Afazeres domésticos e cuidados nas unidades da Federação
Jornada de trabalho gratuito no interior das famílias e domicílios é realidade da vida das mulheres brasileiras, que dedicam, em média, mais de 20 horas semanais nesses trabalhos. Mas há diferenças regionais significativas.
Em 4 de novembro passado, publicamos no blog do Ibre um post sobre o valor dos afazeres domésticos realizados por mulheres e homens caso fossem remunerados e sua contribuição para o PIB, caso fossem valorados; no mesmo texto chamamos atenção da discriminação salarial sofrida pelas mulheres. Naquele texto, tratamos dos resultados para o Brasil; neste texto, iremos abordar os resultados por regiões brasileiras e as suas unidades da Federação.[ver tabelas neste link]
As observações são referentes à média do período 2016-2019, sendo os valores monetários deflacionados para o ano de 2022.[1] Esclarecemos aos nossos leitores que, no debate econômico, a exclusão do trabalho doméstico não pago das estatísticas oficiais de renda não foi sempre ignorada. Colin Clark (1971), citando Alfred Marshall (1920), ao dar parecer positivo para a exclusão do trabalho doméstico das estatísticas do produto nacional, reconheceu que havia incoerência nessa omissão. Mas, nos tempos atuais, essa demanda explodiu pelas economistas feministas no cenário internacional.
- A contribuição dos afazeres domésticos/cuidados ao PIB de cada Região.
Região Norte
A região Norte tem o segundo menor PIB per capita do país; caso fossem considerados no PIB, os afazeres domésticos/cuidados contribuiriam adicionando 13,8% para seu PIB regional: as mulheres agregariam 9% e os homens 4,8%. Esta é a região que ocupa o segundo lugar de contribuição dos afazeres domésticos/cuidados para seu PIB, atrás apenas da região Nordeste. É importante notar também que as horas dedicadas ao trabalho doméstico nessa região, pelas mulheres, são 1,85 vez as horas dedicadas pelos homens; a menor disparidade por gênero entre todas as regiões brasileiras.
Dentre os Estados dests região, cabe destacar o Pará e o Amapá. O Estado do Pará é o que tem maior contribuição dos afazeres domésticos ao PIB da região, com uma média de 16,6% entre 2016 e 2019, 2,7 pontos percentuais acima da média da região Norte e 3,4 pontos percentuais acima da média brasileira. Esse também é o Estado onde as mulheres dedicam mais tempo ao trabalho não-remunerado, média de 22 horas semanais, acima da média brasileira (21,3 horas) e da região Norte (19,8 horas). Cabe destacar que o rendimento médio das trabalhadoras domésticas desse Estado é o menor da região, com média salarial, entre 2016 a 2019, de R$ 831 reais. Nesse caso, o que explica a alta contribuição é o maior número de horas dedicadas ao trabalho de afazeres domésticos e cuidados. Por fim, é importante notar também que o Pará é o que apresenta maior proximidade entre o rendimento médio das mulheres e o rendimento médio das trabalhadoras domésticas da região Norte, sendo o das domésticas 46% do das mulheres. Isso porque o rendimento médio das mulheres do Pará também é o menor da região. Essa é uma dinâmica especialmente prejudicial às mulheres paraenses, que além de se mostrarem sobrecarregadas na realização das tarefas do lar, ainda sofrem com baixos salários quando estão no mercado de trabalho.
Outro Estado que chama atenção é o do Amapá, com uma contribuição ao PIB maior que a média regional e a média brasileira, de 0,4 e 0,9 ponto percentual a mais, respectivamente. Por outro lado, esse Estado tem uma característica única entre todas as outras unidades da Federação, visto que apresenta um rendimento médio das mulheres equivalente ao dos homens, sendo o delas ainda um pouco maior que o deles e o maior dentre os Estados da região norte. No entanto, isso não se traduz em equivalência nas tarefas do lar: as mulheres continuam dedicando um tempo superior. Foi possível verificar que esse Estado é o que possui maior igualdade entre homens e mulheres na realização do trabalho não-remunerado em todo país, sendo a diferença entre eles e elas de, em média, 5,7 horas. Ao mesmo tempo, foi nesse estado que se verificou maior distância entre o rendimento médio das domésticas e o rendimento médio das mulheres ocupadas, sendo o das domésticas apenas 35% do das ocupadas, mostrando que, apesar de as mulheres estarem auferindo maiores rendimentos no mercado de trabalho, essas conquistas não fluíram para as trabalhadoras domésticas.
Região Nordeste
A região Nordeste tem o menor PIB per capita do País. E é nessa região em que os afazeres domésticos e cuidados mais contribuiriam para o seu PIB (com 17,3%) caso fossem valorados, com as mulheres responsáveis por 12% e os homens por 5,4% desse acréscimo. Destacam-se os estados de Alagoas (19,4%), Paraíba (19,8%) e Piauí (19,1%). É também nessas três UFs que as mulheres mais contribuem. Adicionalmente, é essa região que paga os menores salários tanto para trabalhadoras domésticas, como para as mulheres ocupadas e para os homens ocupados. Por outro lado, é a região na qual as mulheres dedicam mais tempo aos afazeres domésticos e cuidados (22 horas), e é a região em que existe maior disparidade entre eles e elas na dedicação ao trabalho não remunerado: uma diferença de 11,3 horas.
Dentre os Estados da região Nordeste, Paraíba e Sergipe se destacam pela expressiva quantidade de horas dedicadas aos afazeres domésticos e cuidados, 23,7 e 23 horas semanais respectivamente, sendo a Paraíba o Estado em que as mulheres mais dedicam tempo a esses trabalhos em comparação com todas as outras unidades da Federação. No caso do Sergipe, isso leva o Estado a ter a maior disparidade de gênero na quantidade de horas dedicadas ao trabalho não-remunerado, com elas dedicando 12,5 horas a mais do seu tempo nessas tarefas que eles.
