Macroeconomia

A recessão democrática no Brasil: resposta a Celso

8 mai 2018

Celso Rocha Barros escreveu artigo na revista Piauí de abril afirmando que a direita no Brasil foi responsável por “mandar para o espaço a norma do autocontrole”.

Essa afirmação foi feita na sua resenha sobre o livro “How democracies die”, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Eles argumentam que a perenidade de uma democracia depende dos jogadores praticarem duas regras não escritas. A primeira é reconhecer o adversário como um legítimo jogador e a segunda é praticar autocontenção, o que significa não operar nas zonas cinzentas das regras do jogo.

Os autores propõem que a direita americana tem quebrado essas regras de boa convivência e documentam outros processos de destruição lenta de regimes democráticos decorrentes de operar nas zonas cinzentas, como no caso da Venezuela. Segundo os autores, as duas regras não escritas foram quebradas pelo chavismo desde o seu início.

Para Celso, a direita brasileira mandou para o espaço o autocontrole ao derrubar o PT. “O que é obviamente errado, e indiscutivelmente ocorreu no Brasil nos últimos anos, é um dos lados da disputa política ter o poder de ligar e desligar instituições conforme seu interesse”. Dilma, exemplifica Celso, não conseguiu confirmar Lula na Casa Civil em 2015, enquanto Temer nomeou Moreira Franco ministro em 2016.

Celso argumenta que o tratamento desigual não reflete detalhes do desenho institucional, como o foro privilegiado; afinal, parlamentares à direita e à esquerda foram protegidos pelas regras existentes (há acusações graves contra Aécio e Gleise). O tratamento desigual decorreria do poder de influência da direita (“a turma que perde dinheiro quando a bolsa cai”): “Se quiserem ver poder, poder de verdade, procurem quem teria perdido dinheiro caso a Bolsa tivesse caído”.

A sugestão de Celso, se nossa leitura de seu texto estiver correta, é que de alguma forma a “turma da Faria Lima” manipula as instituições políticas e de controle do Estado para que estas decidam a favor do grupo “que perde dinheiro quando a Bolsa cai”.

Nossas divergências. A tese de Celso é frágil. Em geral, quem perde dinheiro quando a Bolsa cai são os investidores institucionais, como os fundos de pensão. A “turma da Faria Lima”, por sua vez, ganha dinheiro quando se antecipa aos movimentos da bolsa, tanto faz se para cima ou para baixo. O texto de Celso, cheio de ironias, fluente e bem-humorado, ignora esse fato.

Quem se beneficia da bolsa para cima é o país. As ações de empresas aumentam de valor quando se espera que as vendas e a produção aumentem, o que significa crescimento da renda e do emprego. Esse processo, como ocorreu no governo Lula, resulta em ganhos para a maioria da sociedade, incluindo os trabalhadores que obtêm maiores salários.

Celso abraçou uma teoria conspiratória sem identificar os nexos causais. Temos duas divergências adicionais com a narrativa de Celso. Primeiro, ela nos parece bastante parcial. É necessário contar a história completa das perdas de autocontenção para entendermos o impedimento da presidente Dilma. Lendo o texto de Celso parece que, tendo perdido a eleição, a direita, representada em 2/3 do Congresso Nacional, resolveu impedir a presidente. As coisas foram, entretanto, bem mais complexas.

Em segundo lugar, a narrativa de Celso, a nosso ver, reflete a enorme dificuldade da esquerda em entender a natureza de nosso presidencialismo e o papel do Congresso, e voltamos a este ponto no fim do artigo. Antes, analisamos o histórico das falhas da autocontenção no Brasil recente e seus muitos desdobramentos.

Autocontenção de quem? Celso considera que o impedimento da presidente Dilma representou uma quebra da regra de autocontenção. As coisas na política, segundo ele, andaram relativamente bem por muitos anos, com um excesso aqui e outro acolá, até que a direita resolveu “ligar e desligar as instituições conforme seus interesses”.

A sequência de eventos que levaram ao impedimento da Dilma é bem mais longa do que sugere o relato de Celso.

Durante o governo Dilma, a transparência das contas públicas foi severamente prejudicada por muitas decisões do Tesouro Nacional que violaram a autocontenção. Afinal, um dos pilares da democracia é reportar adequadamente a real situação do governo. O mesmo vale para empresas privadas. O escândalo da Enron há quase duas décadas decorreu da apresentação de resultados contábeis que mascaravam a real situação da empresa. O resultado foram vários processos, prisões e a falência da então maior empresa de auditoria do mundo.

