria: os fundos mencionados repassam os superávits e sobras para a União. Aí haveria um registro de acréscimo na receita líquida. A partir daí é feito o repasse da União para a CEF executar o programa. Ocorre que a despesa está limitada a 70% da receita adicional. O que quer dizer que somente 70% do que foi recebido destes excedentes poderiam ser gastos no programa pé-de-meia, ou que outros gastos teriam que ser cortados para que o programa fosse cumprido em sua integralidade. E aí o arcabouço estaria funcionando plenamente – limitando as despesas a um percentual máximo 70% do crescimento das receitas. Um dos primeiros a notar este fato foi Mansueto Almeida (entrevista ao Globo 7/9/2024). Eu observo que esta lei foi assinada pelo presidente Lula e outros ministros, dentre eles Fernando Haddad.
Segundo, o projeto de lei “gás para todos”, PL3335/2024 enviado à Cãmara dos Deputados em 26 de agosto deste ano. Este projeto aumenta recursos para o auxílio-gás de cerca de R$ 3,5 bilhões, em 2024, para R$ 15 bilhões no ano de 2026. A receita para estes recursos futuros virá diretamente do pré-sal para a CEF administrar, numa sistemática muito parecida com a descrita acima no programa pé de meia. Um agravante é que hoje as despesas do auxílio-gás fazem parte das despesas primárias. No futuro, a totalidade destas será transformada em receita diretamente ligada a fundos que não passam pelo conceito de receita líquida, ou seja, além de driblar o arcabouço, esta proposta teria como efeito abrir mais espaço para gastos dentro do arcabouço ano que vem. Isto ficou muito evidente na apresentação do PLOA deste ano, e acabou levando autoridades do Ministério da Fazenda a dizer que irão reformular o PL. Mais uma vez, o projeto de lei foi assinado pelos ministros Alexandre Silveira e Fernando Haddad, portanto, com a anuência do Ministério da Fazenda.
Terceiro, estamos vendo uma movimentação para aprovação de uma grande renegociação de dívida para os Estados. Eu já alertei sobre a importância do impacto fiscal desta medida, na coluna para o Broadcast de julho deste ano. Recentemente, Luiz Schymura, do FGV IBRE, em excelente coluna de 3/9/2024 no Valor Econômico, comentou especificamente sobre os efeitos deletérios desta negociação federativa caríssima. Em contas mais cuidadosas que as minhas, Manoel Pires, também do FGV IBRE, estima que a forma final da proposta do PLP121/2024, que foi aprovado no Senado e está agora tramitando na Câmara dos Deputados, terá custo de R$ 48 bilhões por ano, sendo que na transição um valor ainda mais expressivo. No primeiro ano estima R$ 62 bilhões! Mas qual é a relação disto com o arcabouço? Aqui chama a atenção as declarações públicas que têm sido dadas. Em particular, em entrevista ao “Em Ponto” da Globonews, no dia 4 de setembro pela manhã, o ministro Fernando Haddad afirmou que esta renegociação será feita de forma a não impactar o primário. Ou seja, de novo evitar que o registro de uma enorme (enorme!) despesa fiscal passe pelo primário. O efeito desta medida será o mesmo das pedaladas da Dilma: dívida bruta cresce, déficit nominal maior e dívida líquida que não se altera, mas cujo custo aumenta. Mais uma pedalada no arcabouço, desta vez no déficit primário.
Há muito mais medidas que podem ser classificadas como um drible ao arcabouço, seja direta ou indiretamente. Marcos Mendes, em artigo na Folha de São Paulo, lista muitas delas (“Manobras contábeis deterioram a credibilidade”, 6/9/2024). O PLOA deixou claro o processo de solapamento sistemático do arcabouço fiscal. É hora de uma reflexão. O governo Lula está preparado para os efeitos práticos destas pedaladas, isto é, a completa perda de credibilidade no arcabouço e no possível equilíbrio das contas públicas? Seria muito recomendável ao Ministério da Fazenda trabalhar para readquirir a credibilidade no arcabouço imediatamente. Não só resolvendo o problema do “gás para todos”, mas também enfrentando com objetividade e realismo o problema da absurdamente cara renegociação das dívidas dos Estados. É imprescindível dar um freio de arrumação e passar a levar muito a sério o equilíbrio das contas públicas. Sem manobras, subterfúgios ou pedaladas. De outro modo, corremos o risco de ver no futuro o valor do dólar muito acima de R$5,60.
Correção: no artigo de agosto para o Broadcast eu atribuí erroneamente a Daniel Everett a autoria do livro “A Myriad of Tongues”. O livro foi escrito por seu filho, Caleb Everett. A correção já foi feita na republicação do artigo pelo Blog do IBRE.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 10/09/2024, terça-feira.
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