Na Paraíba chama atenção a disparidade entre o rendimento médio das mulheres ocupadas e o rendimento médio das trabalhadoras domésticas, sendo os rendimentos das domésticas apenas 38% do rendimento das ocupadas. Ainda assim, o rendimento das trabalhadoras domésticas na Paraíba é maior que a média da região. Esse é um fator importante a ser destacado, porque mostra a fragilidade que enfrentam essas trabalhadoras.
No Ceará chama a atenção o fato de ter rendimento médio dos trabalhadores (eles e elas) inferior à média do Brasil. No Ceará a contribuição para o PIB da região só é superior à da Bahia. Isto ocorre devido a uma menor contribuição aos afazeres domésticos por parte dos homens, e ao baixo valor da remuneração das empregadas domésticas no estado.
A região Sudeste tem o segundo maior PIB per capita do país, ultrapassado apenas pela região Centro-Oeste, graças à Brasília, cujo PIB per capita é 1,77 vez o PIB de São Paulo. A contribuição dos afazeres domésticos e cuidados, caso valorados, seria de 12,5% nessa região, a maior parte devido as mulheres, com 8,4%. Destaca-se o estado de Minas Gerais com 15,5% graças a contribuição de 10,7% das mulheres e os homens contribuindo com apenas 4,8%.
Em Minas Gerais, os afazeres domésticos e cuidados contribuem com 34,1 das horas trabalhadas, com as mulheres participando com 23,1 e os homens com 11 horas. Esse tempo dedicado ao trabalho não remunerado não foge muito a média da região, em que a soma de homens e mulheres flutua em torno das 33 horas semanais. Um fato de destaque é que, se por um lado as mulheres de Minas Gerais são as que mais dedicam tempo a essas tarefas em comparação com os outros Estados da região, os homens mineiros são os que menos despendem tempo nessas tarefas em comparação com os paulistas, cariocas e os capixabas. Por sua vez, Minas também é o Estado da região Sudeste que pior remunera as trabalhadoras domésticas.
O Rio de Janeiro apresenta um destaque por ser o Estado, dentre todos os outros da Federação, na qual os homens mais dedicam tempo ao trabalho não remunerado, 12,2 horas semanais. No entanto, isso não foi o suficiente para reduzir a quantidade dedicada pelas mulheres nesse trabalho, que continuam com uma elevada carga horária dedicada a essas tarefas, de 20,7 horas semanais.
O Estado de São Paulo paga o maior valor por hora trabalhada às empregadas domésticas e é também o Estado da região que melhor remunera os homens ocupados. Por outro lado, é o segundo Estado do país que apresenta maior disparidade entre o rendimento médio das mulheres ocupadas e dos homens ocupados - ficando atrás somente do Mato Grosso – com o rendimento delas sendo equivalente a 72,6% do rendimento deles.
Região Sul
A região Sul sobressai pelo maior valor pago por hora trabalhada as trabalhadoras domésticas dentre todas as regiões do país. Nessa região, o trabalho de afazeres domésticos e cuidados seria responsável por um acréscimo de 13,5% do PIB. O Estado de Santa Catarina destaca-se pois apresenta uma contribuição acima da média da região, de 14,3%. Um fato curioso é que isso decorre dos maiores salários atribuídos as trabalhadoras domésticas nesse Estado, visto que o número de horas dedicadas por elas ao trabalho não remunerado é o menor da região, de 19,5 horas em média.
Região Centro-Oeste
Esta região apresenta o que seria a menor contribuição dos afazeres domésticos para o seu próprio PIB: apenas 9,6%. As mulheres contribuiriam com 6,4% e os homens com 3,2%.
É a região mais rica quando medido pelo PIB per capita, graças ao Distrito Federal onde prevalecem os elevados salários da Administração Pública Federal. A despeito disso, não é a região que melhor remunera as empregadas domésticas, ultrapassando apenas as duas regiões mais pobres (Norte e Nordeste).
Dentre os Estados dessa região, destaca-se Goiás com maior contribuição ao PIB, caso fossem valoradas as tarefas de afazeres doméstico e cuidados, com 13,7%. Por outro lado, Brasília apresenta um acréscimo de apenas 6% com a valoração desses trabalhos. Isso se deve ao fato de o Estado já possuir um elevado PIB, de modo que o acréscimo por hora trabalhada medido em termos salariais das trabalhadoras domésticas não representa um montante tão significativo como nos outros Estados. Nesse caso, a distância salarial entre as mulheres ocupadas e as trabalhadoras domésticas é gritante, com as últimas recebendo somente 35% do rendimento das primeiras.
Conclusões
Estas notas mostram que a jornada de trabalho gratuito no interior das famílias e domicílios é uma realidade na vida das mulheres. Sejam trabalhadoras, com diploma superior, ensino médio ou com baixa escolaridade, “todas” dedicam, em média, mais de 20 horas semanais nesses trabalhos, enquanto “eles” fazem apenas uma jornada de 11 horas semanais nessas tarefas. Essa jornada de trabalho excessiva acaba impedindo que as mulheres alcancem melhores posições no mercado de trabalho, enquanto os homens, como tem uma mulher em casa que vai arcar com esse trabalho imprescindível e gratuito, podem se dedicar inteiramente ao trabalho remunerado. E essa é uma realidade do Norte ao Sul do Brasil.
[1] A partir de março/2020 até 2021, a PNADC/IBGE retirou algumas perguntas do questionário básico e estas englobaram aquelas referidas a “quantas horas as pessoas gastam por semana realizando atividades de cuidados e afazeres domésticos no seio de suas famílias e relações pessoais”.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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