Alguns argumentam que o estelionato de Dilma é equivalente ao de FHC em 1998, que manteve a valorização cambial até a eleição, para somente depois fazer o ajuste inevitável. A “jurisprudência de 1998” tornaria aceitável o estelionato de 2014.

Esse argumento parece ignorar que o maior problema do governo Dilma não foi propor uma política econômica diferente da que defendeu na campanha eleitoral. Estelionatos eleitorais devem ser criticados, mas nem de longe podem ser comparados à manipulação das contas públicas que mascaram para a sociedade a real situação das contas públicas.

Erros de política econômica fazem parte da vida e devem ser julgados nos ciclos eleitorais. Tudo bem que o desastre da gestão Dilma foi incomparável. Difícil imaginar maior sequência de decisões incompetentes do que as adotadas no seu mandato. Intervenções desastrosas em diversos setores, como em petróleo e gás, as políticas fracassadas de conteúdo local e a expansão do crédito subsidiado do BNDES são apenas alguns exemplos de desperdício de recursos que resultaram em um fracasso impressionante e que custou caro ao país.

Descolamos dos nossos vizinhos latino-americanos a partir de 2011. Enquanto os demais países se recuperavam depois da grave crise externa de 2008, o Brasil assistiu à queda contínua da taxa de crescimento, da geração de emprego e da taxa de investimento. A recessão que se inicia no fim de 2014 foi a continuação de uma trajetória de desaceleração iniciada no começo do governo Dilma.

O crime de Dilma. Por maior que tenha sido o desastre da gestão Dilma, reconhecido inclusive por muitos petistas, não foi esse o seu crime. A destruição do equilíbrio fiscal implicou bem mais do que evitar um ajuste inevitável por motivos eleitorais. Durante anos, o governo expandiu do gasto público por meio de subterfúgios de modo que a sociedade não soubesse o que estava ocorrendo. A Caixa Econômica Federal pagou os programas do governo sem ser ressarcida por meses. A conta das pedaladas fiscais chegou a mais de 70 bilhões de reais em 2015.

Descoberto o truque, o governo argumentou que não era empréstimo. O argumento surpreende: um banco cede dinheiro para pagar as obrigações do governo e é ressarcido apenas muito depois. Se isso não é empréstimo, melhor rasgar os manuais de economia. Vale ressaltar que a lei proíbe um banco de emprestar para beneficiar o seu controlador e isto se aplica ao setor privado e ao governo.

O resultado da política econômica em 2013 e 2014 foi uma piora fiscal anual de uns 2 pontos percentuais do PIB, com a economia ainda em crescimento, e sem que a contabilidade pública registrasse esse aumento do gasto.

A criatividade para expandir os gastos sem aparecer nas despesas do governo foi imensa. Muitos Estados pediram auxílio financeiro no governo Dilma. O Tesouro poderia conceder os recursos e registrá-los na contabilidade pública. A opção, porém, foi por avalizar empréstimos para os Estados. Isso significa que o Tesouro deveria pagar caso os Estados não pagassem as suas dívidas. Entretanto, esses avais não são registrados como dívida ou despesa até que algum Estado fique inadimplente, como ocorreu com o Rio de Janeiro anos depois. O total das dívidas avalizadas pelo Tesouro chegou perto de 100 bilhões de reais.

O governo criou o programa PSI em que o BNDES emprestava a taxas de juros abaixo da TJLP, que era o custo dos recursos recebidos pelo banco. A diferença entre a taxa de juros cobrada dos empréstimos e o custo dos recursos seria coberta pelo Tesouro. Corretamente, desde que o empréstimo era concedido, o BNDES registrava o que devia receber do Tesouro. A norma legal proposta pelo governo previa, porém, que o Tesouro apenas contabilizasse dois anos depois a despesa devida ao BNDES.

Algo assim: pode gastar que eu vou ressarcir. Agora, só vou registrar a despesa nos meus livros contábeis daqui a dois anos.

O subsídio concedido para estudantes em universidades privadas, o FIES, saía diretamente do Tesouro. Depois de uma mudança contábil, o custo passou a ser financiado por um fundo público. O novo governo precisou de mais de um ano para entender o tamanho do desastre.

Gastos foram feitos, não pagos e não registrados como restos a pagar, como foi descoberto em 2014. A lista é imensa, revelando persistência e muita disposição para manipular.

A história é mais complicada. No começo do segundo governo Dilma, Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, aprovou muito do proposto pelo governo. A degringolada começou com o fracasso da agenda titubeante de ajuste, ajuste este na contramão do que a presidente Dilma prometera na campanha. A própria base aliada reclamou e parte da oposição achou que era hora de dar o troco ao histórico golpista do PT, como nas muitas manifestações de “fora FHC”.

