Mercados e Inflação
Metodologia

A inflação medida com pesos atualizados mensalmente

10 ago 2023

Analisamos resultados de índice experimental, que calcula inflação nacional de forma análoga à dos índices das despesas pessoais de consumo, com adaptação automática às mudanças de preferência do consumidor ao longo do tempo. 

E se a inflação fosse calculada a partir de uma cesta de consumo móvel, que se adaptasse automaticamente às alterações de preferência do consumidor ao longo do tempo?  Esta pergunta, feita por economistas há décadas, é ainda mais relevante para países em que a atualização da cesta de consumo usada como referência nos índices de inflação ocorre com baixa frequência. No Brasil, essa atualização se dá por meio da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, que tem ocorrido com intermitência média de 6 anos, considerando as últimas 3 décadas.

Neste estudo, analisamos os resultados de um índice experimental, criado para calcular a inflação brasileira de forma análoga à dos índices da família conhecida por PCE, ou Personal Consumption Expenditures (índices das despesas pessoais de consumo). Os índices deste tipo são muito usados em análises macroeconômicas, uma popularidade que pode ser comprovada pela adoção, em 2012, do PCE calculado pelo Bureau of Economic Analysis (BEA) como referência no regime de metas de inflação do Federal Reserve Board (Fed).

Duas diferenças entre o PCE e um Índice de Preços ao Consumidor (IPC) tradicional merecem ser destacadas. Primeiro, a estrutura de pesos de bens e serviços de um PCE é extraída majoritariamente do Sistema de Contas Nacionais (SCN) e considera o gasto total por grupo de produtos no consumo das famílias, enquanto os índices de preços ao consumidor tradicionais focam em intervalos de renda específicos por buscarem atender ao interesse de políticas públicas. No IPCA do IBGE, por exemplo, a cesta de consumo das famílias brasileiras, determinada pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), considera famílias com renda mensal até 40 salários mínimos (s.m.). Já o IPC-BR do FGV IBRE inclui famílias com renda até 33 s.m. mensais.

Pesquisas como a POF possuem intermitência muito longa, levando a uma gradual desatualização da cesta de consumo das famílias usada como referência nos índices de preços. O interesse em observar a inflação a partir de atualizações mais tempestivas de pesos decorre, principalmente, da possibilidade de capturar o efeito-substituição da demanda por bens e serviços relacionada aos níveis de preços de cada item pesquisado ao longo dos ciclos econômicos, especialmente em períodos em que o ambiente econômico muda rapidamente.

Pesos que deixam de refletir com o tempo o padrão de consumo das famílias tendem a fazer com que os índices de preços superestimem a inflação, aumentando o esforço da política monetária e impactando o nível de atividade econômica. Por este motivo, os países vêm buscando formas de atualizar com maior frequência as estruturas de pesos de seus índices de preços.

Uma segunda diferença entre um PCE e um IPC tradicional deriva do fato de que a atualização de um PCE depende de estatísticas que são periodicamente revisadas, levando a que os números deste índice também sejam revisados. As revisões levam ao aperfeiçoamento das medidas, mas impedem que esta classe de índices seja usada como indexadora de contratos. 

O índice experimental criado neste artigo resultou de um esforço conjunto da equipe do FGV IBRE que produz os índices de preços e a equipe responsável pelas estatísticas derivadas do SCN. Foi batizado como Índice de Preços dos Gastos Familiares (IPGF). O IPGF tem seus pesos originais e atualizações mensais determinados pelo Sistema de Contas Trimestrais do IBGE (SCT) convertidos à frequência mensal com base no Monitor do PIB, do FGV IBRE. Por depender dos resultados do SCT, a atualização do IPGF só pode ser realizada com defasagem de dois meses.

Essa estrutura de pesos extraída do SCN contém 52 itens, bem menos que os 377 subitens do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA), do IBGE. Para que os itens do IPGF tenham sua variação determinada por componentes do IPCA, os autores realizaram um cuidadoso trabalho de adaptação de uma estrutura à outra.[1]

Em grandes linhas, a única diferença relevante entre o IPGF do FGV IBRE e o PCE do BEA é que, além das despesas das famílias, este último considera também a evolução dos preços em dois itens que são consumidos pelas famílias sem que estas incorram em gastos diretos, por serem itens financiados pelo Estado: a Saúde e a Educação Públicas.

