Macroeconomia

Réplica a Felipe Machado: elogio de Ciro ao nacional desenvolvimentismo está crivado de erro factuais

18 dez 2020

Felipe Augusto Machado, especialista em estratégias de desenvolvimento e geopolítica, comentou minha resenha ao livro de Ciro Gomes. Agradeço o comentário. Farei aqui minha resposta em três partes. Na primeira abordarei erros factuais de Machado. Na segunda discutirei o tema da educação no nacional desenvolvimentismo. E na terceira discutirei questões mais gerais associadas a divergências entre nós.

Um dos temas importantes em minha resenha crítica ao livro de Ciro foi a forma pouco cuidadosa como Ciro compara o período da República Velha (RV) com o período do nacional desenvolvimentismo (ND). Ciro tem o desejo ideológico de diminuir o máximo possível a RV e exaltar o máximo possível o período do ND.[1] Argumentei que a experiência de crescimento na RV não foi tão ruim como se imaginava. Basta olhar os dados. Machado não entendeu a conta que eu fiz. Vou explicar.

Empreguei a série do Ipeadata de PIB a R$ de 2010[2], PIB - preços de mercado (preços 2010) - R$ de 2010 (milhões)  - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Sistema de Contas Nacionais (IBGE/SCN Anual) - SCN10_PIBP10, e a série de população residente, População residente - Habitante - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Departamento de População e Indicadores Sociais. Divisão de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica (IBGE/Pop) - DEPIS_POP, também do Ipeadata. Os dados reportados no meu texto formam baseados na tabela abaixo:

Em seguida, baseando-me na aula magna de Eustáquio Reis proferida no encontro da Anpec em 2019, fiz algumas correções. O argumento é que a taxa de crescimento do período da RV está subestimada pois parte do crescimento da indústria deu-se por substituição de bens produzidos localmente e que não estão contabilizados nas contas nacionais. Ou seja, parte do crescimento da indústria substituiu a produção de pequenas oficinas. A metodologia tradicional supõe que todo o crescimento da indústria substitui importações. Baseando-me no trabalho de Eustáquio considerei que o PIB de 1919 foi 36% maior e que as taxas de crescimento entre 1920 até 1940 foram 1,6 ponto percentual menores. Os dados que originaram meus números estão na tabela abaixo:[3]

Note que em nenhum momento escondi o ótimo desempenho econômico do período do ND. Meu texto foi claríssimo: “Se nos concentrarmos no período do nacional-desenvolvimentismo, de 1929 até 1980, nosso desempenho foi bem melhor. Crescemos 3,0% (produto per capita) ao ano, sendo somente superados, na série de Maddison, por Finlândia, Portugal, Bulgária e Japão. No mesmo período, a Coreia do Sul cresceu menos. Seu grande crescimento ocorreu nas duas décadas seguintes.” E os números da segunda tabela também são claríssimos. O desempenho de crescimento do ND foi muito bom. Em nenhum momento escondo esse fato.

O que procurei argumentar é que a dicotomia ‘estagnação da RV versus rápido crescimento do ND’ estava exagerada no livro de Ciro, e que esse exagero, importante para a retórica do argumento geral de Ciro, não tem nenhuma base factual. Em suma, o desempenho econômico da RV não foi tão estagnado assim. E o desempenho econômico do ND foi um pouco menor do que se pensava. Isso não significa de forma alguma dizer que não houve um expressivo crescimento econômico no ND.

Vale lembrar que temas como a revisão das séries de produto em momentos de industrialização acelerada não são estranhos à história econômica. Os mais antigos se lembrarão das séries clássicas de Deane e Cole para o crescimento da Inglaterra ao longo do período da Revolução Industrial. Como o passar do tempo e melhores séries de dados, chegou-se à conclusão que o crescimento do Reino Unido pelas séries de Deane e Cole para o período da Revolução Industrial estava superestimado, inclusive da indústria, e, que, portanto, o PIB e o crescimento no período anterior à RI estava subestimado.[4]

No meu comentário a Ciro lembro que, no período da RV, inúmeras ferrovias foram construídas no Brasil e que os estudos sugerem que elas foram importantes para o crescimento econômico brasileiro, inclusive muito mais importantes nesse sentido do que as ferrovias o foram para o crescimento da economia dos EUA. E, adicionalmente, que parte do crescimento do período do ND deve-se a essa importante infraestrutura construída na RV. Nada do que Felipe escreveu contesta essas conclusões.