O PSDB errou e muito ao votar contra o ajuste das contas públicas, como no caso do fator previdenciário. Não passou desapercebido e o partido paga o preço por isso. Merecidamente.

Por sua vez, o PT nega os problemas da previdência há duas décadas e sempre se recusou a discutir os méritos das medidas de ajuste do governo quando era oposição. Nos anos 1990, denunciou levianamente muitas propostas como apenas motivadas por interesses escusos e patrocinou ações judiciais contra servidores públicos com argumentos superficiais. Alguns ainda pagam pelos socos abaixo da cintura desferidos pelo PT naquela época.

Uma vez governo, o PT rapidamente descartou fazer acordos no Congresso para apoiar as suas propostas e preferiu a aliança com os partidos pequenos, que deram apoio em troca de diretorias de estatais e da distribuição de cargos em áreas com poder de conceder benefícios. A falta de autocontenção vem de bem mais longe do que sugere Celso.

As diferenças entre o PT e o PSDB. No começo do primeiro governo Lula, o PSDB apoiou o governo em muitas reformas. Nunca vimos o PT fazer o mesmo. Antes disso, os tucanos patrocinaram uma transição civilizada após perderem uma eleição presidencial. Difícil imaginar o PT se comportando da mesma forma.

O PSDB pode ter abusado das regras disponíveis para prorrogar o ajuste inevitável de 1998. Por sua vez, o PT burlou as regras e mascarou os problemas. Em um caso houve populismo e o uso inaceitável das regras disponíveis (o que deve ser criticado); em outro houve fraude (o que deve ser criminalizado).

O comportamento do PT na oposição ao governo FHC e os excessos cometidos a partir de 2013 convenceram muitos políticos moderados de que o partido representava um grupo autoritário, sistematicamente operando nas zonas cinzentas da democracia.

O PT provocou uma imensa decepção. O partido fez as alianças com os partidos da várzea no primeiro mandato e agrediu como pode o PSDB e o DEM na eleição de 2006. Dilma depois de 2010, com a “competência” usual, interveio na economia e minou a transparência das contas públicas.

A presidente reeleita depois da lamentável campanha de 2014 pede para a oposição ajudar a arrumar a casa? Quem podia garantir que não iria destruir o orçamento novamente? A falta de autocontenção foi o resultado de longa obra petista.

Para continuar com as comparações, vale lembrar que o governo FHC realizou ajuste fiscal nos anos eleitorais de 1998 e de 2002, além de ter tratado explicitamente na campanha de 1998 da necessidade de ajuste fiscal em 1999. Exatamente o oposto do que fez o governo Dilma em 2014.

Por que o PT foi contra resolver o problema do estelionato eleitoral de 1998? A taxa de câmbio valorizada até a eleição de 1998 permitiu salários artificialmente elevados, mas implicou juros mais elevados e menor crescimento econômico. O esgotamento das reservas depois da eleição forçou a mudança do regime em meio a uma crise severa de muitos meses.

Em 1998, pode ter havido algum oportunismo político e incompetência econômica, bem documentada pela literatura acadêmica sobre populismo cambial nos países da América Latina, quando governos prorrogam a desvalorização inevitável para depois das eleições.

Exatamente por essa possibilidade, a maioria das democracias adota regras de governança que reduzem a possibilidade de comportamentos oportunistas em períodos eleitorais, como a autonomia do Banco Central.

O PT, e boa parte da esquerda, no entanto, têm sido recorrentemente contra a autonomia do Banco Central com argumentos falsos ou, na melhor das hipóteses, incompetentes, revelando desconhecer as experiências dos demais países. A autonomia não resulta na criação de um poder independente ou “retirar comida da mesa do trabalhador”. Quem faz argumentos como esses não pode reclamar quando é acusado de ser populista ou incompetente.

O centro da polêmica: o impedimento. Qual opção restou para a oposição em 2015: 1) não impedir a presidente e apoiar a arrumação de casa proposta pelo governo; 2) não impedir a presidente, rejeitar a arrumação de casa proposta pelo governo e deixar o país sangrando por quatro anos; 3) impedir a presidente? Haveria uma quarta? Nós não conseguimos enxergá-la.