Primeiros resultados do IPGF

A série mensal do IPGF foi construída para o período entre janeiro de 2000 e dezembro de 2022. O gráfico 1 mostra a série histórica do índice comparada à do IPCA. Entre janeiro de 2000 e dezembro de 2022, o IPGF acumulou uma inflação de 283,5%, bem inferior à variação acumulada de 307,6% do IPCA. Em médias anuais, o IPGF ficou 0,3 ponto percentual abaixo do IPCA durante o período.

Gráfico 1 – Número-índice (dez/99=100) – IPGF e IPCA

A maior parte da diferença entre os dois índices se deve ao efeito-substituição, melhor capturado pelo IPGF - com a atualização mensal de pesos – do que pelo IPCA.

Gráfico 2 - Var.% acumulada em 12 meses - IPGF e IPCA
  

Fonte: FGV IBRE e IBGE

O efeito “frequência de ponderação” pode ser ilustrado por números. A Tabela 1 mostra a diferença entre a inflação acumulada pelo IPGF nos primeiros e nos últimos 12 meses de vigência de cada POF na estrutura de pesos do IPCA. Nos primeiros 12 meses, ou seja, logo após a atualização dos pesos do IPCA, o IPGF chega a superá-lo em duas ocasiões. Já nos últimos 12 meses de vigência da respectiva POF, o IPGF fica sistematicamente abaixo do IPCA.

Tabela 1 – Comparação entre os primeiros e os últimos 12 meses de vigência de cada POF

 

Primeiros 12 meses

Últimos 12 meses

 

IPCA (%)

IPGF (%)

Dif. (p.p.)

IPCA (%)

IPGF (%)

Dif. (p.p.)

POF 95/961

5,97

6,06

-0,09

4,03

3,08

0,95

POF 02/032

3,69

3,48

0,21

6,50

5,79

0,71

POF 08/093

5,84

6,61

-0,77

4,31

3,30

1,01

POF 17/184

4,52

5,49

-0,97

5,78*

4,93*

0,85

 

 

[1] Esta POF foi a base para a estrutura de pesos do IPCA entre janeiro de 2000 e junho de 2006; 2 referência entre julho de 2006 e dezembro de 2011; 3 referência entre janeiro de 2012 e dezembro de 2019; 4 referência a partir de janeiro de 2020. * de janeiro a dezembro de 2022 (a POF 17/18 continua em vigor).

Outra parte da diferença entre os dois índices pode ser explicada pelo uso de diferentes formulações no cálculo de cada um. O IPCA é calculado por meio de um índice de tipo Laspeyres modificado[2], enquanto o IPGF é calculado pela fórmula de Törnqvist, um índice superlativo[3]. A família de índices captura com maior precisão o efeito-substituição em uma cesta de consumo, não estando sujeita aos vieses dos índices clássicos (Diewert, 1978).

Evolução recente dos índices

A última revisão de pesos do IPCA ocorreu em janeiro de 2020. De lá para cá, o IPGF vem acumulando uma inflação superior à do índice oficial do IBGE, fato que pode ser explicado por dois fatores: em primeiro lugar, ainda estamos muito próximos do período de atualização dos pesos. Em segundo lugar, o impacto da pandemia de covid-19 nas preferências do consumidor não foi trivial. Medidas de restrição à circulação de pessoas impediram que as famílias exercessem plenamente suas preferências, alterando sobremaneira a utilidade percebida por bens ou serviços específicos a cada momento.

No início da pandemia, diversos produtos alimentares básicos tenderam a se comportar como bens de Giffen[4] (arroz e feijão, por exemplo). Segundo o IPCA, em junho de 2020, enquanto a alimentação no domicílio comprometia 14% da renda das famílias, no IPGF a despesa com alimentos passou a comprometer mais de 18%, refletindo a escalada dos preços dos alimentos e seu efeito sobre a cesta de consumo das famílias. Hoje, ambos indicadores registram peso similar para as despesas com alimentação. Com o abrandamento do choque e normalização da atividade econômica o peso retornou ao patamar habitual.