A segunda divergência refere-se ao tema da educação. Para Felipe, o gasto do Brasil com educação não foi tão inferior ao da Coreia. Considerando a média para o período 1932 até 1980, o gasto com educação no Brasil foi de 1,8% do PIB. O gasto com ensino básico – fundamental e médio – foi ainda pior: 1,4% do PIB em média. Mas além do gasto relativamente baixo, a distribuição era muito ruim. A tabela abaixo, obtida com tabulações dos dados compilados pelo meu aluno de mestrado, Paulo Maduro, apresenta o gasto público por aluno como proporção do PIB per capita para os três ciclos:

Não só se gastava pouco mas o gasto por aluno era muito maior no nível superior. Não temos dados para a RV. Esse é tema de pesquisa. Não sabemos como foi a evolução do gasto em educação no período e como que se compara com o período do ND. Não pretendi com o comentário ao livro de Ciro promover uma competição entre a RV e o período do ND. Ambos pertencem à história. Nossa função é olhar com objetividade a experiência histórica. Minha alegação foi que Ciro não olhou com objetividade a experiência histórica – construiu um texto demonizando a RV pois lhe interessa politicamente fazê-lo – e, me parece que meu olhar foi mais objetivo. Evidentemente cabe ao leitor do meu longo comentário ao texto de Ciro avaliar. Felipe achou meu olhar enviesado, pelo que entendi. Nesta resposta, tento explicar pontos que penso Felipe não entendeu corretamente.

Voltando ao tema da educação, o indicador mais claro do descaso com o tema no período do ND está no meu comentário ao livro de Ciro e, supreendentemente, Felipe não notou. Na figura 19, apresento a evolução das taxas brutas de matrículas. São baixíssimas. Vale lembrar que as taxas brutas de matrículas consideram as pessoas que frequentam a escola independentemente da idade. Constituem, portanto, uma subestimativa das taxas líquidas de matrícula, indicador mais comumente empregado para aferir a qualidade de um sistema de educação. Com taxas brutas no fundamental de 50% nos anos 50, provavelmente 7 de cada 10 crianças de 7 a 14 anos estava fora da escola. Os números são escandalosos por si.

Penso que o baixo investimento na educação no período do ND tinha um componente ideológico. Acreditava-se que a educação era consequência do crescimento econômico e não causa. Essa visão, hoje considerada totalmente errada, não era estranha naquele período dado o conhecimento que havia na época. Essa interpretação está bem descrita no texto do economista desenvolvimentista, Américo Barbosa de Oliveira, que publicou, na revista Econômica Brasileira em 1957, o artigo “Educação um investimento a longo prazo” (fascículo de dezembro de 1957, volume III, números 3 e 4 de junho e dezembro de 1957, páginas 390 até 400). Escreveu Américo:

“Vemos, pois, que as condições de instrução de um povo, como também de saúde pública são corolários do nível de vida, sendo este função do desenvolvimento econômico da coletividade (...) Embora a educação ou a saúde pública sejam fatores necessários ao desenvolvimento econômico, isso não significa que constituam a mola propulsora do processo de desenvolvimento, a ponto de justificar a absorção de recursos excessivos em prejuízo de investimentos em indústrias, transportes, maquinaria agrícola, abastecimento de energia elétrica, etc.”

Finalmente, há uma divergência de fundo entre Felipe e mim que penso ser de difícil solução. Talvez a passagem do tempo e o maior acúmulo de evidências ajude a uma solução dessas diferenças. O que eu posso fazer aqui é somente apresentar nossas divergências com a maior abertura possível e deixar para o leitor a formação de seu juízo.

Os países do Leste asiático são os exemplos que temos de sociedades que conseguiram se desenvolver e superar a armadilha da renda média. Há duas interpretações. A leitura nacional desenvolvimentista assevera que essas economias se desenvolveram pois estimularam a indústria e a construção de conglomerados empresariais que dominaram as tecnologias mais sofisticadas. Para essa visão, o crescimento do Brasil dependerá de termos os nossos keiretsus (no Japão) ou nossos chaebols (Coreia) e do protagonismo das empresas estatais, dos bancos públicos e das políticas industriais. Em certa medida a política das empresas “campeãs nacionais” praticada em passado recente tinha essa motivação. Os resultados não foram bons.

A visão mais ortodoxa (ou mais liberal) considera que o sucesso dessas economias se explica por muito trabalho, poupança e escola de qualidade. O resto é quase que consequência.

Evidentemente, a visão desenvolvimentista não nega a importância do investimento na área social mas, como bem estabelecido no texto de Américo de Oliveira, considera que a causalidade é inversa, e que o investimento social tem uma função mais vinculada a direitos básicos dos cidadãos, do que ao tema do desenvolvimento econômico. Também é verdade que a visão mais ortodoxa pode ser permeável a algum papel no planejamento do setor público e, principalmente, no subsídio a atividades de desenvolvimento tecnológico.[5] Mas certamente a ênfase não será nos conglomerados e no subsídio público ao investimento.

No meu texto, indiquei que na RV estávamos tentando um outro caminho. Era uma via mais liberal, e que tinha alguns resultados dignos de nota, com aceleração do crescimento e a capacidade de investimento em infraestrutura por meio de mecanismos de mercado.