Aparentemente, Celso argumenta que qualquer ação aceitável para a oposição em 2015 implicaria manter a presidente. O apoio ao programa de ajuste do governo, porém, significaria validar o estelionato eleitoral da presidente eleita. O próprio PT, porém, não era muito entusiasta do ajuste proposto pelo Governo Dilma. Nos corredores do Congresso, os petistas afirmavam: “Vocês tucanos é que são da arrumação fiscal. Vocês devem votar o ajuste. Para nós é mais difícil”.

Parece-nos que o único curso de ação que Celso acharia aceitável para satisfazer a autocontenção e que fosse, simultaneamente, palatável para a oposição, seria deixar o país sangrando por quatro anos, ainda que resultasse em desemprego e recessão maior do que a crise entre 2014 e 2016.

A política ou o presidencialismo autoritário? Como afirmamos, temos duas discordâncias com Celso. A primeira é que o processo de impedimento tem uma história muito mais longa do que ele reconhece. O PT durante anos abusou da zona cinzenta tanto na oposição quanto nas vésperas da eleição de 2014, cometendo fraude e não apenas abuso das regras.

Não estava tudo bem no início de 2015 e para muitos deputados havia motivos claros para acreditarem que o PT era intolerante e que, se fosse necessário, empregaria toda a tinta da caneta da presidência de República para se perpetuar no cargo.

A nossa segunda discordância de Celso decorre do que acreditamos ser um erro comum na esquerda latino-americana: desconhecer a divisão de trabalho entre o Executivo e o Legislativo. Em geral, a esquerda desprestigia o Legislativo – por achá-lo excessivamente conservador ou muito corrupto – e acredita que o presidencialismo constitui um atalho para aprovar reformas, mesmo que à revelia da maioria.

Transparece no texto de Celso um certo desrespeito cultivado pela esquerda contra o Congresso Nacional (CN). A história dos 300 picaretas é para valer. Celso fala recorrentemente nos derrotados de 2014 que fizeram o impedimento de Dilma e não percebe o absurdo de achar que 2/3 do CN representa um grupo derrotado nas eleições.

Segundo Celso, no impedimento de Collor houve um esforço de entendimento entre a esquerda e a direita. Esse esforço não teria ocorrido no caso de Dilma. É verdade que o PT apoiou o impedimento de Collor. Mas o PT não apoiou o plano Real nem participou do governo Itamar. Parece-nos que o entendimento foi somente para tirar Collor.

Vale lembrar a história de uma das mais repulsivas e violentas ditaduras latino-americanas, o governo Pinochet. No começo dos anos 1970, o governo Allende também não confiava no Congresso, onde a oposição tinha maioria. Exatamente por defender medidas que desagradavam boa parte da população, o presidente, um homem bem-intencionado segundo depoimentos, optou por decretos que em que impunha as suas escolhas.

A sociedade conflagrada reagiu. O afastamento das regras de autocontenção teve um desfecho trágico para todos os que defendiam a democracia. O voluntarismo que opera na zona cinzenta, tanto no governo quanto na oposição, muitas vezes tem consequências inesperadas e desastrosas, na contramão das intenções.

O governo Temer propôs uma PEC dos gastos e uma reforma da previdência que não eram substancialmente diferentes das propostas defendidas pelo ministro Nelson Barbosa em 2016.[1] A mudança de rota na política econômica ocorreu no governo reeleito de Dilma em 2015 e não com Temer. A discordância ocorreu apenas na reforma trabalhista e na lei da terceirização.

Negociar com o PT é difícil porque já houve demasiada quebra de confiança.

Quem é de esquerda? Não concordamos em utilizar a denominação “esquerda” para o PT, ou “direita” para a oposição. O termo “esquerda” tradicionalmente designa os grupos preocupados com a inclusão social. Nesse sentido, não há diferença relevante entre os governos FHC e Lula. O aumento do salário mínimo e dos gastos sociais foram semelhantes em ambos os governos.

A diferença ocorreu na defesa dos interesses corporativos e na política quando na oposição. O PT sempre defendeu os grupos organizados, como os sindicatos patronais e de servidores públicos. Como todos os interesses que dependem dos favores do Estado, o PT nunca foi de esquerda, mas apenas corporativista, há muito defensor do velho patrimonialismo.

Os velhos comunistas, que fizeram com notável transparência a autocrítica dos erros do passado, como no caso do PPS, se revelam muito mais à esquerda do que o PT. Da mesma forma, herdeiros da direita, como o DEM, igualmente fizeram a autocrítica, abraçaram a democracia e as políticas sociais inclusivas.

Curiosamente, o centro congregou a esquerda socialdemocrata, enquanto o PT se aproximou do Brasil velho dos interesses cartoriais. Basta listar todos os grupos, sindicatos e federações que apoiaram a agenda nacional desenvolvimentista do governo Dilma.