O aumento do peso dos alimentos em 2020 foi impulsionado pelo receio de desabastecimento no início da pandemia, pela concessão de transferências governamentais extraordinárias e pelos aumentos de preços de importantes commodities agrícolas, cujas cotações são determinadas no mercado internacional. Destino inverso foi registrado para os serviços, que tiveram seus pesos reduzidos durante a pandemia.

Após a normalização do cenário pandêmico, as preferências se ajustaram e o IPGF voltou a registrar valores inferiores ao IPCA já em 2022. No acumulado de 12 meses até dezembro de 2022, o IPGF subia 4,9%, contra 5,8% do IPCA.

Gráfico 3 - Pesos de Alimentação (no domicílio) do IPGF e IPCA

Fonte: FGV IBRE e IBGE

Considerações finais

No mundo ideal, os índices de preços seriam calculados com estruturas de pesos sendo atualizadas continuamente e a partir de formulações de índices superlativos, mais eficientes e não-viesados. Como dito acima, pesos que não refletem o padrão de consumo das famílias tendem a levar, na maioria das vezes, à superestimação da inflação, aumentando o esforço da política monetária e impondo um custo à sociedade.

A evolução dos pesos dos itens do IPGF durante a pandemia mostra que os padrões de consumo podem mudar rapidamente, adaptando-se a restrições atípicas como as impostas pela pandemia, ou mais lentamente, como reflexo dos ciclos econômicos, das transformações tecnológicas e das preferências dos consumidores.

Embora não se deva considerar o IPGF como uma proxy do IPCA, o novo índice nos parece suficientemente relevante para justificar seu acompanhamento daqui para a frente. Ao captar com relativa eficiência as mudanças nos hábitos de consumo da população, o IPGF qualifica-se como uma referência, para fins analíticos, dos efeitos de uma atualização mais frequente da estrutura de consumo dos índices de preços hoje disponíveis no país.

Apêndice

A estrutura de ponderação do IPGF é construída a partir da Tabela de Recursos e Usos (TRU) do SCN para estimar a participação relativa de cada item na despesa total das famílias. Já a estrutura de ponderação do IPCA é feita a partir da POF, o que gera uma diferença de escopo entre os índices: enquanto a TRU conta com 52 itens (em sua maior desagregação), o IPCA possui 377 subitens.

Neste exercício foi possível a compatibilização de 88,5% da estrutura da TRU (46 itens) com 62,1% da estrutura da POF (234 subitens), de tal modo que o IPGF consegue refletir 81,9% da estrutura de ponderação do IPCA (julho/22).

A Tabela A.1 revela a associação entre as duas estruturas com sua respectiva ponderação.

Estrutura do IPCA

Peso

Estrutura do IPGF

Peso

Alimentação

12,34

Alimentação

14,71

Arroz

0,58

Arroz beneficiado e produtos derivados do arroz

0,51

Feijões, bananas, mandioca, tomate, batata e uva (12 sub)

1,18

Outros produtos e serviços da lavoura

2,72

Laranjas (3 subitens)

0,1

Laranja

0,11

Farinhas, féculas e massas (8 subitens)

0,5

Produtos derivados do trigo, mandioca ou milho

0,75

Açúcares e derivados (8 subitens)

0,72

Açúcar

0,38

Leites e derivados (7 subitens)

1,08

Outros produtos do laticínio

1,3

Leite longa vida

0,88

Leite resfriado, esterilizado e pasteurizado

0,35

Frango inteiro

0,4

Carne de aves

0,82

Aves e ovos (2 subitens)

0,96

Aves e ovos

0,34

Carne de porco

0,33

Carne de suíno

0,28

Carnes e peixes industrializados (8 subitens)

0,67

Pescado industrializado

0,18

Óleos e gorduras (2 subitens)

0,18

Outros óleos e gordura vegetal e animal exclusive milho

0,32

Óleo de soja

0,38

Óleo de soja refinado

0,33

Enlatados e conservas (9 subitens)

0,16

Conservas de frutas, legumes, outros vegetais e sucos de frutas

0,87

Bebidas e infusões (10 subitens)

1,24

Bebidas

1,9

Café moído

0,43

Café beneficiado

0,39

Carnes (17 subitens)

2,56

Carne de bovinos e outros prod. de carne

3,15

Habitação

9,57

Habitação

18,8

Aluguel residencial

3,59

Aluguel

13,68

Combustíveis e energia (3 subitens)

