Mercados e Inflação

A pressão da inflação da pandemia sobre as famílias mais pobres

18 abr 2022

Neste artigo analisamos como evoluiu a inflação nos últimos dois anos para distintos níveis de renda, permitindo identificar qual parcela da sociedade está sendo mais afetada pelo processo inflacionário. Nem sempre a inflação atinge todas as famílias com a mesma intensidade.

O dragão da inflação é um velho conhecido dos brasileiros. Foi domado com a chegada do Plano Real mas, vez por outra, volta a ocupar as primeiras páginas dos jornais. A preocupação se justifica. Níveis elevados de inflação provocam alocação ineficiente de recursos, aumentam a incerteza, desorganizam a economia e afetam o bem-estar, principalmente dos segmentos  mais carentes da sociedade. Isso se torna ainda mais grave em um país com grande desigualdade social como o Brasil, já que as famílias de baixa renda possuem menos reservas de poupança e menor flexibilidade orçamentária para enfrentar os períodos de carestia.

Os principais índices de inflação ajudam a entender como está evoluindo a inflação geral no país embora representem cestas de consumo muito abrangentes das famílias. Não permitem, portanto, entender como a inflação afeta orçamentos de distintos padrões de renda familiar.

Neste artigo procuramos analisar como evoluiu a inflação em diferentes níveis de renda familiar desde o início de 2020, período em que o dragão voltou a assombrar o país e a inflação vem persistentemente se situando acima da meta estabelecida pela autoridade monetária, comprometendo orçamentos familiares e iniciando um ciclo de alta dos juros que já dura 12 meses e elevou a Selic de 2% a.a. para 11,75% a.a. entre março de 2021 e março de 2022.

Com a abertura por decis de renda familiar podemos identificar que parcela da sociedade está sendo mais afetada pelo processo inflacionário, ilustrando o fato de que nem sempre a inflação atinge todas as famílias com a mesma intensidade.

A tabela 1 a seguir mostra como famílias com distintos níveis de renda perceberam a inflação nos últimos dois anos. Os decis de renda foram determinados de acordo com a renda das famílias, segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), criando dez diferentes estruturas de ponderação para o IPC-Brasil, o Índice de Preços ao Consumidor do FGV IBRE. 

Tabela 1 – Inflação por decis de renda (acumulada no ano, em %)

Decis

Intervalo de Renda em Salários Mínimos

2020

2021

1

1,0 - 1,5

7,0

8,9

2

1,6 - 2,0

6,4

8,9

3

2,1 - 2,5

6,5

8,9

4

2,6 - 3,0

5,6

9,4

5

3,1 - 4,0

5,6

9,3

6

4,1 - 5,0

5,4

9,1

7

5,1 - 6,0

4,9

9,5

8

6,1 - 8,0

5,0

9,4

9

   8,1 - 11,5

4,5

9,1

10

11,6 - 33

4,3

8,7

IPC-S

1 a 33

5,2

9,3

             Fonte: Elaboração FGV IBRE com dados da POF/IBGE

Em 2020, as pressões inflacionárias ficaram muito concentradas entre os alimentos, classe de despesa que compromete mais o orçamento de famílias menos favorecidas. Em segundo lugar, vieram os itens de habitação que, assim como os alimentos, tem o peso decrescente com o nível de renda, como mostram os gráficos a seguir. Com esta composição, naquele ano, na medida que a renda avançava, a inflação reduzia seu impacto no custo de vida. A inflação para famílias do primeiro decil de renda (até 1,5 salário mínimo mensal) fechou o ano em 7,0%  e a das famílias do último decil (acima de 11,5 salários mínimos)[1] em apenas 4,3%.

Gráfico 1 - Peso dos grupos Alimentação e Habitação por decis de renda

Fonte: Elaboração FGV IBRE

A inflação foi decrescente com a renda em 2020 também pelo fato de que, dentro dos grupos Alimentação e Habitação, a pressão de preços foi maior para as famílias de baixa renda. Enquanto as famílias do primeiro decil de renda enfrentaram alta de 16,7% nos preços dos alimentos, as do último decil registraram alta de 10,3%.  Analogamente, a inflação dos itens de habitação foi de 6,60% para os mais pobres e de 4,68% para os mais ricos.

A tabela 2 a seguir, mostra que os dois grupos responderam por 85% da inflação de 7,0% das famílias de baixa renda e 63% da inflação de 4,3% das famílias mais abastadas naquele ano.

Tabela 2 – Principais influências por Classes de Despesa em 2020, segundo IPC-Brasil (FGV)

Fonte: Elaboração FGV IBRE com dados da POF/IBGE

Analisando mais detidamente a inflação das famílias com renda até 1,5 salário mínimo (SM), nota-se que todos os 10 itens com maior influência na inflação de 2020 pertencem aos grupos Alimentação e Habitação, com destaque para tarifa de eletricidade, arroz, gás de bujão e óleo de soja, todos com altas acima da média da inflação no ano.

Tabela 3 – Maiores influências positivas, segundo IPC-Brasil (FGV) por classes de renda

 Fonte: Elaboração FGV IBRE com dados da POF/IBGE

No caso das famílias com renda superior a 11,5 SM, somente cinco dos dez itens de maior influência vieram dos grupos Alimentação e Habitação.  Entre os destaques para esta faixa de renda há diversos itens com peso muito baixo entre as famílias de menor renda, como os automóveis novospassagens aéreas.

Os números mostram que a inflação de 2020 foi pouco democrática, terminando por exacerbar as dificuldades das famílias de baixa renda e neutralizando parte do impacto positivo das medidas emergenciais de combate aos efeitos nocivos da pandemia de covid-19 sobre a economia. Ainda em 2020, a inflação das famílias mais ricas foi mitigada por fatores como o adiamento do reajuste dos planos de saúde e por descontos concedidos por escolas particulares  em função da prática do Ensino à Distância (EAD).

