O avanço da pandemia da Covid-19 amplia a incerteza sobre os dados de produtividade no Brasil
Os eventos dos últimos meses associados à pandemia da Covid-19 elevaram de forma extraordinária o nível de incerteza em relação ao desempenho da economia e têm provocado impactos negativos sobre a atividade econômica, o mercado de trabalho e, consequentemente, sobre a produtividade de vários países.[1]
Nas últimas semanas foram divulgados dados de produtividade no segundo trimestre para economias importantes, como os Estados Unidos e Reino Unido. Nos Estados Unidos foi verificada forte heterogeneidade setorial nos resultados de produtividade por hora trabalhada, com elevação da produtividade agregada e queda no setor manufatureiro, particularmente no setor de bens duráveis. Já no Reino Unido houve queda generalizada da produtividade do trabalho, porém com redução muito mais pronunciada na medida de produtividade por trabalhador que na métrica de produtividade por hora trabalhada.[2]
Essa heterogeneidade nos resultados da produtividade no segundo trimestre sugere a necessidade de uma análise abrangente das medidas de produtividade calculadas para o Brasil durante este período de pandemia. Como a informação de valor adicionado é a mesma em todas as medidas, as diferenças entre os resultados dos indicadores de produtividade são provenientes das discrepâncias observadas nas medidas do fator trabalho.
Desde o ano passado temos divulgado estatísticas de produtividade por trabalhador (pessoal ocupado) e por hora trabalhada. Esta última medida considera a informação sobre o total de horas habitualmente trabalhadas em todas as ocupações, obtido da PNAD Contínua, que tem como referência uma semana em que não haja situações excepcionais que alterem a duração rotineira do trabalho, ou seja, uma semana típica de trabalho.[3]
A PNAD Contínua também fornece informações sobre as horas efetivamente trabalhadas na semana de referência, que pode incluir reduções por motivo de doença, feriado, falta voluntária, atraso ou por outra razão, bem como aumentos por conta de pico de produção e compensação de horas não trabalhadas em outro período.
Até o início da pandemia, os resultados obtidos a partir das duas medidas de horas trabalhadas eram semelhantes. No entanto, em função das medidas de distanciamento social necessárias para conter os efeitos da pandemia, desde o primeiro trimestre[4] os dados da PNAD Contínua passaram a revelar um descolamento entre as duas medidas de horas trabalhadas, o qual foi particularmente forte no segundo trimestre, com redução muito mais pronunciada das horas efetivamente trabalhadas que das horas habitualmente trabalhadas, tal como exposto no Gráfico 1.
Gráfico 1: Taxa de crescimento do Valor Adicionado, do pessoal ocupado,
das horas habitualmente trabalhadas e das horas efetivamente
trabalhadaspara o agregado da economia –
(Em % e em relação ao mesmo trimestre do ano anterior) – Brasil
Fonte: Elaboração do IBRE com base nas Contas Nacionais Trimestrais e PNAD Contínua - IBGE
Como podemos observar, as três medidas do fator trabalho tiveram comportamento semelhante até o quarto trimestre de 2019. No entanto, desde o primeiro trimestre de 2020, e particularmente no segundo trimestre, tem havido forte discrepância entre as medidas de pessoal ocupado e horas habitualmente trabalhadas, de um lado, e das horas efetivamente trabalhadas, de outro.
Enquanto o valor adicionado apresentou queda de 10,8% no segundo trimestre de 2020 em relação ao segundo trimestre de 2019, as quedas do emprego, das horas habitualmente trabalhadas e das horas efetivamente trabalhadas foram de 10,7%, 10,5% e 27,6%, respectivamente.
Esta discrepância entre as medidas do fator trabalho foi disseminada entre os principais setores da economia,[5] bem como nas ocupações formais e informais.[6] Isso pode ser em parte consequência da adoção do programa de proteção ao emprego formal, que possibilitou a manutenção do emprego com redução de jornada ou suspensão do contrato de trabalho. Além disso, foi criado o auxílio emergencial, que ao complementar a renda dos trabalhadores informais, pode ter reduzido de forma significativa sua jornada de trabalho.