4,27

Produção e distribuição de eletricidade, gás, água, esgoto e limpeza urbana

4,1

Gás de botijão (GLP)

1,41

GLP, combustível p/ aviação e outros produtos do refino do petróleo

1,02

Tinta

0,29

Tintas, vernizes, esmaltes e lacas

0,01

Artigos de Residência

2,95

Artigos de Residência

4,16

Mobiliário (5 subitens)

1,16

Móveis

1,3

Eletrodomésticos e equipamentos (6 subitens)

0,97

Eletrodomésticos

0,94

TV, som e informática (3 subitens)

0,51

Material eletrônico e equipamentos de comunicação

1,12

Computador pessoal

0,31

Máquinas para escritório e equipamentos de informática

0,79

Vestuário

1,36

Vestuário

3,84

Joias e bijuterias (3 subitens)

0,22

Artigos do vestuário e acessórios

2,63

Bolsa

0,06

Preparo do couro e fabricação de artefatos - exclusive calçados

0,22

Calçados e acessórios (6 subitens)

1,09

Fabricação de calçados

0,99

Transportes

14,01

Transportes

11,52

Transporte público (9 subitens)

2,35

Transporte terrestre de passageiros

2,91

Passagem aérea

0,58

Transporte aéreo

0,39

Automóvel novo

3,15

Automóveis, camionetas e utilitários

2,33

Etanol

0,88

Etanol e outros biocombustíveis

1,93

Gasolina

6,74

Gasolina tipo C

3,75

Óleo diesel

0,31

Óleo diesel

0,2

Saúde

10,79

Saúde

10,59

Produtos farmacêuticos (14 subitens)

3,33

Produtos farmacêuticos

2,81

Produtos óticos

0,25

Equipamentos de medida, teste e controle, ópticos e eletromédicos

0,15

Higiene pessoal (12 subitens)

3,75

Perfumaria, sabões e artigos de limpeza

2,04

Plano de saúde

3,47

Saúde privada

5,59

Despesas pessoais

4,09

Despesas pessoais

9,5

Empregado doméstico

2,7

Serviços domésticos

1,57

Hospedagem

0,52

Serviços de alojamento em hotéis e similares e alimentação

6,73

Fumo

0,49

Produtos do fumo

0,83

Alimento para animais

0,38

Rações balanceadas para animais

0,37

Educação

4,22

Educação

2,85

Cursos regulares (8 subitens)

4,22

Educação privada

2,85

Comunicação

0,56

Comunicação

4,82

Correio

0,06

Armazenamento e serviços auxiliares aos transportes, correios e outros serviços de entrega

1,08

Acesso à internet

0,49

Serviços de informação

3,74

Serviços

22,05

Serviços

5,63

IPCA - Serviços Livres (55 subitens)

22,05

Serviços prestados às famílias e atividades pessoais

5,63

Soma dos pesos

81,93

Soma dos pesos

86,42


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

[1] Calculamos também o IPGF usando relativos de preços do IPC-Brasil, da FGV, mas neste artigo usamos somente o índice calculado a partir de relativos de preços do IPCA, do IBGE.

[2] O índice de Laspeyres Modificado considera as quantidades fixas no período base. Entretanto, cada mercadoria tem importância ou participação diferente, de acordo com a magnitude de sua redução ou aumento dos preços do período de referência em comparação ao de mês anterior.

[3] Índice de Törnqvist = . A principal característica de um índice superlativo, como o índice de Törnqvist, é a sua capacidade de captar o efeito substituição. Seus resultados registram a racionalidade do consumidor em substituir ou reduzir as quantidades de itens que tenham apresentado aumento em seus preços, ultrapassando sua restrição orçamentária.

[4] O bem de Giffen é um tipo de bem cujos preços caem quando há redução de demanda e vice-versa. Um exemplo clássico pode ser dado pelo consumo de arroz e feijão. Famílias de baixa renda diante da queda dos preços desses itens, podem simplesmente aproveitar a sobra no orçamento para comprar outros bens renunciando comprar mais arroz e feijão, contrariando assim a lei da oferta e da procura, cujo comportamento da demanda seria aumentar o consumo diante de uma queda dos preços. 

Comentários

simone
Contabilidade criativa? Economia heterodoxa
daniele
Entendeu o índice, pelo menos, Simone?

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