2021: a inflação se democratiza (no mau sentido)

Em 2021, a inflação acelerou para todos os grupos de renda e foi, de forma não virtuosa, mais “democrática”, com o maior espalhamento dos reajustes de preços. Embora não muito distantes das demais, as taxas mais elevadas ocorreram em classes intermediárias de renda, em outras palavras, na classe média, como mostra a tabela 1. Entre os mais pobres, os grupos Alimentação e Habitação continuaram sendo os vilões, mas os Transportes surgiram como um novo fator de pressão para a inflação de 8,88% deste grupo no ano. Entre os mais ricos, a alta de 18,5% nos preços de Transportes respondeu por nada menos que 43% da inflação de 8,72% no ano. Entre os itens que mais influenciaram neste resultado estão as altas de preços de 49,12% da gasolina, 10,66% do automóvel novo e de 42,67% nas passagens aéreas.

Tabela 4 – Principais influências por Classes de Despesa em 2021, segundo IPC-Brasil (FGV)

Fonte: Elaboração FGV IBRE com dados da POF/IBGE

Os energéticos  foram os novos grandes vilões da inflação em 2021, ano em que  gasolina, energia, Diesel, GLP e etanol representaram quase 50% do IPC-Brasil.

A tabela 5 apresenta as despesas que mais impactaram os orçamentos das famílias em 2021.  Para as famílias de baixa renda, as três primeiras posições foram ocupadas por itens de energia, que responderam por 48% da inflação. A pressão da inflação deste grupo também foi grande para as famílias mais ricas. E como o grupo transportes onera 20% do orçamento dos mais ricos, o reajuste dos combustíveis impactou significativamente o custo de vida destas famílias, superando as participações dos grupos Habitação (21,4%) e Alimentação (15%).

Gráfico 2 - Peso do grupo Transportes por decis de renda

Fonte: Elaboração FGV IBRE

Tabela 5 – Maiores influências positivas em 2021, segundo IPC-Brasil (FGV) por classes de renda

Fonte: Elaboração FGV IBRE com dados da POF/IBGE

Perda de Bem-Estar das famílias captada no Índice de Confiança do Consumidor

Considerando-se a inflação acumulada nos dois anos desde o início da pandemia, entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2022, as classes de renda mais baixas continuam sofrendo mais. Para um IPC-FGV acumulado de  15,2%, a inflação das famílias de renda mais baixa foi de 16,8% e a das de renda mais alta de 13,6%. A classe média ficou no meio do caminho. A perda de bem-estar com esta pressão de preços é de certa forma captada pela evolução recente dos índices de confiança do consumidor de alta e baixa renda. Partindo de um nível de 100 pontos em fevereiro de 2020, a diferença entre a confiança dos consumidores de renda mais baixa e mais alta foi crescente desde o início da pandemia até meados do ano passado. Mais recentemente, os dois índices se aproximaram um pouco, mas a confiança da baixa renda continua inferior à das famílias de renda mais alta, como mostra o gráfico a seguir.

Gráfico 3 - Inflação contribui para reduzir confiança das famílias de baixa Renda
Índices com ajuste sazonal, base: dezembro de 2019 = 100

Fonte: Elaboração FGV IBRE

O que esperar para 2022?

Em 2022, novamente o país observará níveis elevados de inflação. Nossa projeção de 7,7% para o IPCA é quase três pontos percentuais superior ao teto de tolerância da meta de inflação para o ano. A situação tornou-se mais incerta e complicada recentemente com a deflagração do conflito entre Ucrânia e Rússia. Este conflito geopolítico tende a provocar pressões inflacionárias em importantes commodities agrícolas e minerais.  A incerteza quanto ao futuro do preço do petróleo e a escalada dos preços dos grãos, sobretudo do trigo, fará com que a inflação afete famílias de todos os níveis de renda. No sentido contrário, a associação entre a fuga de capitais de países envolvidos no conflito e níveis de juros reais elevados no Brasil levou à valorização do câmbio R$/US$, o que deve atenuar a pressão de commodities, assim como a mudança de bandeira tarifária de eletricidade a partir dos próximos meses.

Ilustrando como a guerra pode afetar todas as classes de renda, os embargos promovidos contra a Rússia tendem a desmobilizar cadeias de distribuição de matérias-primas, favorecendo o aumento de preços de commodities. A tendência de alta dos preços do petróleo pode afetar diversos produtos de maneira direta e indireta. A cadeia de derivados, composta por resinas, plásticos, fertilizantes e combustíveis, espalharão as pressões inflacionárias por diversos segmentos. E, indiretamente, os preços do petróleo também afetarão outros setores, como o têxtil, encarecendo o algodão, dado o provável aumento do preço do poliéster, bem como o setor sucroalcooleiro, dada a substituição de gasolina por etanol e a provável decisão do setor em produzir mais etanol do que açúcar.

Na esteira de aumentos de preços esperados para 2022 estão, em ordem: combustíveis fósseis, alimentos, bens duráveis e serviços. Esta extensa relação de itens para os quais se espera alta não poupa classes sociais e, mais uma vez, a inflação será percebida por todos. No contexto macroeconômico, a inflação mais alta levará a ajustes no ritmo de crescimento econômico, adiando o sonho da retomada de uma rota de crescimento sustentado de nossa economia para 2023.


[1] A estrutura de ponderação do IPC-Brasil do FGV IBRE leva em consideração famílias com renda mensal entre 1 e 33 salários mínimos. Pra facilitar, descrevemos neste artigo os limites da primeira e última faixas da seguinte forma: “até 1,5 salário mínimo” e “acima de R$11,5 salários mínimos”, respectivamente.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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