Em consequência disso, o indicador de produtividade construído com base nas horas efetivamente trabalhadas teve um comportamento muito diferente no primeiro e segundo trimestre deste ano, quando comparado com a produtividade por pessoal ocupado e com a produtividade por hora habitualmente trabalhada, tal como exposto no Gráfico 2. Para ter acesso a análise completa dos indicadores de produtividade com base nos diferentes insumos do fator trabalho, acesse o texto completo no Observatório da Produtividade Regis Bonelli.
[1]Um estudo recente do Banco Mundial dedicado à análise do comportamento da produtividade em eventos muito adversos, como guerras, crises financeiras e desastres naturais, como epidemias e pandemias, mostrou impactos negativos na produtividade do trabalho, com estimativas de queda de 9% três anos após crises epidemiológicas severas como a atual pandemia. A produtividade seria afetada principalmente pela redução de investimentos, devido ao aumento da incerteza, e pelos impactos negativos sobre a oferta de trabalho (por conta de incapacitação devido à doença e aumento do número de fatalidades), sobre o funcionamento do mercado de trabalho (em função da disrupção decorrente de medidas de distanciamento social) e sobre a acumulação de capital humano (por causa do fechamento de escolas). O Banco Mundial aponta, ainda, dois fatores que podem mitigar a queda da produtividade devido à Covid-19. O primeiro está associado ao fato de que tecnologias que se disseminaram durante o período da pandemia podem aumentar de forma permanente a eficiência em diversas empresas ou setores. O segundo fator é que, diante dos desafios colocados à retomada do crescimento, é possível que a pandemia tenha o efeito de estimular reformas do ambiente de negócios. O estudo pode ser acessado pelo link a seguir: http://pubdocs.worldbank.org/en/394411593465307419/Global-Productivity-Chapter-3.pdf
[2] Nos Estados Unidos, os Indicadores do Bureau of Labor Statistics (BLS) apontaram para um crescimento da produtividade agregada (nonfarm business sector) de 2,8% em relação ao mesmo trimestre de 2019, refletindo uma queda nas horas trabalhadas maior que a do PIB. No entanto, os dados do BLS para o setor manufatureiro revelam queda da produtividade de 3,7% em relação ao segundo trimestre de 2019, com redução particularmente forte no setor de bens duráveis (-8,3%). Já no Reino Unido, os dados do Office for National Statistics (ONS) mostraram queda de 22% na medida de produtividade por pessoal ocupado e de 3% na produtividade por hora trabalhada em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, refletindo a uma redução muito maior das horas que do emprego.
[3] O total de horas habitualmente trabalhadas em todas as ocupações corresponde ao produto da jornada média pelo número de pessoas ocupadas.
[4] Na nota que divulgamos referente aos resultados da produtividade do trabalho no primeiro trimestre já havíamos chamado atenção para a queda mais forte das horas efetivas em comparação com as horas habituais em função dos efeitos iniciais da pandemia no mercado de trabalho. O texto pode ser acessado através do link: https://ibre.fgv.br/sites/ibre.fgv.br/files/arquivos/u65/indicadores_trimestrais_de_produtividade_do_trabalho_-_1t2020_final.pdf
[5] Na indústria, a queda do valor adicionado no segundo trimestre de 2020 foi de 12,7%, enquanto que a redução da população ocupada, das horas habitualmente trabalhadas e das horas efetivamente trabalhadas foram de 13,7%, 13,3% e 28,3%, respectivamente. Já no setor de serviços a queda do valor adicionado foi de 11,2%, a do emprego foi de 10,2%, das horas habitualmente trabalhadas foi de 10,1% e das horas efetivamente trabalhadas foi de 29,7%.
[6] No segundo trimestre de 2020, o total de horas efetivamente trabalhadas dos trabalhadores informais, que contemplam empregados sem carteira assinada, trabalhadores por conta própria e empregadores sem CNPJ, e trabalhadores familiares auxiliares, apresentou uma forte redução de 35,3%, enquanto que as horas habitualmente trabalhadas e o emprego recuaram 18,2% e 18,8%, respectivamente. Já no caso dos trabalhadores formais, que englobam os empregados com carteira assinada, os militares e servidores públicos estatutários, bem como os conta própria e empregadores com CNPJ, as horas efetivamente trabalhadas, as horas habitualmente trabalhadas e o emprego recuaram 22,6%, 5,5% e 4,4%, respectivamente.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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