Os extremos da direita e da esquerda se assemelham. Todos são corporativistas e autoritários. Nem o MBL é liberal, nem o PT ou o PSOL são de esquerda. Esses grupos lembram muito mais irmãos que disputam o butim com golpes abaixo da linha de cintura do que representantes de divergências ideológicas. Propor fechar museu vai contra o liberalismo da mesma forma que defender servidores com remuneração acima de R$ 30 mil, privilégio do 1% mais ricos do Brasil, vai na contramão da esquerda.

O PSDB foi populista em 1998, mas muitas vezes reconheceu e enfrentou os problemas. Na oposição em 2003, apoiou diversas medidas do governo por reconhecerem o seu mérito. Havia diálogo. Nos últimos anos, entretanto, o PSDB de lideranças memoráveis, como Tasso e Arthur Virgílio, se perdeu e passou a se comportar como o PT dos anos 1990. Foi uma decepção.

A surpreendente ambiguidade do PT com os acontecimentos na Venezuela não ajuda em nada a construção de uma aliança social-democrática. Ainda outro dia, José Eduardo Cardozo, moderado do grupo político petista, em reposta a Miriam Leitão em seu programa de entrevista, disse que o tema da Venezuela é complicado pois há dois lados. Nós não conseguimos enxergar dois lados, a não ser que sejam opressores e oprimidos.

Há mais. Dilma na campanha de 2014, como aliás nos 13 anos de petismo, em nenhum momento falou de repensar os regimes tributários especiais, como o Lucro Presumido e o Simples. Rever esses regimes podem ter um impacto relevante sobre a desigualdade de renda, mas nunca fizeram parte de um programa de governo petista.

Um presidente autoritário? A impressão que fica é que o PT foi apenas oportunista. Bastava eleger um presidente, não importa as circunstâncias da campanha. Vê-se depois como construir maiorias. O resultado foi uma presidente impedida por 2/3 do CN. Não entendeu que se precisa de boa-fé e respeito pela velha política para ter o apoio da maioria.

Ao contrário dos petistas, os tucanos durante muito tempo entenderam essa restrição de nossas instituições políticas: o presidente pode empregar o seu poder de agenda para priorizar os temas de seu interesse no CN, mas não pode forçar a mão. Cabe ao CN a última palavra, não ao presidente.

Celso, para convencer o leitor da ilegitimidade do impedimento da presidente Dilma, lembra que Levitsky e Zilblatt argumentam que os democratas, na política norte americana, “só devem pensar em impedimento para Trump se isso for o resultado de uma construção de um grande consenso nacional que envolva também parte importante da direita. Aceitem compromissos programáticos com a direita moderada se isso for necessário para derrotar o radicalismo de Trump”.

Ora, Dilma foi impedida por 2/3 do CN. Se os democratas tivessem 2/3 das duas Casas provavelmente Trump já teria sido impedido. O PT parece ter dificuldade em ser o chefe do Executivo com um partido que nunca teve maioria do CN e que achava que bastava comprar o apoio dos que desprezava para aprovar a sua agenda.

O impedimento de Dilma foi fruto de um longo processo de desgaste decorrente da dificuldade do PT com o dia a dia do CN. Há evidências de que o custo de gestão da coalizão foi maior nos governos petistas.[2] As suas alianças com partidos na contramão da sua suposta visão de mundo revelaram a falta de disposição para exercer a autocontenção. Em nada ajudou a sua ambiguidade com ditaduras violentas em países muito próximos, como a Venezuela.

O texto de Celso Barros, amigo e intelectual que respeitamos, parece-nos mais um capítulo do longo processo da esquerda de afastar de si a responsabilidade pela tragédia política e econômica que, progressivamente, se abateu sobre nós desde 2011.

O PT jamais foi responsável na oposição. O partido também não foi responsável quando os problemas começaram a ocorrer no fim do segundo mandato de Lula. A demonização da divergência e a falta de autocontenção iniciada pelo PT cobra o seu preço. Hora de criar novas pontes.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.


[1] Nelson sempre criticou o prazo do controle dos gastos da emenda constitucional, 10 anos, e sempre considerou que o ideal seria um governo decidir a taxa de crescimento do gasto público para o período de uma mandato, 4 anos.

[2] Ver, por exemplo, de Carlos Pereira e Frederico Bertholini, “Coalition Management in Multiparty Presidential Regimes”, capítulo do volume Routledge Handbook of Brazilian Politics, editado por Barry Ames, no prelo.

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