É difícil sabermos como seria o contrafactual se tivéssemos enfrentado o período de nossa transição demográfica e de nossa urbanização – que coincide com o período do nacional desenvolvimentismo (as cinco décadas de 1930 até 1980) – com outro modelo de desenvolvimento.

Mas essa questão não é o cerne da minha crítica ao livro de Ciro. Meu ponto é que o seu panegírico ao período do nacional desenvolvimentismo, do qual faz a viga mestra de toda a sua proposta política atual, contém numerosos e profundos erros factuais.

Tampouco foi minha proposta fazer uma análise exaustiva dos méritos e deméritos do período do ND, mas sim o de mostrar que a análise de Ciro é muito falha. É necessário lembrar também que, nesse período, seria natural crescimento maior: foi o período de urbanização e da transição demográfica.

Um agravante adicional é que o período do ND, a partir do pós guerra, isto é, no período democrático, conviveu com fortíssimo e permanente desequilíbrio macroeconômico. Como argumentei no texto principal, nossa experiência histórica tem mostrado que ND e estado de bem-estar social são incompatíveis. Ambos não cabem no orçamento do Estado brasileiro.

Outra divergência que tenho com Felipe é o peso das falhas do período do ND na nossa grande estagnação que temos vivido desde os anos 80. Felipe atribui a erros de política econômica estarmos presos na armadilha da renda média desde então. Não discordo de Felipe – talvez discorde da natureza dos erros que foram cometidos. Mas, diferentemente de Felipe, penso que o atraso que acumulamos no desenvolvimento social, em especial na educação, ao longo das cinco décadas do período do ND agravaram em muito o desempenho econômico nas quatro décadas após 1980. O ND nos legou uma renda per capita maior. No prato da balança dos custos temos: uma péssima distribuição da renda; baixíssima acumulação de capital humano; uma situação de desorganização macroeconômica; deterioração dos espaços públicos em nossas grandes cidades; início do ciclo de fortíssima elevação da criminalidade.

Meu argumento é que passar por uma transição demográfica e por um processo de urbanização, ambos muito fortes, sem pesados investimentos em saúde e, principalmente, em educação nos condena à pobreza. O cidadão simples no campo, mesmo com baixa escolaridade, domina um conjunto de técnicas que permite a sua sobrevivência. Há toda uma cultura tradicional que ordena a vida dos indivíduos e das famílias. Quando esse cidadão – a população caipira (ou cabocla ou sertaneja) – migra para a cidade sem escolaridade, está muito mais despreparado. Os mecanismos de círculo vicioso da pobreza se reforçam muito mais – por exemplo, a qualidade do ambiente doméstico se deteriora – e se torna muito mais difícil o processo de escolarização de uma população pobre e deseducada nas megalópoles modernas do terceiro mundo.

Essa é a minha descrição da armadilha da renda média. Assim, minha visão é que muito do baixo crescimento que tivemos nas últimas quatro décadas foi contratado nas cinco décadas anteriores.[6] Essa é a discordância fundamental que tenho com Felipe.


[1] Ciro tem o mesmo objetivo de demonizar o governo FHC. Tratei em detalhe esse tema na minha resenha crítica.

[2] Machado afirma que eu empreguei a série do Ipeadata a US$ de 2013. Não sei que série é essa, mas certamente para avaliar o crescimento da economia brasileira em dois períodos de tempo nunca empregaria uma série com outro deflator que não fosse o deflator do PIB.

[3] Não faz muito sentido ficarmos debatendo números e contas. Como coloquei no segundo rodapé de meu texto, comentários são bem-vindos. Está lá meu e-mail: samuel.pessoa@fgv.br. Qualquer dúvida relativa a números, metodologia, ou dificuldade de encontrar alguma referência, o ideal é a pessoa enviar-me um e-mail e haver o esclarecimento. É um pouco aborrecido e custoso discutir temas comezinhos – qual foi a série de dado? Qual foi o ajuste?, etc. – em post de blogs.

[4] Veja o livro “The British Industrial Revolution, An Economic Perspective” editado por Joel Mokyr Westeview Press, 1993. Veja especialmente o 3º capítulo “Reassessing the Industrial Revolution: A Macro View” de C. Knick Harley.

[5] Para uma defesa da política industrial totalmente compatível com a corrente principal do pensamento econômico veja o capitulo 4 “Industrial Policy for the Twenty-first Century” do livro One Economics, Many Recipes de Dani Rodrik publicado pela Princeton U. P.

[6] A melhor descrição sociológica e antropológica que conheço desse processo encontra-se nos volumes de Jessé de Souza “A construção social da subcidadania, para uma sociologia política da modernidade periférica” de 2006 e “A ralé brasileira, quem é e como vive” de 2016 ambos pela editora da UFMG.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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